Imprimir acórdão
Proc. nº. 458/98
1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – A... intentou, em 1.10.1991, acção declarativa, na forma sumária, visando a resolução do arrendamento para habitação incidente sobre um prédio urbano denominado 'Casal de S. Roque', sito no Estoril, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais, melhor identificado nos presentes autos, nomeadamente no artigo 1º da respectiva petição inicial, tendo a referida acção sido interposta contra P... e mulher.
Apoiou a sua pretensão na verificação dos fundamentos de resolução do mencionado contrato previstos na alínea i) do artigo 64º, nº. 1 do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº. 321-B/90, de 15.10
(falta de residência permanente) e, como fundamento subsidiário, a cedência do locado a terceiro sem consentimento/autorização, de harmonia com a alínea f) da mesma disposição legal.
Por sentença proferida em 27.02.1996 pelo Tribunal Judicial da Comarca de Cascais, foi a acção julgada procedente e ao abrigo do artigo 64º, nº. 1, alínea i) do RAU (falta de residência permanente) decretada a resolução do contrato de arrendamento do imóvel em apreço, condenando-se os Réus a despejarem o imóvel e a entregá-lo livre e devoluto de pessoas e coisas à senhoria.
Desta sentença apelaram os Réus para o Tribunal da Relação de Lisboa fundamentalmente por entenderem beneficiar da excepção prevista no artigo 64º, nº. 2 alínea b) do RAU, visto que a ausência do local arrendado resulta do cumprimento de comissão de serviço público por tempo determinado do Réu marido, enquanto funcionário de carreira do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Contra-alegou a senhoria, pugnando pela improcedência do recurso e pela confirmação da sentença da 1ª instância.
Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.02.1998, foi negado provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
É deste acórdão que veio o presente recurso para o Tribunal Constitucional, alegadamente ao abrigo do artigo 70º, nº. 1, alínea b) da Lei nº. 28/82, de 15.11, interposto pelos Réus na acção de resolução do contrato de arrendamento.
Admitido o recurso, apresentaram os recorrentes alegações que terminaram, formulando as seguintes conclusões:
'I – Vem o presente recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação que, em recurso de apelação (Proc. nº. 1500/97-P, 2ª Secção), intentado pelos ora Recorrentes, negou provimento à apelação, confirmando-se a douta decisão recorrida de primeira instância.
Conforme consta de requerimento de interposição do presente recurso, pretende ver-se apreciada a inconstitucionalidade dos segmentos de norma constantes dos artigos 64º, nº. 1 al. i) e nº. 2 al. b) do regime do arrendamento urbano aprovado pelo Decreto-Lei nº. 321-B/90 de 15/10, com a interpretação com que foram aplicados, conjugando-os com as disposições normativas contidas nos artigos 21º, 22º e 26º do Decreto-Lei nº. 47331 de
28/11/1966, artigos 1º e 2º do Dec. Regulamentar nº. 32/90 de 24/9, artigos 40º,
43º e 53º do Dec-Lei nº. 79/92 de 6/5 – sendo todos estes preceitos respeitantes ao estatuto da carreira diplomática.
Sucede que, posteriormente à interposição do recurso foi distribuído um suplemento do Diário da República 1ª Série, número 49/98 (I-A), de 27/2, no qual se publica o Decreto-Lei nº. 40-A/98, que revoga parcialmente o Decreto-Lei nº. 79/92 de 6/5 (estatuto da carreira diplomática).
Ora, o artigo 58º (Residência e domicílio) tem a natureza de norma interpretativa autêntica e releva para a apreciação da questão de direito em causa, atento o disposto no artigo 13º do Cód. Civil.
A interpretação decorrente da douta decisão dos referidos segmentos de normas do RAU, em conjugação com os restantes preceitos invocados, viola os artigos 13º e 22º do C.R.P..
II – Os factos provados demonstram que o recorrente é diplomata de carreira e que as suas ausências no estrangeiro se devem a comissões de serviço público mas que nunca foi sua intenção deixar de regressar ao 'locado'.
