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Processo nº 760/98
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A - Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça (1ª Secção), em que são recorrente A...,Ldª, e recorrida a Caixa Geral de Depósitos, S.A, proferiu o Relator a fls. 365 e seguintes a DECISÃO SUMÁRIA que se segue:
'1. A...,Ldª, com os sinais identificadores dos autos, veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional, 'ao abrigo do artº 70º, nº 1, b da Lei nº
28/82, de 15/11', do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (1ª Secção), de 2 de Junho de 1998, que negou provimento ao recurso de agravo por ela interposto, confirmando o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 8 de Maio de 1997 (e neste foi decidida a revogação do despacho do tribunal da primeira instância, que havia ordenado a restituição, a título provisório, da posse da unidade hoteleira Hotel X, sito na Praia da Rocha – Portimão, e de outros bens então discriminados).
2.No seu requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade invoca a recorrente 'os seguintes fundamentos':
‘a) O artigo 316º, b do Código do Processo Tributário é decisivo para a compreensão da essência do presente processo, uma vez que da sua eventual conformidade ou desconformidade com os princípios e normas constitucionais deriva a validade ou nulidade da remoção e substituição do fiel depositário pelo Chefe da Repartição de Finanças, questão esta que se revela nuclear nos presentes autos. b) Os Venerandos Supremo Tribunal Administrativo e Tribunal da Relação de Évora consideraram constitucional a referida norma, o primeiro de forma directa, o segundo por omissão de pronunciamento. c) Ora, o mencionado artº 316, b do C.P.T. viola o artº 205º, nº 2 da CRP, pelas razões que oportunamente se alegarão. A inconstitucionalidade da norma em questão foi suscitada nas contra-alegações da recorrente apresentadas no Tribunal da Relação de Évora (nºs 16 a 20 e Conclusão D, b) e nas alegações de recurso apresentadas no Supremo Tribunal Administrativo (nºs 30 e 31 e Conclusão L).
3.Dos autos colhe-se, com interesse para a decisão, a seguinte seriação de actos processuais:
3.1.Por decisão do Mmº Juiz do Tribunal Judicial da comarca de Portimão, de 27 de Maio de 1994, foi ordenado que se procedesse 'à restituição à requerente (ora recorrente), a título provisório, da posse' de uma unidade hoteleira e do respectivo equipamento, com o fundamento, entre o mais, de que 'ela foi esbulhada da sua posição por meio de violência', face a este quadro fáctico:
‘No dia 15 de Dezembro de 1993, o requerido J. R. apresentou-se nessa unidade hoteleira acompanhado por dois funcionários da Repartição de Finanças de Portimão, por três guardas da P.S.P. e por outras pessoas para dar cumprimento ao despacho do chefe dessa Repartição, de 25-11-93, que o designava como depositário num processo de execução em que é executada R....,S.A.. A requerente pretendeu fazer valer a sua qualidade de legítima mandatária e titular da exploração daquela unidade hoteleira, vincando que era alheia ao processo de execução subjacente à nomeação do requerido como depositário. O requerido, porém, não atendeu a qualquer razão e deu ordem à administração da requerente para abandonar as instalações, privando-a, contra a vontade dela, de gerir o estabelecimento hoteleiro. O requerido assumiu, contra a vontade da requerente, a gestão da unidade hoteleira. Por outro lado, chamou à esfera da sua gestão os bens e valores da lista junta a fls. 12-39 e da lista junta a fls. 40-47, os quais não constam do auto de penhora e pertencem à requerente, tendo sempre estado na sua detenção material’.
3.2.Interposto recurso de agravo dessa decisão pela Caixa Geral de Depósitos, S.A., foi-lhe concedido provimento, por acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 8 de Maio de 1997, 'revogando-se o despacho agravado', por se concluir que
'partiu de pressupostos errados para chegar a conclusões distorcidas'. Nesse acórdão, depois de se ponderar que são as 'conclusões das alegações, que delimitam o âmbito do recurso (artºs 684 nº3 e 690 nº 1 do Cód. P. Civil)', e afastada a razão da recorrente quanto à 'competência do Tribunal comum para apreciar a providência cautelar', passou-se à verificação, em concreto, dos
'requisitos de que a lei fez depender a restituição provisória, ou sejam a posse, o esbulho e a violência' (e, por esta ordem, começou por entender-se que
'não é de modo algum exacto que os factos permitam concluir, mesmo nos limites do juízo de mera probabilidade que o processo cautelar implica, que a agravada A....,Lda. seja sequer aparentemente titular do direito que invoca', e, quanto ao esbulho,' o que se demonstra é que o alegado esbulho consistiu na entrega do bem penhorado ao fiel depositário nomeado em processo de execução fiscal, dando-se assim cumprimento ao mandado para tanto exarado e nada mais', acrescentando-se ainda: 'Claro que a agravada pode entender que aquele mandado viola a lei e os seus direitos, mas se assim é deverá reagir como melhor entender e a lei lhe facultar no próprio processo onde tal violação tenha ocorrido e nunca através do expediente da restituição provisória de posse, que não tem cabimento em tais circunstâncias').
3.3.A recorrente interpôs então recurso de agravo desse acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça, elencando, nas suas alegações, entre o mais, quatro questões que 'deveriam ter sido apreciadas' e não o foram no acórdão, o que determinaria a sua nulidade, nos termos do artigo 668º nº 1, d), do Código de Processo Civil, sendo uma delas a da 'inconstitucionalidade material do artº
316, al. b do Cód. Proc. Tributário invocada pela ora recorrente'.
3.4.No Supremo Tribunal de Justiça, o acórdão recorrido, relativamente às tais quatro questões, começa por registar que todos elas foram 'suscitadas (apenas) nas contra alegações da então recorrida A...,Lda. no recurso que a Caixa Geral de Depósitos interpôs da decisão da 1ª instância', sendo, 'pelo menos, duvidoso que essas questões devessem ter sido apreciadas pelo acórdão recorrido’. Depois, e quanto à 'invocada (nas contra-alegações) inconstitucionalidade material do artigo 316º, alínea b) do Código de Processo Tributário (aprovado pelo Decreto-Lei nº 154/91, de 23 de Abril), segundo a qual ‘O depositário poderá ser oficiosamente removido pelo chefe da repartição de finanças', o acórdão faz-lhe uma 'referência específica', manifestando a dúvida de que 'no presente caso, caiba (...) recurso para o T.C.', mas acrescentando:
‘No entanto, sempre se dirá, numa abordagem e ponderação necessária e compreensivelmente muito superficiais da questão, que não nos parece que a citada norma viole o disposto no artigo 202º, nº 2, da CRP (que corresponde, após a 4ª Revisão, ao anterior artigo 205º, nº 2 – norma invocada pela recorrente)’ (segue-se a demonstração de que inexiste vício de inconstitucionalidade).
4. Objecto relevante deste tipo de recurso de constitucionalidade tem de ser uma questão de (in)constitucionalidade de norma efectivamente aplicada, constituindo, pois, neste sentido, a ratio decidendi da decisão, o fundamento normativo do julgamento da causa. Não há, portanto, objecto relevante quando tal questão é mencionada como simples obter dictum, como é jurisprudência corrente do Tribunal Constitucional. Por consequência, tem de extrair-se sempre um qualquer efeito jurídico útil da eventual confirmação ou alteração do juízo de (in)constitucionalidade proferido pelo tribunal a quo. E é esse efeito que no presente caso não se colhe. Na verdade, e como se regista no acórdão recorrido, decidindo-se na segunda instância 'além do mais, que a Algarocha não é, sequer aparentemente, titular do direito que invoca (não se verificando, pois, o primeiro - posse - dos requisitos enunciados no artigo 393º do CPC), e que a penhora, registada a
29.9.92, é posterior ao trespasse do Hotel para a A...,Lda., passando desde aquela data a produzir efeitos em relação a terceiros (artigo 838º, n.º 4 - cfr. também o artigo 819º do Código Civil), justifica-se concluir que resultou prejudicada a resolução daquelas outras questões' (as tais quatro questões já referidas). Assente, pois, na linha do entendimento do acórdão do tribunal de relação, que, inexistindo violência, 'nunca a restituição provisória de posse deveria ter tido lugar' – para além de ter ficado ainda assente que a recorrente não é 'sequer aparentemente titular do direito quer invoca' – e movendo-se o acórdão unicamente no campo dos vícios de nulidade processual invocados pela recorrente, nenhuma utilidade poderia derivar de um juízo de inconstitucionalidade relativo
à norma do artigo 316º, b), do Código de Processo Tributário.
É que, em todo o caso, mesmo que tivesse que ser reformulado o acórdão do tribunal de relação, na sequência de tal juízo, sempre se manteria o julgamento de não verificação, em concreto, dos requisitos de que a lei fez depender a restituição provisória, desde logo, a posse, o qual não foi censurado no Supremo Tribunal de Justiça (pelo contrário, até 'justifica-se concluir que resultou prejudicada a resolução daquelas outras questões', como já ficou dito). Portanto, e ao contrário do que afirma a recorrente, aquele questionado artigo
316º, b), não é decisivo 'para a compreensão da essência do presente processo', na medida em que a questão nuclear é outra, a da verificação em concreto, dos requisitos de que a lei fez depender a restituição provisória da posse e ela está resolvida já quanto à titularidade da recorrente, sequer aparente, do direito que invoca. Tanto basta para concluir que não se pode tomar conhecimento do recurso, por faltar o pressuposto da efectiva aplicação da norma em causa no acórdão recorrido, no sentido expendido, antes assumindo a 'referência específica' do acórdão à questão da inconstitucionalidade a natureza de obter dictum.
5. Termos em que, ao abrigo do disposto no artigo no artigo 78º-A, nº 1 da mesma Lei nº 28/82, aditado pelo artigo 2º, da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, e na redacção do artigo 1º, da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, não tomo conhecimento do presente recurso'. B – Não se conformando com essa DECISÃO, veio a recorrente da mesma 'reclamar para a Conferência da 2ª Secção desse Venerando Tribunal', pedindo que 'seja conhecido e julgado o presente recurso' e alinhando, para o efeito, as razões a seguir sintetizadas:
- o acórdão recorrido, debruçando-se sobre a questão de que a recorrente 'não é, sequer aparentemente, titular do direito que invoca', colocou-se 'na linha de entendimento do douto acórdão do Tribunal da Relação, cujo teor envolvente se inclina no sentido de essa titularidade não ter sido posta em causa, de forma decisiva e definitiva', pois 'aquela asserção do STJ resulta de expressões não conclusivas do acórdão da Relação' (e transcrevem-se algumas delas), as quais revelam, 'com particular relevo, a natureza discursiva e não decisória, que a Relação quis imprimir à questão em causa'.
- 'A questão efectivamente examinada e resolvida pela Relação, de forma decisória, foi a da ausência de violência e subsequente inexistência de esbulho
(no seu entender)', seguindo-se a transcrição de passagens do acórdão daquele Tribunal para demonstração do afirmado, resultando 'evidente que o acórdão da Relação revogou o despacho agravado por ter considerado que não existiu violência e, consequentemente, no seu douto entendimento, não se preencheu o requisito ‘esbulho’'.
- 'Os referidos douto arestos, ao examinarem a questão da existência da violência, ponderaram e aplicaram, implicitamente, o artº 316, al. b) do C.P. Tributário – que, em nosso entender, não se conforma com o artigo 202º, nº 2 do CRP -, uma vez que: a. foi com base no referido preceito que o Chefe de Repartição de Portimão nomeou fiel depositário o Dr. J. R., que tomou conta da gestão do hotel contra a vontade da ora reclamante; b. decidindo, como decidiram, pela inexistência de violências considerar o referido artº 216º, al. b), conforme à Constituição; c. Se os Excelentíssimos Julgadores tivessem considerado tal imperativo legal ferido de inconstitucionalidade, então teriam, necessariamente, de se pronunciar pela existência de violência moral e consequente esbulho, reconhecendo a razão da A....,Lda.' C. A recorrida não apresentou resposta. D. Cumpre decidir (nºs 3 e 4 do artigo 78º-A, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, aditado pelo artigo 2º, da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, e na redacção dada pelo artigo 1º da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro). Pese o esforço argumentativo da reclamante, não surte ele efeito, porque ao contrário do que vem sustentado, a 'questão efectivamente examinada e resolvida pela Relação, de forma decisória', não foi só 'a da ausência de violência e subsequente inexistência do esbulho', com a qual se prenderia eventualmente a questão da pretensa inconstitucionalidade da norma do artigo 316º, b), do Código de Processo Tributário. Com efeito, a mesma Relação também se debruçou sobre a questão da titularidade do direito que a recorrente invoca ( e em termos claros de considerar que 'não é de modo algum exacto que os factos permitam concluir, mesmo nos limites do juízo de mera probabilidade que o processo cautelar implica, que a agravada Algarocha seja sequer aparentemente titular do direito que invoca') e, mesmo admitindo que não o fez 'de forma decisiva e definitiva', como diz a reclamante, ela – a dita questão – foi efectivamente ponderada no acórdão recorrido, aceitando e bem o Supremo Tribunal de Justiça que vinha decidido que, 'além do mais, que a A...,Lda. não é, sequer aparentemente, titular do direito que invoca (não se verificando, pois, o primeiro - posse - dos requisitos enunciados no artigo 393º do CPC), e que a penhora, registada a 29.9.92, é posterior ao trespasse do Hotel para a A....,Lda., passando desde aquela data a produzir efeitos em relação a terceiros (artigo 838º, n.º 4 - cfr. também o artigo 819º do Código Civil)' (e daí a afirmação seguinte de que se justifica 'concluir que resultou prejudicada a resolução daquelas outras questões', entre elas, contando-se a questão da
'inconstitucionalidade material do art. 316, al. b do Cód. Proc. Tributário'). Sendo isto assim, reitera-se o que se concluiu na DECISÃO SUMÁRIA quanto à falta do pressuposto da efectiva aplicação da norma em causa no acórdão recorrido, pois – e voltando a repetir – 'sempre se manteria o julgamento de não verificação, em concreto, dos requisitos de que a lei fez depender a restituição provisória, desde logo, a posse, o qual não foi censurado no Supremo Tribunal de Justiça (pelo contrário, até 'justifica-se concluir que resultou prejudicada a resolução daquelas outras questões', como já ficou dito)', resultando assim, inútil qualquer julgamento de (in)constitucionalidade, conclusão que não foi minimamente abalada com a posição agora tomada pela reclamante. E. Termos em que, DECIDINDO, indefere-se a reclamação e não se toma conhecimento do recurso, condenando-se a reclamante nas custas com a taxa de justiça fixada em 15 unidades de conta. Lx. 2.12.98 Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa