Imprimir acórdão
Proc. nº 691/01 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – A ..., com os sinais dos autos, reclama para a conferência da decisão sumária que não conheceu do objecto do recurso por ele interposto, ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea b) da LTC.
Escreveu-se na referida decisão sumária:
1 – No Tribunal da Comarca de Santa Maria da Feira corre termos um processo de falência contra Ó..., Lda., em cujo apenso de reclamação de créditos ficou determinada a graduação de créditos. para se proceder ao pagamento dos créditos reconhecidos pelo produto dos bens da massa falida, nos termos seguintes:
- No que se reporta ao produto da venda de um determinado prédio urbano hipotecado: a) em primeiro lugar, os créditos correspondentes a salários e indemnizações por despedimento de trabalhadores da empresa falida, com preferência sobre os restantes créditos; b) em segundo lugar, o crédito relativo à hipoteca voluntária constituída sobre aquele prédio urbano, por A ...; c) em terceiro lugar, os restantes créditos reconhecidos, se necessário rateadamente.
- No que respeita ao produto da venda dos demais bens da massa falida, quer móveis quer imóveis: a) em primeiro lugar, os créditos correspondentes a salários e indemnizações de trabalhadores da em presa falida, com preferência sobre os restantes créditos; b) em segundo lugar, os restantes créditos reconhecidos, se necessário rateadamente.
Pretendendo que o seu crédito hipotecário fosse graduado em primeiro lugar, o referido A ..., interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, formulando, nas suas alegações, entre outras, as seguintes conclusões:
“7ª. A sentença mostra-se ferida de inconstitucionalidade na medida em que contraria a liberdade de iniciativa económica prevista na Constituição, ao conceder privilégios creditórios que são a negação da autonomia privada e uma intromissão ilegítima na regularidade do comercio jurídico.
8ª. Assim como fere a igualdade dos cidadãos perante a Lei, ao diferenciar pessoas em classes jurídicas distintas.
........................................................................................................
10ª. A douta decisão sobre recurso violou as normas referidas no corpo destas alegações, designadamente: - o art. 12º da Lei 17/86; os arts. 11º, 686º, 691º,
695º, 743º, 744º, 747º, 748º do Código Civil; o art. 8º da Lei Preambular do Código Civil (Decreto-Lei nº. 47344, de 25 de Novembro de 1966); CPEREF, arts.
188º, 200º, 209º, 216º; e 13º, 61º, 62º, 80º c), 86º, da Constituição da República Portuguesa.”
Naquela instância, foi proferido o acórdão de fls. 96 e segs. que julgou a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.
Inconformado com a decisão, dela recorreu o mesmo recorrente para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo produzido alegações, em cujas conclusões reproduziu inteiramente o teor daquelas que acima foram transcritas.
Pelo acórdão de fls. 205 e segs. o STJ negou a revista, confirmando o aresto impugnado.
É deste acórdão que vem interposto, por A ..., o presente recurso de constitucionalidade ao abrigo do artigo 70º nº. 1 alínea b) da LTC, com vista à apreciação da inconstitucionalidade da norma do artigo 12º da Lei nº. 17/86, de
14 de Junho (Lei dos Salários em Atraso), que, segundo o recorrente, viola os artigos 13º, 61º, 62º, 80º, alínea c) da CRP e os princípios constitucionais da igualdade e da iniciativa privada.
Cumpre decidir.
2 – No referido requerimento de interposição de recurso, diz o recorrente ter suscitado a questão de constitucionalidade da norma do artigo 12º da Lei dos Salários em Atraso nas alegações da apelação para o Tribunal da Relação do Porto e nas alegações da revista para o Supremo Tribunal de Justiça.
Não o fez, porém, limitando-se a imputar uma suposta inconstitucionalidade, primeiro, à sentença do tribunal de 1ª instância, e, depois, ao acórdão da Relação do Porto.
É o que claramente resulta, em ambos os casos, da 7ª conclusão das alegações do recorrente, acima transcrita, (“A sentença mostra-se ferida de inconstitucionalidade na medida em que (...)”) e ainda da 10ª conclusão (também transcrita): “A douta decisão sobre recurso violou as normas (...)”, sendo certo que, em parte alguma do texto dessas alegações, levantou especificamente a questão da constitucionalidade da norma do artigo 12º da Lei nº 17/86
Ora, quando o artigo 70º nº 1 alínea b) da LTC impõe a suscitação da inconstitucionalidade durante o processo reporta-se, sem margem para dúvidas, à norma cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional e não à decisão judicial que a tenha aplicado - é jurisprudência constante e pacífica deste Tribunal.
Falece, assim, um dos pressupostos de admissibilidade do presente recurso.
3 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 Ucs.”
2 - É esta decisão que vem reclamada, alegando o reclamante, em síntese, que:
A fiscalização concreta de constitucionalidade compreende a apreciação de normas, ou também de uma sua interpretação judicial, sendo esta que está em causa no presente recurso;
Mal ou bem suscitada pelo recorrente, certo é que o STJ conheceu no acórdão recorrido da questão de constitucionalidade;
De todo o modo, sempre seria de o Tribunal Constitucional conhecer do recurso por força do disposto no artigo 672º do CPC.
Na sua resposta, os recorridos particulares sustentam o indeferimento da reclamação.
Cumpre decidir.
3 – Em primeiro lugar, é impertinente argumentar com os poderes de cognição do Tribunal Constitucional no sentido de que este deve conhecer, em fiscalização concreta de constitucionalidade, de “interpretações normativas”.
Com efeito, em parte alguma na decisão sumária reclamada se afirmou o contrário.
O que disse – e é coisa bem diversa – foi que o reclamante imputou a inconstitucionalidade à própria decisão judicial; e o Tribunal Constitucional, se aprecia a constitucionalidade de normas (ou de uma sua interpretação), já não o faz relativamente às decisões judiciais, pois não está previsto no nosso ordenamento jurídico um recurso de amparo.
E o reclamante não tem, ainda, razão quando pretende fazer valer o facto de o acórdão recorrido se ter pronunciado sobre a questão de constitucionalidade.
Escreveu-se, a propósito, no acórdão nº 119/2000 (inédito):
“Só que não basta que nas instâncias se haja eventualmente “apreendido o sentido inconstitucional” com que as normas em causa teriam sido pretensamente interpretadas e aplicadas, ou que se haja percebido “o sentido em que a Recorrente entende que tais normas deveriam ter sido interpretadas pelo Tribunal”(...)”, talqualmente ele se expressa, pois uma e outra coisa têm de ser avançadas minimamente na peça processual adequada (...) pela parte interessada na arguição da questão de inconstitucionalidade.”
Com efeito, a exigência de a parte suscitar a questão de constitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida consta do artigo 72º da LTC, significativamente epigrafado de “Legitimidade para recorrer”.
Trata-se, pois, de um ónus processual que assegura a legitimidade para recorrer. Não está em causa o vencimento quanto à decisão recorrida, mas apenas relativamente à questão de constitucionalidade e, quanto a esta, só pode considerar-se vencida a parte que a suscitou – não é, assim, decisivo, para este efeito, que o acórdão recorrido haja conhecido da questão de constitucionalidade quando esta não tiver sido suscitada de modo processualmente adequado.
Aliás, já os recorridos particulares haviam levantado, em contra- alegações para o STJ, a questão da não suscitação da questão de constitucionalidade de modo adequado
Não se vê, ainda, que o artigo 672º do CPC possa valer às pretensões do recorrente, sendo certo que a LTC previu os remédios de aperfeiçoamento legalmente viáveis (artigo 75º-A); de resto, é, por sua natureza, insanável, nesta fase, o incumprimento de um ónus a que se deve observância antes de proferida a decisão recorrida e na peça processual adequada.
4 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs. Lisboa, 27 de Fevereiro de 2002 Artur Maurício Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa ( vencido, nos termos da declaração de voto junta)
Declaração de voto
1. Votei vencido – entendendo que devia considerar-se como suscitada pelo recorrente, logo perante a Relação, como, depois, perante o Supremo Tribunal de Justiça, uma questão de inconstitucionalidade “normativa” e, concretamente, a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 12º da Lei n.º 12/76, na dimensão e na interpretação questionada por aquele (enquanto consagra um privilégio imobiliário geral com prevalência sobre hipoteca registada).
È certo que, na conclusão 6ª da alegação para o Supremo Tribunal de Justiça, se diz, literalmente, que “a sentença [grifou-se] mostra-se ferida de inconstitucionalidade”; e também é certo que em nenhum outro lugar dessa alegação (ou da produzida perante a Relação) se utiliza uma fórmula em que a inconstitucionalidade seja referida àquele preceito legal eo nomine. Simplesmente – e para além de logo na dita conclusão se ligar a afirmada inconstitucionalidade da “sentença” ao facto de ela “reconhecer privilégios creditórios” negadores da autonomia privada e da regularidade do comércio jurídico – acresce que no ponto 7 do corpo da mesma alegação já se imputa a inconstitucionalidade aos “privilégios creditórios em causa” (como é visível, quando se diz que são eles que agridem os princípios da iniciativa privada e da segurança) – ou seja, a esse “instituto”, e não à “decisão” que o aplica ou a ele recorre. Ora, a inconstitucionalidade de um instituto é, necessariamente, a da norma ou normas que o estruturam – o que significa que aí, ao menos, o recorrente invocou, também necessariamente, uma inconstitucionalidade normativa
(sublinhe-se, a propósito, que na jurisprudência do Tribunal não se tem considerado absolutamente imprescindível que a suscitação da inconstitucionalidade vá expressis verbis às conclusões da peça processual produzida no tribunal a quo). Por outro lado, nos recursos interpostos pelo então apelante, e ora também recorrente, junto do Tribunal da Relação do Porto e do Supremo Tribunal de Justiça, a única questão jurídica (questão “principal”) em discussão era a do
âmbito (créditos que abrange) e do alcance (lugar de graduação desses créditos) do privilégio imobiliário geral previsto no artigo 12º [nº1, alínea b)] da Lei n.º 17/86: nenhuma outra aí estava, e esteve alguma vez, em causa. Ora, neste contexto, não pode haver nenhuma dúvida de que a questão “incidental” de inconstitucionalidade naquela enxertada se reportava ao dito privilégio
(recte, à sua prevalência sobre a hipoteca), ou seja, à norma do artigo 12º da Lei n.º 17/86 que o prevê (com aquele sentido). Ao que acresce – entendo, e em termos de doutrina geral, que não pode deixar de atribuir-se relevância ao ponto – que, havendo o recorrente juntado com a sua alegação um parecer jurídico, destinado naturalmente a apoiar a sua tese, também neste parecer se suscita e sustenta directa e expressamente (em último termo: cfr. nº 18,IV) a inconstitucionalidade do privilégio imobiliário geral estabelecido naquele preceito, se entendido como prevalecendo sobre a hipoteca. E tanto foi assim – tanto não podia haver dúvida quanto ao conteúdo ou sentido da questão de inconstitucionalidade que vinha levantada – que o Supremo conheceu dela nos precisos termos supra descritos. Ou seja: não só conheceu da questão de inconstitucionalidade que o recorrente suscitara (e havia evidentemente de fazê-lo, sob pena de omissão de pronúncia), como a apreciou, expressa e inequivocamente, enquanto questão de inconstitucionalidade normativa, reportada ao artigo 12º da Lei n.º 17/86 (fls. 212 dos autos). A meu ver, havia, pois, que não valorizar (ou que desvalorizar) o teor literal da atrás referida conclusão 6ª da alegação do recorrente junto do Supremo Tribunal de Justiça, e dar todo o relevo ao facto de estar posta nos autos uma questão que, em si, e estruturalmente, se perfila como de inconstitucionalidade
“normativa”, questão essa, além disso, relativa a uma norma que não pode duvidar-se qual seja, e questão, por último, de que o tribunal a quo conheceu. Sendo assim, entendi (e com toda a convicção) que o recorrente havia preenchido, ao alegar perante o Supremo Tribunal de Justiça, seja o requisito (de admissibilidade do recurso para este Tribunal) que consiste em se suscitar durante o processo a questão de inconstitucionalidade, seja o de essa questão se reportar a uma norma jurídica. Ou seja: entendi que suscitou uma tal questão de modo suficiente para ainda se haver como processualmente adequado (artigo 72º, n.º 2, LTC). E consequentemente, penso – com todo o respeito – que a decisão em contrário, no caso, é de um rigor excessivo.
2. O Tribunal tem afirmado, incontáveis vezes, que “suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de inconstitucionalidade determinada para decidir”. Não ignoro que, nesse contexto, se tem insistido, também incontáveis vezes, em que “isso reclama que tal se faça de modo claro e perceptível” e “identificando a norma” (ou o seu segmento ou interpretação) violador da Constituição; ou em “que se deixe claro que se está a pôr em causa a inconstitucionalidade de uma norma, e não de uma decisão judicial que a aplica”. Mas também não ignoro que o Tribunal tem igualmente salientado que “não existem fórmulas sacramentais para [...] a suscitação da questão de inconstitucionalidade”; e que na sua jurisprudência se encontra mesmo a afirmação (e muito bem) de que “não pode, em princípio, excluir-se a possibilidade de suscitação de uma questão de inconstitucionalidade normativa sem expressa referência a um preceito legal”, ponto sendo “que o recorrente desenhe essa questão reportada a uma norma (não necessariamente a um preceito legal)” – assim se convergindo com o que doutrinam GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA
(Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Anotação XII ao artigo
280º), segundo os quais, se o “levantamento da questão da inconstitucionalidade tem de ser feito de forma processualmente idónea, [...] no entanto pode sê-lo de forma apenas implícita, desde que seja inequívoca a identificação da norma arguida de inconstitucionalidade” (grifou-se). Claro que a aplicação destas indicações jurisprudenciais e doutrinais há-de fazer-se caso a caso. Mas justamente o caso sub judice configura, em meu modo de ver, e como acima se intentou mostrar, uma das mais nítidas situações em que pode ver-se suscitada, ainda que de modo só implícito, mas inequívoco, e para além das formulações literais (sem dúvida, denunciadoras e importantes, mas que sempre entendi não deverem ter-se por decisivas), uma questão de inconstitucionalidade “normativa”: quer (permita-se a insistência) porque ela estruturalmente se perfila (e vem afinal posta) como tal (ponto a que, como tenho sustentado, deve atribuir-se uma qualificada relevância), quer porque não há dúvida quanto à norma a que respeita.
José Manuel Cardoso da Costa