III – As disposições do artigo 64º do RAU, anteriormente constantes do artigo 1093º do Cód. Civil, não sofreram alteração desde os factos determinantes da propositura da acção (1.10.91) até à presente data, pelo que não se coloca um problema de aplicação no tempo desses segmentos de norma que relevam para o caso.
Em relação aos regimes especiais constantes dos estatutos da carreira diplomática deviamos, em princípio remeter-nos aos princípios normativos do Dec-Lei nº. 47331 de 28/11/66 como aos preceitos expressos no Dec. Regulamentar nº. 32/90 de 24/9.
No entanto, o artigo 58º do Dec-Lei nº. 40-A/98 de 27/2, que é uma norma de interpretação autêntica abrange todas as normas anteriormente invocadas.
IV – As comissões de serviço público dos diplomatas integram-se na categoria de comissões ordinárias.
Do significado literal do preceito da alínea b) do nº. 2 do artigo
64º do RAU emerge a concepção de que a comissão de serviço público é prorrogável ou renovável e só no termo dessas possíveis prorrogações ou renovações produz efeitos jurídicos, pressupondo que o respectivo enquadramento legal limite, em princípio, o número de prorrogações ou renovações.
Este entendimento coaduna-se perfeitamente com o regime do arrendamento urbano que confere estabilidade à relação arrendatícia no interesse predominante do inquilino.
A lei 2030 de 22/6/48 introduziu esta excepção à acção de despejo, no seu artigo 69º, al. a), 2º.
Mas só o Cód. Civil intercalou a expressão ... e bem assim, sem dependência de prazo...
A occasio legis é esclarecedora porquanto o regime de comissões militares no ultramar obrigava, por vezes, a comissões militares sucessivas e algumas convoláveis em comissões civis.
Daí que o legislador tenha acautelado a situação do inquilino sujeito a várias comissões.
No caso dos diplomatas de carreira a diferenciação de tratamento abrangida pela interpretação que assim fazemos da alínea b) do nº. 2 do artigo
64º corresponde aos critérios utilizados para justificar essa diferenciação no
âmbito do princípio da igualdade.
A interpretação perfilhada pelo acórdão recorrido viola, pois, frontalmente, o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da C.R.P. e, contrariando o princípio da legalidade democrática do Estado (artigo 3º da C.R.P.), faz com que este promova a violação da citada norma legal pelo diplomata, na qualidade de simples cidadão, e o Estado ainda incorre em responsabilidade civil nos termos do artigo 22º da C.R.P..
Pelo contrário, a interpretação a que procedemos, não só obedece às regras de hermenêutica jurídica, como é conforme com os princípios normativos constitucionais.
V – As normas citadas do Dec-Lei nº. 47331 de 28/11/66 e do Decreto Regulamentar nº. 32/90 de 24/9 definiam o princípio de que a presença seguida dos funcionários no estrangeiro não deveria exceder seis anos, sendo os cargos exercidos em comissões de serviço por três anos, renováveis.
VI – O artigo 58º do Dec-Lei nº. 40-A/98 de 27/2 obedece às características de 'lei interpretativa', por natureza, autêntica.
Nos termos do artigo 13º do Cód. Civil a presente norma é aplicável ao caso sub iudice.
Ademais, concretiza o princípio da igualdade na aplicação do artigo
64º, nº. 2, al. b) às ausências no estrangeiro de diplomatas em comissão de serviço.
VII – Por todo o exposto, deve ser considerada inconstitucional a interpretação contida no acórdão recorrido relativamente aos segmentos de norma constantes dos artigos 64º, nº. 1, al. i) e nº. 2 al. b) do RAU, em conjugação com os preceitos invocados relativos ao estatuto da carreira diplomática, mormente o actual artigo 58º do Dec-Lei nº. 40-A/98 de 27/2.'
Os recorridos contra-alegaram, pedindo a improcedência do recurso e a confirmação do acórdão recorrido, tendo concluído:
1ª Os Recorrentes deixaram de ter residência permanente no locado deste, pelo menos, 16/11/1980, não tendo provado (nem alegado) factos susceptíveis de fazer aplicar a excepção prevista no artigo 64º nº. 2 al. b) 2ª parte, do RAU;
2ª A excepção referida aplica-se apenas às ausências justificadas por comissão de serviço público por tempo determinado e só ao primeiro período de nomeação, não abrangendo as renovações;
3ª Os Recorrentes não provaram qual o motivo das ausências ao longo de todo o tempo de não residência, qual o regime jurídico das eventuais nomeações, nem qual a duração das alegadas comissões;
4ª Os Recorrentes afirmaram, bem pelo contrário, que as nomeações foram sem prazo certo pré-determinado;
5ª O artigo 53º do Decreto-Lei nº. 79/92, de 6 de Maio não é aplicável ao caso dos autos; porque: a. Não é derrogatório do RAU; b. Não estava em vigor à data da propositura da acção; c. Não se aplica retroactivamente a factos violadores do contrato, ocorridos antes de 1/1/92; d. Não está ferido de inconstitucionalidade orgânica, por versar matéria da reserva da competência exclusiva da Assembleia da República, uma vez que se interprete como abrangendo direitos e deveres privados dos funcionários, designadamente os contratos de arrendamento e/ou por, nesse caso, alterar uma norma do regime geral do arrendamento; e. Está ferido de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da igualdade.
6ª O artigo 58º nº. 3 do Decreto-Lei 40-A/98 não é interpretativo, mas antes inovador relativamente ao nº. 2 do mesmo artigo, pretendendo abranger, e abrangendo efectivamente, situações que esta última norma não contemplava.
7ª Inovador ou interpretativo, o certo é que o nº. 3 do artigo 58º do DL 40-a/98
é material e organicamente inconstitucional pelas mesmas razões que acima se apontaram para o nº. 2 do artigo 58º do DL 79/92, com a interpretação defendida pelos Recorrentes, e rejeitada pela Relação.
8ª O artigo 64º nº. 2 al. b) do RAU, na interpretação feita pelo douto acórdão da Relação de Lisboa, ora sob recurso, não sofre de qualquer inconstitucionalidade.
9ª Pelo contrário, tal norma estaria, isso sim, ferida de inconstitucionalidade material e orgânica, como se disse, se fosse interpretada com o sentido que os Recorrentes pretendem que lhe fosse atribuído. Termos em que, e com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser negado provimento ao presente recurso, confirmando-se o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, com todas as consequências legais.
Cumpre decidir.
2 – A questão de constitucionalidade cujo objecto foi delimitado no respectivo requerimento de interposição reporta-se às normas do artigo 64º, nº.
1, alínea i) e nº. 2, alínea b) do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº. 321-B/90, de 15.10 em conjugação com as disposições legais, alusivas ao estatuto da carreira diplomática, contidas nos artigos 21º, 22º e
26º do Decreto-Lei nº. 47 331, de 28.11.1966, artigos 1º e 2º do Decreto Regulamentar nº. 32/90, de 24.09 e artigos 40º, 43º e 53º do Decreto-Lei nº.
79/92, de 6.05 e ainda, no entendimento dos recorrentes, o artigo 58º do Decreto-Lei nº. 40-A/98, de 27.02.
Entendem os recorrentes que a comissão de serviço do Réu marido, apesar da ausência no estrangeiro entre - pelo menos - 1980 e 1990, é por tempo determinado, estando contemplada na excepção prevista na alínea b) do nº. 2 do artigo 64º do RAU, sendo inconstitucional, por violar os artigos 13º e 22º da CRP, a interpretação feita pelo Tribunal 'a quo' segundo a qual 'não é esta comissão permanente de serviço, que a lei civil visa proteger, mas só aquela que
é por tempo determinado, temporária. Do jeito que não integra o regime excepcional da segunda parte da al. b) do nº 2 do artigo 64º do R.AU..' , tanto mais que é entendimento dos recorrentes que o artigo 58º do Decreto-Lei nº. 40-A/98, de 27.02 'tem natureza de norma interpretativa autêntica ...' e 'abrange todas as normas anteriores invocadas'. O acórdão recorrido julgou improcedente a arguição de inconstitucionalidade fundamentalmente por se entender diversa a situação dos funcionários que seguem uma carreira diplomática, dela fazendo uma opção de vida: 'escolheram um tipo de relação de emprego com o Estado vocacionado, em princípio, para estarem ou poderem vir a estar colocados por largos períodos de tempo fora do país com afastamento do arrendado'. Importa, em primeiro lugar, averiguar se a referida norma do artigo 58º do Decreto-Lei nº. 40-A/98, de 27.02 foi ou não efectivamente aplicada no acórdão recorrido. Em vão se procura no acórdão recorrido a aplicação da supra indicada norma. Aliás, como bem referem os recorrentes na 1ª conclusão das suas alegações, tal Decreto-Lei nº. 40-A/98, de 27.02, é posterior à interposição do presente recurso para este Tribunal. O mesmo é dizer que a norma do referido Decreto-Lei não foi efectivamente aplicada pelo Tribunal 'a quo', pelo que não fundamentou o decidido no acórdão recorrido. Verifica-se, assim, a falta de pressuposto processual previsto no artigo 70º nº.
1 alínea b) da LTC, o que obsta a que o Tribunal se pronuncie sobre esta matéria. O objecto do presente recurso consiste em saber se, a excepção ao direito do senhorio à resolução do contrato de arrendamento prevista na 2ª parte da alínea b) do nº. 2 do artigo 64º do RAU – falta de residência permanente no local arrendado para habitação resultante de comissão de serviço público, civil ou militar, por tempo determinado – interpretada no sentido de não abranger as comissões de serviço a que está sujeito o pessoal da carreira diplomática, constitui violação do princípio da igualdade e do princípio da responsabilidade patrimonial directa das entidades públicas por danos causados aos cidadãos, princípios previstos respectivamente nos artigos 13º e 22º da Constituição. No entendimento dos recorrentes a comissão de serviço público, civil ou militar, quer seja por tempo determinado, quer seja por tempo indeterminado, desde que revista a natureza impositiva, deve ter o mesmo tratamento, em termos de impedir a resolução unilateral por parte do senhorio do respectivo contrato de arrendamento, pois só assim se respeitam os princípios da igualdade e da responsabilidade patrimonial directa das entidades públicas por danos causados aos cidadãos, o que não aconteceu com a interpretação dada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa ora em crise. Dispõe o artigo 64º do RAU:
'1 – O senhorio só pode resolver o contrato se o arrendatário:
(...)........................................................................................
i. Conservar o prédio desabitado por mais de um ano ou, sendo o prédio destinado a habitação, não tiver nele residência permanente, habite ou não outra casa, própria ou alheia;
2 – Não tem aplicação o disposto na alínea i) do número anterior:
(...).............................................................................................. b) Se o arrendatário se ausentar por tempo não superior a dois anos, em cumprimento de deveres militares, ou no exercício de outras funções públicas ou de serviço particular por conta de outrem, e bem assim, sem dependência de prazo, se a ausência resultar de comissão de serviço público, civil ou militar, por tempo determinado;'
O princípio da igualdade abrange a proibição de arbítrio, a proibição de discriminações e a obrigação de diferenciação.
Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, pág. 127 e ss., referem a proibição de arbítrio como 'um limite externo da liberdade de conformação da decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controlo. Nesta perspectiva, o princípio da igualdade exige positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes', mas tal proibição 'ao valer como princípio objectivo de controlo, não significa em si mesma, simultaneamente, um direito subjectivo público a igual tratamento (...)'.
'(...) A proibição de discriminações (nº. 2) não significa uma exigência de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenciações de tratamento.
(...) O que se exige é que as medidas de diferenciação sejam materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da proporcionalidade, da justiça e da solidariedade e não se baseiem em qualquer motivo constitucionalmente impróprio. As diferenciações de tratamento podem ser legítimas quando: (a) se baseiem numa distinção objectiva de situações; (b) não se fundamentem em qualquer dos motivos indicados no nº. 2; (c) tenham um fim legítimo segundo o ordenamento constitucional positivo; (d) se revelem necessárias, adequadas e proporcionadas à satisfação do seu objectivo.
A obrigação de diferenciação para se compensar a desigualdade de oportunidades significa que o princípio da igualdade tem uma função social, o que pressupõe o dever de eliminação ou atenuação, pelos poderes públicos, das desigualdades sociais, económicas e culturais, a fim de se assegurar uma igualdade jurídico-material. É neste sentido que se devem interpretar algumas normas da Constituição que estabelecem 'discriminações positivas'.
O princípio da igualdade implica, deste modo, um tratamento igual de situações de facto iguais e tratamento diferente de situações de facto diferentes, correspondendo, portanto, a uma diferenciação de tratamento que se baseia numa distinção objectiva de situações, que se revela necessária, adequada e proporcional à satisfação do objectivo da tutela, diferenciação a que corresponde um fim legítimo.
Assim se decidiu, entre outros, no acórdão deste Tribunal nº.
223/95, in DR, II Série, de 27.06.95:
'O princípio da igualdade (...) apenas proíbe que as situações da vida semelhantes recebam tratamento diferenciado que se não justifique nas diferenças existentes entre elas. Ou seja, proíbe o arbítrio ou o capricho do legislador, pois que este, no exercício da sua liberdade de conformação, há-de orientar-se sempre por critérios racionais – há-de agir racionalmente, editando normas razoáveis, pois que a lei será Direito se for uma racionalidade'.
Ora, para averiguar da eventual violação do princípio da igualdade, no caso em apreço, torna-se imperioso ponderar se a comissão de serviço, civil ou militar, por tempo indeterminado - que não está claramente abrangida na excepção prevista no artigo 64º, nº. 2, alínea b) do RAU, impeditiva da resolução unilateral do contrato de arrendamento por parte do senhorio – é objecto de uma diferenciação de tratamento injustificada, desrazoável e desproporcionada. Não compete ao Tribunal Constitucional apreciar a correcção da decisão judicial em recurso, no ponto em que qualifica a comissão de serviço do recorrente marido, enquanto funcionário da carreira diplomática, como sendo por tempo indeterminado (de resto, com apoio na jurisprudência pacífica; vide, por todos, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.01.1982, in Colectânea de Jurisprudência, 1982, tomo I, págs. 157 a 160). Para se analisar a questão da eventual violação do princípio da igualdade, não pode deixar de se ponderar as razões que ancoraram (e ancoram) o chamado regime vinculístico do arrendamento, questão já apreciada por este Tribunal noutros arestos. Escreveu-se no Acórdão nº. 575/95 – inédito (artigo 64º, nº. 1, alínea i) do RAU):
'A 'residência permanente', verdadeiro conceito-chave da norma em causa, é consensualmente definida como 'a casa em que o arrendatário tem o centro ou sede da sua vida familiar e social e da sua economia doméstica; a casa em que o arrendatário, estável ou habitualmente dorme, toma as suas refeições, convive e recolhe a sua correspondência, o local em que tem instalada e organizada a sua vida familiar e a sua economia doméstica – o seu lar, que constitui o centro ou sede dessa organização' (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.3.85, BMJ
345, 372). Consagra o regime emergente da questionada alínea i) a solução, já tradicional entre nós, de fazer cessar a protecção vinculística do arrendamento quando não esteja - neste caso quando deixe de estar – em causa a 'residência permanente' do arrendatário, a realidade relativamente à qual essa protecção vinculística colhe justificação [v. quanto ao regime anterior ao RAU (artigo 1093º, nº. 1, al.i), do Código Civil e artigo 5º, da Lei nº. 1662 de 2.9.94), Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 3ª ed., Coimbra 1986, pág.
549/550 e J. Pinto Loureiro, Manual do Inquilinato, Vol. I, Coimbra 1941, pág.
290/291]. Como a propósito refere Pereira Coelho: 'compreende-se que a lei permita o despejo, pois não seria justo (sobretudo nas actuais condições do país em que a carência de habitações reveste aspectos dramáticos) que o inquilino beneficiasse do especial regime de protecção do arrendamento para habitação relativamente à casa em que não tem habitação permanente e só utiliza, porventura, como residência secundária. Aquele especial regime de protecção não foi feito, de toda a evidência, para esses casos' (Direito Civil, Arrendamento, Coimbra 1980, pág. 227/228).' (sublinhado nosso). Ou seja, as razões que nortearam a instituição do regime vinculístico do arrendamento são a carência de oferta tradicionalmente existente no mercado de arrendamento português, que impõe o reconhecimento da finalidade social do arrendamento, mormente para habitação, e a posição de maior debilidade do arrendatário perante o senhorio considerando a natureza essencial do bem jurídico em causa – a habitação/residência permanente.
É por referência a este conceito que se há-de analisar da necessidade, adequação e razoabilidade da diferença de tratamento conferida em sede de protecção do arrendatário que se ausenta do local arrendado, deixando de ali residir com carácter de permanência: a. por tempo não superior a dois anos em cumprimento de deveres militares ou no exercício de outras funções públicas ou de serviço particular [1ª parte da alínea b) do nº. 2 do artigo 64º do RAU]; b. sem dependência de prazo, se a ausência resultar de comissão de serviço público, civil ou militar, por tempo determinado [2ª parte da alínea b) do nº. 2 do artigo 64º do RAU]; c. nas situações – como a dos autos – em que a ausência resulta de comissão de serviço por tempo indeterminado. Nas duas primeiras situações previstas pela excepção consagrada na alínea b) do nº. 2 do artigo 64º do RAU, a protecção do arrendatário em termos de impedir a resolução unilateral do contrato pelo senhorio justifica-se pelo interesse do arrendatário em manter o local arrendado, sendo previsível/certo o seu
'regresso' ao locado; a ausência é meramente transitória, definida no tempo quando se trata de comissão de serviço por tempo determinado e, na situação referida em a), a tutela dos direitos do arrendatário é limitada a um prazo de ausência não superior a dois anos. Nessas situações é razoável que o senhorio não goze do direito à resolução do contrato: a salvaguarda do direito à habitação do inquilino, pela duração e características da ausência, prevalece sobre o interesse social de, num mercado tradicionalmente deficitário em termos de oferta, se não manterem fora desse mercado habitações não utilizadas pelos respectivos arrendatários. Quanto às comissões de serviço, só nas que o são por tempo determinado se poderá dizer que o arrendatário mantém a sua residência permanente no locado, entendida como acima se deixou expresso e constitui jurisprudência pacífica dos tribunais portugueses. Na comissão de serviço por tempo indeterminado, não pode afirmar-se que o locatário tem residência permanente no local arrendado, e nem situar o momento em que ele regressará ao locado para ali (re)instalar o seu centro de vida pessoal, familiar e social, a sua economia doméstica, a sua residência permanente.
Em tal caso, não só não há residência permanente, como se poderá mesmo dizer que a ausência, essa sim, se tornou permanente.
Ora, atendendo ao fim social que enforma o arrendamento, não podem ser tuteladas pelo chamado regime vinculístico de protecção as situações em que as casas arrendadas para habitação estão desabitadas/desocupadas, porque o arrendatário se encontra a cumprir comissão de serviço por tempo indeterminado – mantendo-se a desocupação enquanto se mantiver a comissão de serviço por tempo indeterminado – privando, por um lado, o senhorio de facultar a casa a outrém para fins de residência permanente e, por outro, todos os interessados em arrendar o locado para habitação, considerada a referida escassez deste tipo de bem jurídico.
A atribuir-se protecção – no sentido da manutenção do contrato de arrendamento por todo o período por que se prolonga a comissão de serviço público por tempo indeterminado - ao inquilino que se ausenta do local arrendado no cumprimento de comissão de serviço por tempo indeterminado, estaria o legislador, no fundo, a permitir o desvirtuamento do fim social do arrendamento e a conferir protecção ao 'direito de não habitar', o que não é de todo compaginável com os fundamentos e os fins que nortearam a consagração do 'regime vinculístico do arrendamento'. Como se escreveu no Acórdão nº. 32/97 – inédito – no essencial o que os recorrentes pretendem 'é o reconhecimento, por efeito da sua qualidade de arrendatária, do direito de não habitar, por tempo indeterminado, o prédio arrendado. Ora, está bem de ver que tal pretensão não se integra no núcleo de protecção constitucional do direito à habitação, já que neste se visa assegurar o direito de habitar, não o de não habitar. ' Ora, é evidente que as situações de 'comissão de serviço público, civil ou militar, por tempo determinado' são diferentes das situações de 'comissão de serviço público, civil ou militar, por tempo indeterminado' ainda que, em ambas, a comissão tenha carácter impositivo, carecendo de diferente tutela jurídica e não se podendo considerar injustificada, arbitrária ou desproporcionada a diferença de tratamento dada a essas situações, o que vale por dizer não ser essa diferença de tratamento contrária ou violadora do princípio da igualdade.
É certo que os recorrentes acentuam a característica 'impositiva' da comissão de serviço público cumprida pelo recorrente marido para desenvolverem considerações
àcerca da pretensa violação daquele princípio, traduzida na diferença de tratamento prevista na lei a propósito da excepção à resolução unilateral do contrato de arrendamento por parte do senhorio. O argumento não é convincente. A 'imposição' da comissão de serviço público no caso em apreço referir-se-á apenas, eventualmente, ao momento concreto em que é ordenada e ao 'lugar' em que deve ser cumprida, mantendo o carácter essencialmente voluntário de tal comissão, por inerência das próprias funções. Daqui não pode retirar-se a conclusão de que o princípio da igualdade foi violado, por se tratar de uma discriminação injustificada, desnecessária e desrazoável, atendendo a que - repete-se - a ausência resultante do cumprimento de comissão por tempo indeterminado radica na (tendencial) permanência da ausência, impossibilitando a afectação do imóvel locado para satisfação das necessidades habitacionais de outros interessados nesse bem tradicionalmente escasso que é o arrendamento, tanto mais que na génese da comissão de serviço está uma opção profissional especialmente vocacionada para o cumprimento de
'missões' no estrangeiro em representação do Estado Português. Os recorrentes sustentam, ainda, que as normas em causa violam o artigo 22º da CRP (Responsabilidade das entidades públicas). Mas sem qualquer razão. No entendimento de Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, pág. 168 e ss., que o artigo 22º 'consagra o princípio da responsabilidade patrimonial directa das entidades públicas por danos causados aos cidadãos. Ao lado do princípio da legalidade (artº 3º) e do princípio da judicialidade (art. 20º), o princípio da responsabilidade do Estado
é um dos princípios estruturantes do Estado de direito democrático, enquanto elemento do direito geral das pessoas à reparação dos danos causados por outrem
(...) E mais adiante escrevem os mesmos autores:
(...) V. A Constituição exige uma certa relação de conexidade entre o exercício das funções (por parte dos titulares de órgãos, funcionários ou agentes) e o acto de violação dos direitos, liberdades e garantias, para que haja lugar para responsabilidade das entidades públicas. Exigindo que as acções ou omissões lesivas tenham sido praticadas no exercício de funções e por causa desse exercício, requere-se que o acto caiba no âmbito do escopo funcional ou que, pelo menos, se verifique uma aparência de relação funcional justificativa da boa-fé e confiança do cidadão lesado. Exclui-se, assim, o 'critério da mera ocasionalidade' e o 'critério da ocasionalidade necessária'.' Por força da norma contida no artigo 22º da CRP têm, pois, os cidadãos lesados nos seus direitos e liberdades e garantias,por acções ou omissões praticadas pelos titulares de orgãos, funcionários ou agentes do Estado, no exercício das suas funções ou por causa delas, o direito de accionar o Estado e demais entidades públicas com fundamento em responsabilidade civil, em forma solidária com os directos lesantes. Ora, ainda que os recorrentes pretendam accionar o Estado (por responsabilidade por acto legislativo ?), não está nem nunca esteve em causa, na acção que deu lugar ao presente recurso, aquele direito que, por esse motivo, não se pode mostrar violado pela interpretação dada no acórdão impugnado no artigo 64º, nº.
2, alínea b) do RAU.
3 – Decisão: Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso, mantendo-se o acórdão recorrido quanto ao julgamento sobre a questão de constitucionalidade.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs. Lisboa, 9 de Fevereiro de 1999 Artur Maurício Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida