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Proc. nº 692/96
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. F. Gr. requereu a sua constituição como assistente nos autos de inquérito para averiguação da prática de um crime de homicídio por negligência, a correrem termos no tribunal de Amarante, em que a vítima mortal foi o seu filho, J. Gr..
Por despacho de 16 de Novembro de 1995, tal pretensão foi indeferida pelo juiz instrutor do processo por, sendo a vítima casada à data do óbito, embora separada de facto, nos termos do artigo 68º, nº 1, alínea c), do CPP, tal legitimidade caber apenas ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e não aos ascendentes.
2. Inconformado, recorreu o requerente para a Relação do Porto, suscitando a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 68º, nº 1, alínea c), do CPP, na interpretação do tribunal a quo, segundo a qual, havendo cônjuge sobrevivo, mesmo que separado de facto, só este pode constituir-se assistente em processo penal, no caso de o ofendido morrer sem deixar descendentes. Considerou o recorrente que tal interpretação violava os artigos
67º e 68º da Constituição, bem como os artigos 205º e 207º da mesma.
Já na Relação, o Ministério Público pronunciou-se pelo provimento do recurso. Por acórdão de 15 de Maio de 1996, a Relação negou-lhe, porém, provimento, pelos fundamentos seguintes:
Na verdade, da análise daquele normativo [artigo 68º, nº
1, alínea c) do CPP] resulta que ele divide as pessoas com legitimidade para se constituir assistente no caso de morte do ofendido, em dois grupos. Um desses grupos é constituído pelo cônjuge sobrevivo e pelos descendentes e o outro grupo, pelos ascendentes, irmãos, adoptante, adoptado e a pessoa que vivesse com o ofendido em condições análogas às dos cônjuges.
Esta interpretação resulta desde logo da letra da lei que refere '...o cônjuge... e os descendentes ou, na falta deles, os ascendentes...'. Daqui decorre que o termo 'deles', usado naquele preceito legal, refere-se, claramente, ao cônjuge e aos descendentes como um todo, isto
é, como um grupo. É que, se o legislador quisesse referir-se apenas aos descendentes, não querendo abranger também o cônjuge, não teria utilizado o termo 'deles' mas antes 'destes', fazendo então, sentido que na falta destes
(descendentes), o direito seria atribuído aos ascendentes,.... Porém, o legislador utilizou o termo 'deles' e, atento o contexto em que se acha inserido, cremos que a interpretação mais correcta e conforme à vontade do legislador é a de que esse termo reporta-se não só aos descendentes mas também ao cônjuge.
E quanto à possibilidade de admitir aos ascendentes a constituição como assistentes, no caso de o cônjuge sobrevivo não o fazer, como ocorreu nos autos, afirmou-se ainda nesse aresto:
Só que, a nosso ver, a lei não permite tal interpretação sendo, nesse aspecto o artº 68º-1-c) do CPP, muito claro ao utilizar a expressão
'na falta deles'. Assim, só se não existirem cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e descendentes é que o direito é deferido às pessoas do segundo grupo, onde se incluem os ascendentes.
Como acima se disse, citando José da Costa Pimenta, o segundo grupo de pessoas é subsidiário em relação ao primeiro: só é chamado quando o primeiro grupo não tiver nenhum elemento (não exista de todo, nenhum elemento).
No caso em apreço, porque o falecido ofendido era casado não estando separado judicialmente de pessoas e bens, é o cônjuge quem tem o direito de se constituir assistente neste processo. E é irrelevante que o falecido ofendido e seu cônjuge, estivessem separados de facto, como alega o recorrente, pois relevante, à face da lei é tão só a separação judicial de pessoas e bens.
Diga-se, por outro lado, que a interpretação dada ao citado artº 68º-1-c) do CPP, não colide com as regras da sucessão nem retira quaisquer direitos deste tipo ou de natureza civil ao recorrente, enquanto ascendente do falecido ofendido.
É que o recorrente, enquanto lesado, pode deduzir pedido de indemnização civil - pelos danos ocasionados com o crime - ainda que se não tenha ou não possa constituir-se assistente no processo - cfr. artº 74º do CPP.
Só que, lesado não é sinónimo de ofendido. Ofendido, para efeitos penais, é o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime - Maia Gonçalves in CPP Anotado, 1987, pág. 118; ou o titular do interesse que a lei visa proteger com a incriminação - mesmo autor, in CPP Anotado, 1996, pág. 164.
O ofendido não é sujeito processual, salvo se se constituir assistente. Enquanto se não constituir assistente é simples participante processual e, como tal, não é titular de direitos de intervenção no processo.
O lesado é aquele que sofreu danos com o crime. Pode coincidir e coincide muitas vezes, com o ofendido e, por isso, pode também, constituir-se assistente, mas não pelo facto de ser lesado, mas por ser ofendido. Em razão da sua qualidade de lesado pode apenas intervir no processo como parte civil, no pedido de indemnização civil - cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, I, 301.
Para que possa haver lesado, é necessário que seja titular de um direito de indemnização; que haja danos na esfera jurídica dessa pessoa; que tais danos sejam consequência de uma conduta criminosa; e que exista nexo de causalidade entre a prática do crime e os danos.
Refira-se também que não vemos que o citado artº 68º-1-c) do CPP, interpretado da forma referida viole qualquer preceito constitucional, designadamente os arts. 67º e 68º ou 205º, da CRP.
3. É desta decisão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, para apreciação da constitucionalidade da norma constante do artigo 68º, nº 1, alínea c), do CPP, interpretada como o foi na decisão recorrida, no sentido de não admitir a constituição como assistentes, em processo penal, aos ascendentes do ofendido falecido, quando lhe haja sobrevivido cônjuge separado de facto, embora não separado judicialmente de pessoas e bens, e não tenha descendentes, por violação dos artigos 67º, 68º, 205º, nº 1, e 207º da Constituição.
Admitido o recurso, e já neste Tribunal, o recorrente formulou as seguintes conclusões:
1ª
A Lei Fundamental portuguesa defende e protege a família, não só enquanto célula social baseada no contrato matrimonial, mas também e sobretudo enquanto unidade moral fundada na indestrutível perenidade consanguínea.
2ª
A norma do art. 68º, nº 1, al. c) do CPP interpretada e aplicada no sentido de não permitir ao recorrente a sua intervenção como assistente nos presentes autos, é materialmente inconstitucional por ofensa ao estatuído nos arts. 67º, 68º, 205º, nº 1 e 207º da CRP.
3ª
A norma do art. 68º, nº 1, al. c) do CPP, interpretada e aplicada nos termos em que fez o douto acórdão recorrido, está também ferida de inconstitucionalidade orgânica por desrespeitar as injunções estabelecidas nos pontos 1, 3, 4 e 52 do nº 2 do artigo 2º da Lei nº 43/86, de 26 de Setembro.
Nas suas contra-alegações, o Ministério Público, manifestando-se pela improcedência do recurso, formulou as seguintes conclusões:
1º
A figura do assistente em processo penal não goza de directa consagração na Lei Fundamental, não representando a sua actividade de coadjuvação do Ministério Público uma forma de acesso aos tribunais para efectivação de direitos e interesses legítimos do ofendido e seus familiares, enquadrável no artigo 20º da Constituição.
2º
Não padece de inconstitucionalidade a interpretação
'restritiva' da norma constante do artigo 68º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Penal, entendida em termos de apenas ser lícita a constituição de assistente pelos ascendentes do ofendido falecido quando inexistirem cônjuge sobrevivo, não separado judicialmente de pessoas e bens, e descendentes da vítima.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
4. A norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada é, pois, a constante do artigo 68º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal (redacção anterior à Lei nº 59/98, de 25 de Agosto), cujo teor é o seguinte:
1. Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas a quem leis especiais conferirem esse direito:
...
c) No caso de o ofendido morrer sem ter renunciado à queixa, o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens e os descendentes ou, na falta deles, os ascendentes, os irmãos e seus descendentes, o adoptante, o adoptado e a pessoa que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, salvo se alguma destas pessoas houver comparticipado no crime;
Disposição de teor semelhante era a do artigo 111º, nº 2, do Código Penal de 1982, que, no tocante ao direito de queixa, dispunha:
Se o ofendido morrer sem ter apresentado queixa nem ter renunciado a ela, o direito de queixa pertence ao cônjuge sobrevivo, não separado judicialmente de pessoas e bens, e aos descendentes e, na falta deles, aos ascendentes, irmãos e seus descendentes, salvo se alguma destas pessoas houverem comparticipado no crime.
5. O acórdão recorrido procedeu a uma interpretação do preceito em causa, considerando que o mesmo 'divide as pessoas com legitimidade para se constituir assistente no caso de morte do ofendido, em dois grupos', sendo um subsidiário do outro. E leva essa interpretação ainda mais longe, ao entender que mesmo que o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente, embora separado de facto, se não venha a constituir assistente, ainda assim não poderão os ascendentes do falecido (que não deixou descendentes) efectuar tal constituição, pois que integram aquele grupo subsidiário em relação ao primeiro.
Por fim, considerou-se ainda nesse aresto que, como lesado, o recorrente poderá sempre deduzir pedido de indemnização cível, assim se lhe reservando essa forma de actuação processual.
É esta interpretação daquela disposição legal - interpretação
'restritiva', nas palavras do recorrente - que o mesmo impugna, assacando-lhe a violação dos artigos 67º e 68º, 202º e 204º, da Constituição, e ainda a violação da Lei de Autorização Legislativa ao abrigo da qual foi elaborado o CPP.
6. Quanto á pretendida violação dos artigos 202º, nº 1 e 204º da CRP
(na numeração resultante da 4ª revisão constitucional - Lei Constitucional nº
1/97, de 20 de Setembro -, correspondentes aos anteriores 205º, nº 1 e 207º), dispõem esses preceitos o seguinte: Artigo 202º
(Função jurisdicional)
1. Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo.
[...] Artigo 204º
(Apreciação de inconstitucionalidade)
1. Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.
Pois bem, não se descortina aqui qualquer violação destas disposições, que se referem à função jurisdicional, não contendo a norma impugnada qualquer dimensão ou aspecto que conflitue com aqueles. Com efeito, nada na norma em causa questiona o papel dos tribunais ou impede a administração da justiça pelos mesmos, nem da mesma resulta a obrigação para os tribunais de aplicarem normas inconstitucionais.
Até porque diversa é a questão de saber se o tribunal a quo aplicou norma inconstitucional, pois tal resultará da resposta que este tribunal vier a dar à questão de inconstitucionalidade suscitada, por violação de outras normas constitucionais, pelo que nunca se poderia tratar, no caso do artigo 204º, de uma violação directa do mesmo.
Assim, não se verifica qualquer violação destes preceitos pelo artigo 68º, nº 1, alínea c), do CPP.
7. Pretende o recorrente que a norma estaria ferida de inconstitucionalidade orgânica, por desrespeitar os pontos 1, 3, 4 e 52 do nº 2 do artigo 2º da Lei nº 43/86, de 26 de Setembro (Lei de Autorização Legislativa) ao abrigo da qual foi elaborado o CPP.
Mas não lhe assiste razão.
Aquele nº 2 do artigo 2º dispõe, nos seus variados pontos, o sentido e extensão da autorização legislativa concedida ao Governo. Ora, nenhum dos pontos referidos inclui matéria referente à constituição de assistente, limitando-se o ponto 1 a, de forma genérica, impor ao sistema processual penal
«as finalidades de realização da justiça, de preservação dos direitos fundamentais das pessoas e de paz social», estabelecendo-se nos pontos 3 e 4, por sua vez, e respectivamente, os princípios da igualdade de armas e da máxima acusatoriedade do processo penal.
Ora, uma norma que define quais os sucessores da vítima que se poderão constituir assistentes no processo penal em nada desrespeita ou viola qualquer desses princípios.
E o mesmo se diga relativamente ao ponto 52, que se refere a uma faculdade conferida ao assistente - a faculdade de requerer a abertura da instrução, no caso de o Ministério Público se decidir pela não acusação - que se encontra expressamente acolhida pelo CPP.
Nenhum destes pontos da autorização legislativa se refere, pois, à matéria controvertida, muito menos se pode extrair de qualquer deles o sentido de deferir aos ascendentes da vítima a capacidade de se constituírem assistentes no processo penal, pelo que não ocorre qualquer violação dos mesmos.
8. Por fim, quanto à pretendida violação dos artigos 67º e 68º da Constituição, entende o recorrente que os ascendentes deveriam dispor da possibilidade de se constituírem assistentes em paridade com o cônjuge sobrevivo, 'porque a CRP protege e promove a coesão da família enquanto célula social baseada no contrato matrimonial, mas também (e sobretudo) enquanto unidade moral fundada na indestrutível unidade e perenidade consanguíneas. A condição de cônjuges depende de um negócio jurídico e pode terminar com uma simples manifestação de vontade das partes. A condição de pai ou de filho existe para sempre e nada a pode destruir'.
Entende, ainda, que o direito de os pais se constituírem assistentes ou está legalmente consagrado 'como um direito próprio daqueles que mais próximo estão da vítima' ou o está como 'reconhecimento de um direito adquirido por morte da vítima o qual adviria à esfera jurídica dos pais da vítima em virtude das regras estatuídas no art. 2133º do Código Civil'.
9. Convém, a este respeito, referir aqui as disposições adoptadas nesta matéria na vigência do Código de Processo Penal de 1929, e que constavam, antes de mais, do artigo 13º, nos seguintes termos:
No caso de morte, ausência sem notícias, menoridade ou outra incapacidade do ofendido para reger a sua pessoa, podem exercer a acção penal os ascendentes, descendentes, o cônjuge não separado de pessoas e bens, o viúvo, enquanto não passar a novas núpcias e, no caso de ausência ou de menoridade, também o legal representante do ausente ou do menor.
De forma semelhante dispunha o artigo 14º do anterior Código de Processo Penal, no tocante à legitimidade para a acção penal nos casos de crimes de que tivesse resultado a morte do ofendido.
Por sua vez, o Decreto-Lei nº 35007, de 13 de Outubro de 1945, que veio remodelar alguns princípios básicos do processo penal, teve como efeito a introdução de alterações ao que se dispunha naqueles preceitos, ao estabelecer no seu artigo 4º:
Podem intervir no processo como assistentes:
[...]
4º O cônjuge não separado de pessoas e bens, ou o viúvo, ou qualquer ascendente, descendente ou irmão, no caso de morte ou de incapacidade do ofendido para reger a sua pessoa;
[...]
10. A figura do assistente em processo penal surge, nos termos do artigo 69º, nº 1, do CPP, como a de 'colaborador' do Ministério Público, subordinando a sua intervenção no processo à actividade deste último. O que poderia levar - e muitas vezes leva -, a pensar-se que estamos apenas perante um mero auxiliar do Ministério Público, sem qualquer autonomia.
Só que não se pode aceitar uma concepção tão redutora; o assistente surge como um verdadeiro sujeito processual, com atribuições próprias, permitindo-lhe a lei, pelo menos em determinadas situações, agir sozinho ou até contra o Ministério Público (cfr., por ex., artigos 69º, nº 2, 287º, nº 1, b), e
401º, nº 1, b), do CPP). Ainda que com limites, é certo, os assistentes, pelo menos nessa medida, não subordinam totalmente a sua actuação à do MP.
Certo que ao MP compete o exercício da acção penal, colaborando com o tribunal na descoberta da verdade e na valorização do direito (cfr. artigo
53º, nº 1, do CPP). Mas, nos casos referentes a crimes particulares, a sua actividade encontra-se desde logo condicionada pela apresentação da queixa e constituição como assistente pelo ofendido, e nos crimes semi-públicos, depende também da formalização da queixa pelo ofendido. É nos crimes públicos - como o dos autos - que o MP não se encontra já condicionado por qualquer actividade do ofendido, passando a ser a intervenção do assistente desnecessária para desencadear ou prosseguir o processo; a intervenção do ofendido (ou seus representantes ou sucessores) passa a ser uma faculdade, na discricionariedade deste. Mas não fica como tal eliminada ou descaracterizada; como no próprio preâmbulo do CPP se pode ler, 'o reforço da consistência do estatuto do assistente, com a intenção manifesta de consolidar o papel de um dos protagonistas no campo da conflitualidade real', foi uma das tónicas deste sistema processual.
Assim, nos casos de acção penal por crimes públicos, as atribuições do assistente são as seguintes:
a) pode intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências necessárias;
b) pode deduzir acusação pelos factos acusados pelo MP, por parte deles ou por outros que não importem alteração substancial daqueles;
c) no caso de o MP não acusar - arquivamento do inquérito -, pode requerer a abertura da instrução;
d) pode interpor recurso das decisões que o afectem, mesmo que o MP o não faça.
11. O assistente distingue-se do lesado e do ofendido. Este só se torna sujeito processual quando se constitui assistente; o ofendido é o titular dos interesses que a lei quis especialmente proteger com a incriminação, enquanto o lesado é qualquer pessoa que tenha sofrido danos ou prejuízos com a prática do acto criminoso. Quase sempre - se não sempre- será o ofendido também um dos lesados, mas estes podem ser ainda outras pessoas, que não apenas o ofendido. Os meros lesados não poderão intervir no processo penal, a não ser como partes civis, no pedido de indemnização cível.
Trata-se, pois, de realidades e institutos totalmente diferentes, prosseguindo fins e atribuições distintas no processo penal; enquanto o ofendido, esse sim, é um mero participante processual, o assistente, tal como acima referido, é já um verdadeiro sujeito processual.
12. No caso de morte do ofendido, em resultado da prática do crime, coloca-se, pois, a questão de determinar quem terá legitimidade para prosseguir, no seu lugar, a representação dos seus interesses no processo penal - questão à qual a norma sindicada pretende dar resposta.
Importa, antes de mais, então, apurar se o direito a constituir-se assistente se encontra constitucionalmente reconhecido ou garantido. Ou – melhor dizendo – se a Constituição assegura uma intervenção autónoma dos ofendidos no processo penal, colaborando no exercício da acção penal, sendo certo que tal intervenção, nos termos da lei processual penal vigente, se concretiza na figura do 'assistente'.
O artigo 20º, nº 1, dispõe que «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos», o que, como este Tribunal tem entendido, implica o reconhecimento da garantia da via judiciária, a qual se estende necessariamente a todos os direitos e interesses legítimos, ou seja, a todas as situações juridicamente protegidas.
Assim, e como se pode ler no Acórdão nº 24/88, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., pág. 525 e segs.):
A articulação deste preceito com as injunções contidas no artigo
206º, onde, em termos genéricos, se prescreve que 'incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos', e no artigo
268º, nº 3, onde se garante aos interessados recurso contencioso, designadamente
'para obter o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido', impõe que dele se faça uma interpretação alargada, ou seja, no sentido de que a garantia judiciária assegura o acesso aos tribunais não só para defesa de direitos, mas também de interesses legalmente protegidos.
Nesta perspectiva, o que há que averiguar é se a constituição de assistente «põe judiciariamente em acto algum direito ou interesse juridicamente protegido», nos termos do Acórdão nº 24/88, citado, e no qual se respondeu pela forma seguinte:
E sem necessidade de lançar mão de outros argumentos que se poderiam extrair dos artigos 49º e 217º, nº 1, da Constituição ou da autonomia que o assistente goza em matéria de audiência, de interrogatório, de alegações e de recursos relativamente ao Ministério Público, pode desde já afirmar-se que a lei proteja o interesse do ofendido em contribuir para a sujeição a julgamento do ou dos autores do crime de que foi vítima.
Este interesse é juridicamente protegido através do próprio instituto do assistente e do direito à sua constituição e dos diversos poderes de intervenção processual que a lei, como se viu, amplamente lhe reconhece.
E a ponderação de que no caso de crimes públicos, a acção penal exercida para defesa do interesse público violado pela conduta criminosa, se há-de considerar como da própria comunidade, mercê da sua dimensão sócio-jurídica, não invalida que com este interesse possa coexistir um outro do ofendido, a que a lei dispensa protecção.
Há-de reconhecer-se, assim, a legítima existência de um interesse específico do ofendido em constituir-se assistente em processo penal, mesmo nos crimes públicos, e que encontra a sua consagração no artigo 20º da CRP. Densificando este entendimento, que se enraíza na tradição jurídica portuguesa, viria a revisão constitucional de 1997 a consagrar, de forma mais explícita, no novo nº 7 do artigo 32º da CRP, que «o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei», o que necessariamente implica uma colaboração no exercício da própria acção penal, que se não pode limitar a uma mera actuação como parte civil; e se esta alteração constitucional não tem relevância directa nos presentes autos, por a decisão recorrida lhe ser anterior, não deixa ela de iluminar a concepção jurídica que estava já subjacente ao preceituado no referido artigo 20º.
13. A própria consideração do papel da vítima e a preocupação sentida em salvaguardar os seus interesses no processo penal, de que tem sido eco o Conselho da Europa, nomeadamente através de várias recomendações no sentido da assistência às mesmas vítimas e suas famílias no decurso do processo penal, vem intensificar esse papel participador ou protagonista, em detrimento da mera passividade face ao desenrolar do processo penal.
Assim, e antes de mais, o Conselho da Europa elaborou a Convenção Europeia Relativa à Reparação das Vítimas de Infracções Violentas, que se encontra aberta à assinatura desde 24 de Novembro de 1983, e através da qual os Estados-membros se obrigam a adequar as suas legislação e prática administrativa
à efectivação dessa reparação. Entre outras, salientam-se ainda a Resolução nº
(77) 27, de 28 de Setembro de 1997, relativa à reparação às vítimas de infracções penais; a Recomendação nº R (83) 7, de 23 de Junho de 1983, sobre a participação do público na política criminal; ainda, a Recomendação nº R (85) 11, relativa à posição da vítima no âmbito do direito penal e do processo penal, na qual, o Comité de Ministros, considerando que os objectivos, entre outros, do sistema de justiça se exprimiram tradicionalmente, e antes de mais, em termos da relação Estado-delinquente e que, consequentemente, o funcionamento desse sistema tende por vezes a aumentar, em vez de diminuir, os problemas da vítima, e que uma função fundamental da justiça penal deve responder às necessidades da vítima e salvaguardar os seus interesses, faz aos Estados-membros uma série de recomendações sobre a posição da vítima no quadro do direito penal e do processo
(sobre o alcance desta recomendação, v. o artigo de Guido Casaroli in Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, ano XXX, fase 3, Julho-Setembro de 1987, pp. 623 e segs.). Por fim, a Recomendação nº R (87) 21, de 17 de Setembro de
1987, relativa à assistência às vítimas e a prevenção da vitimação.
Finalmente, também a Assembleia Geral das Nações Unidas adoptou a Resolução nº 40/34, de 29 de Novembro de 1985, contendo a «Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder».
O reconhecimento deste papel das vítimas, nomeadamente da existência de interesse ou interesses específicos necessariamente protegidos por lei, não implica a aceitação de um carácter «vindicativo» do processo penal, que sempre se encontrará necessariamente excluído, mas supõe, pelo menos, que se há-de reconhecer o direito a uma intervenção processual – no nosso sistema jurídico, o direito à constituição como assistentes.
14. Reconhecido assim o direito do ofendido a constituir-se assistente como incluído na esfera da garantia da via judiciária do artigo 20º, nº 1, da Constituição, necessariamente se há-de concluir pela existência de tal garantia para os que hão-de suceder ao ofendido nas respectivas relações pessoais que persistam após a sua morte, sob pena de a vítima, enquanto tal, não ser substituída, em tais casos, no processo penal.
Já a determinação de quais os sucessores, em concreto, que poderão exercer esse direito, é matéria que corresponde a uma opção do legislador, dentro dos parâmetros constitucionalmente definidos. Com efeito, diversas pessoas podem surgir com tal qualidade, no âmbito das relações familiares do falecido, designadamente os ascendentes, o cônjuge sobrevivo ou os descendentes.
Nesta perspectiva, enveredou o legislador claramente, no artigo 68º, nº 1, alínea c), do CPP de entre as perspectivas possíveis, por atribuir relevância prevalecente à família nuclear, ou seja, ao cônjuge e filhos, seguramente por entender serem estes os que têm uma relação mais íntima com o ofendido, e só atribuiu relevância secundária a outras pessoas como os ascendentes e os irmãos que poderiam preencher um conceito mais alargado de família, bem como às situações de união de facto.
Por outro lado, o legislador não atribuiu relevância à separação de facto dos cônjuges, mas apenas à separação judicial de pessoas e bens.
Esta norma do artigo 68º, nº 1, alínea c), do CPP, no que à posição do ascendente se refere, representa, assim, uma clara orientação do legislador num sentido mais restritivo do que aquele que fora adoptado no domínio do regime do CPP de 1929, que atrás se referiu.
15. O recorrente confronta a interpretação dada pelo acórdão recorrido à norma em apreço com o disposto nos artigos 67º e 68º da Constituição.
Pois bem, antes de mais haverá que concluir, como resulta da leitura dessas disposições, que as mesmas não são pertinentes para a matéria em causa, na parte em que dispõem e se referem às incumbências do Estado para protecção da família (artigo 67º, nº 2) e à paternidade e maternidade (artigo 68º), esta
última consagrando a essencialidade do papel dos pais para o desenvolvimento harmonioso das crianças, a par da realização dos próprios progenitores como pais e cidadãos activos.
Não é essa temática da protecção do Estado e do papel dos progenitores na educação dos filhos que está em causa pela norma constante do artigo 68º, nº 1, c), do CPP.
O que está em causa, antes, é determinar qual o âmbito do conceito de família adoptado pela Constituição, e ao qual se refere o nº 1 do artigo 67º, para então determinar se a prevalência absoluta atribuída pelo legislador ordinário no âmbito do processo penal, à família nuclear - cônjuge e filhos - conflitua ou não com o entendimento constitucional.
Ou seja, a norma constitucional com que se há-de confrontar a norma vertida no artigo 68º, nº 1, alínea c), do CPP, é a do artigo 67º, nº 1, da CRP, a qual dispõe:
A família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros.
Importa, então, densificar esse conceito de família no sentido de apurar se o mesmo apenas se reporta ao conceito da família nuclear, atrás definido, ou se tem em mira um conceito mais alargado de família.
16. A distinção constitucional entre família, por um lado, e matrimónio por outro, referida no artigo 37º, nº 1, e ainda entre aquela e os conceitos de paternidade e maternidade, operada nos artigos 67º e 68º, em nada dificulta, antes parece espelhar um entendimento e reconhecimento da família como uma realidade mais ampla do que aquela que resulta do casamento, que pode ser denominada de família conjugal. Assim, as referências ao «agregado familiar», aos «equipamentos sociais de apoio à família», como a uma «política de terceira idade» (cfr. artigo 67º, alíneas a) e b)), são alguns dos índices que relevam a expressa admissão de duas realidades complementares: por um lado, o conjunto nuclear formado pelos cônjuges e descendentes, e, por outro, o conjunto resultante das ligações familiares dos próprios cônjuges - e na primeira linha dos quais se inserirão os ascendentes destes, mas também os irmãos, designadamente.
A recente evolução da tradicional família alargada, característica essencialmente do meio rural, bem como de outras «fórmulas» familiares tem sido exaustivamente analisada e inventariada pela doutrina (cfr., por ex., Antunes Varela, Direito da Família, Lisboa, 1987, Eduardo dos Santos, Direito da Família, Coimbra, 1985, Pereira Coelho, Direito da Família, Coimbra, 1981, e ainda o seu estudo «Casamento e Família no Direito Português», Temas de Direito da Família, Coimbra, 1986, Diogo Leite de Campos, Direito da Família e das Sucessões, Coimbra, 1990, entre outros), concluindo esta pela tendencial
«redução» da família moderna à família conjugal ou nuclear, ou seja,
«circunscrita ao seu núcleo irredutível» (cfr. Antunes Varela, op. cit., pág.
38), e caracterizada pelo progressivo esbatimento dos laços do parentesco colateral.
Mas assim como se reconhece constitucionalmente a importância dessa família nuclear ou conjugal, dessa célula essencial, não se está com isso a rejeitar protecção ou a deixar de reconhecer as restantes relações familiares, derivadas dos laços de parentesco, de consanguinidade e mesmo de afinidade. Deve, com efeito, entender-se que a referência constitucional à família - fundamentalmente no artigo 67º, nº 1, da CRP -, para além do mais, consagra o expresso reconhecimento constitucional dos laços familiares de parentesco, ou seja, consagra um conceito mais alargado de família, que poderemos designar de família-estirpe, ou família-linhagem (cfr. Eduardo dos Santos, ob. cit.).
E se a importância e relevância constitucional da família nuclear é um dado irrefutável, resulta do exposto que o legislador constitucional não ignorou este conceito alargado da família estirpe como também merecedor de tratamento e protecção, reconhecendo a sua importância para o desenvolvimento harmonioso da sociedade e dos cidadãos. Se a família nuclear é o primeiro círculo social do indivíduo, é nas relações familiares, na descoberta da pertença a um grupo marcado ou definido pelos laços sanguíneos e de afinidade que o indivíduo prossegue o seu desenvolvimento humano e social, que estabelece as primeiras relações sociais, enfim, descobre a sua identidade, e as suas raízes. Ignorar tal realidade seria negar a própria colectividade.
Assim sendo, não seria legítimo ao legislador ordinário afastar, pura e simplesmente, os ascendentes do ofendido, em caso de morte deste, da possibilidade de se constituírem assistentes no processo penal.
16. De tal reconhecimento não decorre necessariamente a obrigatoriedade para o legislador de tratar de forma idêntica aqueles dois conceitos de família, pois têm diferentes planos de consagração constitucional, espelhando, aliás a realidade social e a diversidade das respectivas funções.
Assim, também não se afigura que esteja a priori vedado ao legislador optar pelo cônjuge sobrevivo como aquela pessoa que, dentro desse núcleo familiar (ainda que entendido de forma abrangente), se encontrava em mais
íntima e estreita ligação com o falecido, para prosseguir os interesses visados pela constituição de assistente em processo penal, concedendo-lhe prioridade no exercício desse direito.
Dir-se-á até que tal opção vem na linha do expresso reconhecimento constitucional da prevalência da família nuclear.
A questão que se coloca, então, é tão-só a de apurar da relevância da separação de facto nos casos de desagregação daquela família nuclear. Ou seja, rompendo-se os laços de facto que uniam os cônjuges, ainda que não tenham legalizado tal rompimento, através da separação judicial, deverá continuar a privilegiar-se a posição do cônjuge sobrevivo como detentor da relação mais próxima, mais íntima com o falecido?
A verdade é que as relações de proximidade que fundamentam a opção pela absoluta prevalência ao cônjuge sobrevivo se encontram, nessa situação, profundamente abaladas, podendo mesmo ser totalmente inexistentes, sobretudo nos casos em que a respectiva união não deixou descendentes. Tal afastamento de facto terá muitas vezes, se não quase sempre, como consequência que o cônjuge sobrevivo não manifeste qualquer interesse em agir processualmente, considerando-se totalmente estranho à questão.
Com efeito, não se pode ignorar que, cada vez mais, na sociedade actual, por largas camadas da população, o casamento deixa de ser encarado como uma instituição acima dos próprios cônjuges, para assumir as características de uma instituição que apenas permanece enquanto ambos, de forma livre, a reconhecerem como fonte de afecto e realização pessoal. Tal não se verificando, essa mútua vontade de vida em comum pode cessar, de modo tão voluntário como se iniciou, enquanto que os laços de consanguinidade como os que ligam pais e filhos revestem características indissolúveis, pela sua própria natureza de proximidade e ligação.
Ora, no âmbito de uma tal realidade social, forçoso é reconhecer que a quebra da vida em comum, ainda que traduzida pela mera separação de facto, implica uma ruptura das relações conjugais com dimensão suficiente para que a ordem jurídica a deva ter em consideração para determinados efeitos, à semelhança, aliás, com o que acontece, em sentido inverso, com as denominadas uniões de facto.
Impedir, nestas hipóteses, o direito de constituição como assistentes aos ascendentes do falecido significa, portanto, negar de forma injustificada a possibilidade de actuação ou expressão dos interesses que se pretendem prosseguir com tal instituto, o que se revela, nesta perspectiva, atentatório do artigo 20º, nº 1, da Constituição, quando conjugado com o preceituado no seu artigo 67º, nº 1.
III - DECISÃO
17. Nestes termos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 20º, nº 1, conjugado com o artigo 67º, nº 1, da Constituição, a norma constante do artigo 68º, nº 1, alínea c), do CPP, quando interpretada no sentido de não admitir a constituição como assistentes, em processo penal, aos ascendentes do ofendido falecido, quando lhe haja sobrevivido cônjuge separado de facto, embora não separado judicialmente de pessoas e bens, e não tenha descendentes;
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso. Lisboa, 15 de Dezembro de 1998 Luis Nunes de Almeida Messias Bento José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Beleza Bravo Serra
(vencido. Para além de não subscrever a ideia de que, na versão anterior à Revisão Constitucional de 1997, da Lei Fundamental e, designadamente do seu artigo 20º decorra com «direito de intervenção processual» do ofendido no processo criminal, não se me afigura líquido que se possa fazer apelo a diferenciados conceitos de «família nuclear» e de «família estirpe» para, com base neles, se aferir da conformidade ou não conformidade com o Diploma Básico de uma mesma norma, consoante a concreta situação fáctica a que ela se deva subsumir . Assim, e em face desse não afigurar, daquele que, por tal fundamento, a norma sub iuditio não deveria ser julgada inconstitucional.
Entendo, porém, que a aludida norma deve ser julgada inconstitucional por ofensa do princípio da igualdade, postulado pelo artigo 13º da Lei Fundamental, pois que, na minha óptica, concorrendo à sucessão do ofendido, com 'igualdade qualitativa', o cônjuge sobrevivo e os ascendentes, na falta de descendentes, não vislumbro razões para afastar os segundos, no caso do
óbito do ofendido do 'direito' de se constituírem assistentes, independentemente ou não de o cônjuge sobrevivo ter exercido esse 'direito') José Manuel Cardoso da Costa