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Proc. nº 86/01
1ª Secção Relator: Cons.º Luís Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – RELATÓRIO
1. C interpôs, junto do Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra, recurso contencioso de anulação do despacho de 22 de Dezembro de 1997, do General Comandante da Logística do Exército, a fim de lhe ver reconhecido o direito de receber vencimento semelhante aos sargentos da Armada com tempo de serviço igual no posto de 1º sargento, no período entre 27 de Abril de 1995 e 1 de Julho de 1997 (datas de entrada em vigor e produção de efeitos, respectivamente, do Decreto-Lei nº 80/95, de 22 de Abril e do Decreto-Lei nº
299/97, de 31 de Outubro).
O recorrente alegou a ilegalidade do acto recorrido, por violação da alínea a) do artigo 15º da Lei nº 114/88, de 30 de Dezembro, lei de valor reforçado, entendendo ainda que o mesmo acto se encontrava ferido do vício de ilegalidade por violação de lei, consubstanciada na violação do artigo 14º, nº 1 e nº 2, do Decreto-Lei nº 184/89, de 12 de Junho; e suscitou a inconstitucionalidade material da norma constante do artigo 8º do Decreto-Lei nº
299/97, de 31 de Outubro, por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição.
A entidade recorrida defendeu-se, desde logo, por excepção, alegando a intempestividade do recurso pretendido, por se encontrar largamente ultrapassado o prazo de interposição do mesmo.
Na resposta a esta excepção, o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº
80/95, de 22 de Abril, porquanto a mesma, «tendo produzido efeitos entre 27 de Abril de 1995 e 1 de Julho de 1997» criou, sempre no entender do recorrente,
«uma desigualdade inadmissível, arbitrária e sem qualquer justificação, não fundada em valores constitucionalmente relevantes, por violação do princípio da igualdade expresso no artigo 13º da CRP e do princípio de para trabalho igual, salário igual expresso no artigo 59º da CRP», uma vez que decorria de tal norma o não pagamento dos retroactivos reclamados pelo recorrente.
Concluiu assim pela nulidade do acto recorrido, decorrente desta inconstitucionalidade, nulidade esta invocável a todo o tempo.
2. Por sentença de 25 de Outubro de 1999, o Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra rejeitou o recurso interposto, considerando, desde logo, no tocante à nulidade do acto recorrido - derivada, no entender do recorrente, da inconstitucionalidade da norma implicitamente aplicada, ou seja, o artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 80/95, de 22/4 -, que já o Tribunal Constitucional se pronunciara pela sua constitucionalidade no Acórdão «de 99/05/18, DR II, de
99/07/19», pelo que, não se verificando tal nulidade pretendida, o acto não era susceptível de recurso a todo o tempo, tendo já decorrido o prazo para o efeito.
No tocante ao vício de violação de lei apontado pelo recorrente, a sentença julgou o recurso intempestivo, uma vez que também quanto a este decorrera já mais de um ano sobre a data em que o recorrente tomara conhecimento do acto, sendo que o artigo 28º, nº 1, alínea a), da LPTA dispõe que tais recursos devem ser interpostos no prazo de dois meses.
3. Desta decisão veio o ora recorrente pedir esclarecimento, porquanto, «por contrariamente ao afirmado nos fundamentos da sentença reclamada, o Tribunal Constitucional no acórdão de 18/5/99, não se ter pronunciado pela constitucionalidade do D. L. 80/95 de 22/4, encontrando-se assim os fundamentos em oposição com a decisão, ou ainda por haver lapso, ou erro na data de publicação do acórdão do Tribunal Constitucional referido na sentença», pedindo assim a reforma ou rectificação da sentença.
Esse pedido foi indeferido por despacho de 11 de Novembro de 1999, no qual se entendeu o seguinte:
O que está pedido na petição de recurso é a declaração de nulidade do acto recorrido derivada da inconstitucionalidade de uma norma aplicada, concretamente o D.L. 299/79.
Sobre este, na verdade, já houve pronúncia expressa pelo T. Constitucional, recusando-a.
Quanto ao D.L. 80/95 ainda não a houve, na realidade, mas o que resulta de útil é que também não terá sido declarada, ainda, a sua inconstitucionalidade.
No entanto, era aquele, e não este, o diploma que estava posto em causa na petição.
4. Inconformado, o recorrente interpôs recurso dessa decisão para a Secção de Contencioso do Tribunal Central Administrativo, nos termos do disposto no artigo 40º, alínea a), do ETAF.
Admitido o recurso, e já naquele Tribunal Central Administrativo, o recorrente juntou alegações, nas quais enunciou as duas questões objecto do recurso pela forma seguinte:
1ª - Apesar de a inconstitucionalidade do art. 1º do DL. 80/95 de 22 de Abril não ter sido levantada na petição inicial, mas tão só na resposta às excepções levantadas pela Autoridade Recorrida, o juiz deveria ter verificado da existência ou não de tal inconstitucionalidade, não rejeitando o recurso por intempestividade, atendendo a que, até tinha sido levantada a inconstitucionalidade de outra norma – artigo 8º do DL 299/97 de 31 de Outubro
(inconstitucionalidade suscitada durante o processo).
2ª - A norma do artigo 1º do DL 80/95 de 22 de Abril é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade expresso no artigo 13º da CRP e do princípio de para trabalho igual, salário igual expresso no artigo
59º nº 1 da CRP, por criar uma desigualdade inadmissível, arbitrária e sem qualquer justificação, entre categorias iguais de militares dos três ramos das Forças Armadas, não fundada em valores constitucionalmente relevantes.
No tocante à primeira dessas questões, entendeu o recorrente que a questão de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 80/95, de 22 de Abril fora suscitada atempadamente, «muito antes, portanto, de se ter esgotado o poder jurisdicional do Juiz sobre a causa, e certamente 'durante o processo' no sentido que se exprimiu o legislador constitucional». E afirmou ainda que, «sendo o vício do conhecimento da inconstitucionalidade de conhecimento oficioso, o tribunal Recorrido poderia e deveria ter tomado conhecimento do mesmo ainda que não alegado», concluindo assim que, ao não o fazer, a sentença recorrida terá violado os artigos 207º e
280º, nº1, alínea b), da Constituição.
Por fim, relativamente à questão de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 80/95, entendeu o seguinte:
Este diploma, «in casu», em consequência da norma do artigo 1º, colocou os primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea numa situação de relativa desigualdade remuneratória base, quando em comparação com os da Marinha,
Com prejuízo dos princípios enformadores do sistema retributivo expressos no DL 184/89 de 2 de Junho, pois veio quebrar o princípio de «equidade interna» expresso no artigo 14º nº 1 deste diploma.
Ora o Decreto-Lei 80/95 não refere que exista qualquer desigualdade material derivada da natureza e/ou condições de exercício das funções dos primeiros-sargentos da Marinha, sendo que, se tal entendesse verificar-se, deveria expressá-lo no respectivo preâmbulo.
[...]
Certo é, que, com a prolação do Decreto-Lei 80/95 não se cuidou dos efeitos que tal diploma teria nos outros ramos das Forças Armadas, ao colocar os primeiros-sargentos da marinha em escalões mais elevados do sistema retributivo, esquecendo que os primeiros-sargentos mais antigos ou de igual antiguidade do Exército e da Força Aérea, não tendo sido reposicionados, passariam a perceber de ordenado base uma quantia menor do que aqueles.
[...]
Constatada a desigualdade referida, o legislador tentou corrigi-la através do Decreto-Lei 299/97 de 31 de Outubro.
[...]
Ora, o Decreto-Lei 299/97 de 31 de Outubro, ao retroagir os seus efeitos a 1 de Julho de 1997 e não à data de produção de efeitos do Decreto-Lei
80/95 de 22 de Abril, minimizou a desigualdade referida, mas não a eliminou, pois continuou a existir um espaço temporal durante o qual os primeiros sargentos da Armada auferiram maior retribuição base do que os primeiros sargentos do Exército e da Força Aérea, sem que houvesse fundamento razoável para tal desigualdade.
E sendo certo que o legislador não referiu quais as razões porque não retroagiu os efeitos do Decreto-Lei 299/97 a 27 de Abril de 1995, é de presumir que tal se deveu a razões financeiras de poupança administrativa.
[...]
Deste modo, a norma do nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei 80/95 de 22 de Abril, embora revogado, tendo produzido efeitos entre 27 de Abril de 1995 e 1 de Julho de 1997, é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade expresso no artigo 13º da CRP e do princípio da para trabalho igual, salário igual expresso no artigo 59º nº 1 da CRP, por criar uma desigualdade inadmissível, arbitrária e sem qualquer justificação, entre categorias iguais de militares dos três ramos das Forças Armadas, não fundada em valores constitucionalmente relevantes.
Por sua vez, a autoridade recorrida formulou as seguintes considerações:
A «desesperada» tentativa de trazer agora à colação a eventual inconstitucionalidade do artº 1º do DL 80/95 é, de todo, irrelevante.
Tal norma não foi, nem poderia ter sido, aplicada no decurso do procedimento administrativo por dois motivos: foi de exclusiva aplicação ao Ramo Marinha e o recorrente é do Exército; à época da apreciação do requerimento já havia sido revogada pelo DL 299/97, com salvaguarda das situações já constituídas.
[...] Na sua resposta, a autoridade recorrida nunca invoca o artº. 1º do DL 80/95, apenas se refere a este diploma, na sua globalidade e subsidiariamente, exactamente para reforçar o respeito do artº. 8º do DL 299/97 pelo princípio da igualdade.
Por fim, o Ex.mo Juiz a quo proferiu despacho de sustentação, entendendo ser «irrelevante» a questão da nulidade imputada à sentença recorrida
«por omissão de pronúncia sobre a inconstitucionalidade», tanto mais que se não verificara a «aplicação de tal diploma no acto em causa».
5. Por acórdão de 14 de Dezembro de 2000, da secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo, o recurso foi julgado improcedente. Entendeu esse Tribunal Central antes de mais que se não verificara qualquer omissão de pronúncia relativamente à questão de inconstitucionalidade do artigo 1º do Decreto-Lei nº 80/95, porquanto «a decisão recorrida no fundo acabou por aderir aos fundamentos do Ac. do Tribunal Constitucional que identifica, para chegar à conclusão que, quanto à invocada inconstitucionalidade ou nulidade do acto «não colhe a tese defendida pelos recorrentes»».
E afirmou-se ainda:
Sobre a inconstitucionalidade da norma em apreço, já tivemos ocasião de nos pronunciar, nomeadamente no Ac. 18.05.00, Rec. 1445/98, onde a determinado passo se escreveu o seguinte: «A consagração de diferenças ou igualdades remuneratórias compete apenas ao legislador. A CRP não proíbe desigualdade de tratamento remuneratório entre os Sargentos da Marinha e da Força Aérea ou de outras forças de segurança, dado estarmos em presença de ramos distintos e diferentes das forças armadas e cujas funções são diferentes».
6. Novamente inconformado, o recorrente veio, então, interpor recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b) da LTC, para apreciação da questão da inconstitucionalidade da norma constante do nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº
80/95, de 22 de Abril, «na interpretação que dela foi feita no douto acórdão
[...], no sentido não sendo tal norma inconstitucional, não ocorre a omissão de pronúncia nem a nulidade defendida pelo Recorrente», por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição, e do princípio de a trabalho igual, salário igual, expresso no artigo 59º, nº 1, da Lei Fundamental.
Já neste Tribunal, o recorrente juntou alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:
[...] – Por força do artigo 1º nº 1 do Dec.Lei nº 80/95, sempre que um primeiro-sargento da armada ficasse a ganhar mais do que outro primeiro-sargento mais antigo, este seria reposicionado na respectiva escala indiciária, correspondente ao maior valor da remuneração efectivamente percebida por sargentos com menor antiguidade.
[...] - Com tal correcção e reposicionamento de escalões, os primeiros-sargentos da Marinha passaram a perceber de remuneração uma quantia maior que os primeiros-sargentos mais antigos do Exército e da Força Aérea.
[...] – Deste modo, o Dec.Lei 80/95 viria a ter repercussões no Exército e na Força Aérea, 'ao colocar os primeiros-sargentos daqueles ramos numa situação de relativa desigualdade remuneratória com prejuízo dos princípios enformadores da prestação do serviço militar e da coesão que garanta a necessária eficácia no cumprimento das missões',
[...] – Certo é que desigualdade remuneratória entre os primeiros-sargentos da Armada e os primeiros-sargentos dos outros Ramos das Forças Armadas não tem qualquer relação com a natureza, ou características do trabalho prestado, nem com as capacidades e qualificações profissionais dos militares em causa, ou até a alimentação, no sentido de comida.
[...]
[...] – Reconhecida a desigualdade, no sentido de a corrigir, o legislador através do DL 299/97, revogou o DL 80/95, conforme artº 6º, passando-se a aplicar um sistema remuneratório igual aos 3 ramos das Forças Armadas, mas por motivos que não invocou e que poderia justificar, [...]
[...] – Fez, pois, uma correcção parcial da mesma, que os AA têm por injustificada, pois o DL só retroagiu a 1 de Julho de 1997.
[...]
[...] – Deste modo o Decreto-Lei 80/95, de 22 de Abril, originou uma desigualdade remuneratória arbitrária e irrazoável para os primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea, quando em comparação com os correspondentes em antiguidade e posto da Marinha.
[...] – Resulta do EMFAR, aprovado pelo DL 34-A/90 de 24 de Janeiro, nomeadamente dos artigos 21º e 123º que os militares com o mesmo posto, e igual tempo de permanência no posto (leia-se antiguidade no posto), devem perceber a mesma remuneração base, independentemente do ramo a que pertencem.
[...] – Foi o próprio legislador que enunciou no preâmbulo do DL
299/97 a intenção de 'superar a relativa desigualdade acima mencionada', onde também se diz, ter sido introduzida pelo DL 80/95.
Por sua vez, a autoridade recorrida concluiu pela forma seguinte:
[...] o DL 299/97 revoga, de facto, o DL 80/95 mas não para estender o regime deste aos outros dois Ramos das Forças Armadas. O DL 299/97 cria e manda aplicar aos 3 Ramos um novo abono – diferencial de remuneração – abandonando o regime do DL 80/95 de correcção e reposicionamento de escalões.
[...] E entendeu o legislador, no artº 8º desse DL 299/97, reportar a eficácia do diploma a 1 de Julho de 1997. Norma esta já, por várias vezes, considerada conforme à CRP, por doutos Acórdãos do Venerando Tribunal Constitucional.
[...] Sendo o objecto do presente recurso a 'fiscalização concreta de constitucionalidade ...do nº 1 do art.º 1º do Decreto-Lei nº 80/95, de 22 de Abril, na interpretação que dela foi feita pelo ... Tribunal Central Administrativo...' dir-se-á que dificilmente se poderá considerar inconstitucional um Acórdão que respeita o princípio negativo do controlo, aplicando tratamento diferente a situações de facto diferentes, em consonância com a intenção inequívoca do legislador.
Cumpre decidir.
II – FUNDAMENTOS
7. A norma cuja questão de inconstitucionalidade vem suscitada é a constante do nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 80/95, de 22 de Abril, a qual tem o seguinte teor:
Sempre que um primeiro-sargento dos quadros permanentes da Marinha, na situação de activo, aufira remuneração inferior à de sargentos com menor antiguidade ou posto é reposicionado no escalão da respectiva escala indiciária correspondente ao maior valor da remuneração efectivamente percebida por sargentos com menor antiguidade.
Todavia, cumpre primeiro averiguar se se verificam os pressupostos para o conhecimento do presente recurso. Com efeito, a sentença do Tribunal Central Administrativo considerou o recurso intempestivo, pois que, não se verificando a inconstitucionalidade da norma, não decorria daí a nulidade da mesma, pelo que se verificara o decurso do prazo para interposição do recurso, uma vez que decorrera mais de um ano sobre a data de conhecimento do acto e não era um caso de nulidade do acto administrativo recorrido.
Por outro lado, entendeu-se ainda que a norma que estava em causa e cuja questão de inconstitucionalidade fora suscitada na petição inicial, era a constante do artigo 8º do Decreto-Lei nº 299/97, e não a do artigo 1º do Decreto-Lei nº 80/95.
Todavia, o acórdão recorrido, do TCA, entendeu que, ao invés do pretendido pelo recorrente, não se verificou omissão de pronúncia relativamente
àquela norma constante do nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 80/95, pois que a sentença recorrida expressamente se manifestara sobre tal questão, ao aderir aos fundamentos do Acórdão do Tribunal Constitucional que identificara.
E no tocante à suscitada questão de inconstitucionalidade do artigo
1º do Decreto-Lei nº 80/95, pronunciou-se expressamente este acórdão recorrido no sentido da sua não inconstitucionalidade, socorrendo-se, nomeadamente, de jurisprudência desse mesmo tribunal.
O que significa que o TCA julgou procedente a questão prévia de intempestividade do recurso, não tomando pois conhecimento do seu objecto. Mas fê-lo com fundamento na não inconstitucionalidade da norma constante do artigo
1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 80/95. Ou seja, invocando o recorrente que o recurso era tempestivo, porque fundado em nulidade do acto recorrido (a qual resultaria da inconstitucionalidade da norma aplicada), o TCA considerou que ele era extemporâneo porque a norma não era inconstitucional e, consequentemente, não havia nulidade.
Tanto basta para que este Tribunal tenha que conhecer do objecto do recurso, já que a decisão sobre a questão de constitucionalidade constituiu ratio decidendi da decisão recorrida (isto, sem que este Tribunal Constitucional deva, agora, pronunciar-se sobre a questão de saber se a aplicação de uma norma inconstitucional gera necessariamente a nulidade do acto administrativo que a aplica).
8. O Decreto-Lei nº 80/95 foi publicado com vista a corrigir «a existência de anomalias com especial incidência na categoria de sargentos da Marinha e, dentro desta, no posto de primeiro-sargento» que originaram «efeitos perversos com nítido prejuízo da hierarquia funcional, dadas as especificidades de alimentação e a natureza do desenvolvimento de tal carreira e das praças da Marinha das classes homónimas», tal como se pode ler do respectivo preâmbulo.
O legislador reconheceu nesse diploma que o regime remuneratório geral dos quadros das Forças Armadas então consagrado criara determinadas anomalias no que respeitava à Marinha, nomeadamente situações como a de um primeiro-sargento daquele ramo (categoria hierarquicamente superior à de segundo-sargento) poder auferir remuneração inferior à destes. O Decreto-Lei nº
80/95 pretendeu assim corrigir essas situações por via do reposicionamento nos escalões da respectiva escala indiciária, concretamente fazendo com que os primeiros-sargentos que auferissem remuneração inferior à dos sargentos de menor antiguidade ou posto fossem remunerados de acordo com o escalão da respectiva escala indiciária equivalente ao valor daquele pelo qual os sargentos de menor antiguidade eram efectivamente remunerados – nº 1 do artigo 1º; ou, na falta daquele escalão, para o índice imediatamente superior – nº 2 do mesmo artigo 1º.
Claramente, o objectivo deste diploma foi o de corrigir as anomalias ou distorções verificadas, como se lê no respectivo preâmbulo, «com especial incidência na categoria dos sargentos da Marinha», ou seja, visando apenas estes
últimos.
Só que, e por outro lado, o Decreto-Lei nº 80/95, de 22 de Abril, veio a criar uma situação pela qual os primeiros-sargentos da Marinha vieram ou poderiam vir a receber, efectivamente, remuneração superior à auferida pelos primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea com igual ou superior antiguidade. Daí decorreu a posterior intervenção do legislador, com a publicação do Decreto-Lei nº 299/97, de 31 de Outubro, que revogou aquele Decreto-Lei nº 80/95.
Ora, notar-se-á, desde logo, que o Decreto-Lei nº 299/97 não consagrou, para os primeiro-sargentos do Exército ou da Força Aérea, um regime idêntico àquele vigente na Marinha: nos termos do disposto nos artigos 1º e 2º do diploma, a atribuição do diferencial de remuneração aos primeiro-sargentos do Exército e da Força Aérea só ocorreria quando os primeiro-sargentos auferissem menor remuneração e possuissem igual ou maior antiguidade no posto em relação aos primeiro-sargentos da Marinha abrangidos pelo artigo 1º.
O que se procurou assim impedir foi que os primeiros-sargentos da Marinha – com igual ou menor antiguidade face aos primeiro-sargentos do Exército ou da Força Aérea – viessem a auferir remuneração efectiva superior à destes (ou seja, o efeito «perverso» que terá resultado do regime consagrado pelo Decreto-Lei nº 80/95).
9. Pois bem: o Tribunal Constitucional foi já chamado a pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 8º do Decreto-Lei nº 299/97, nomeadamente nos Acórdão nº 306/99 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 43º, pág. 617 e segs.) e Acórdão nº 412/99 (Diário da República, II Série, de 13 de Março de 2000).
Como se pode ler neste último:
A eventual diferenciação de remunerações entre os primeiro-sargentos da Marinha com igual ou menor antiguidade no posto que os primeiro-sargentos do Exército ou da Força Aérea só ocorreu, assim após a consagração do regime remuneratório estabelecido no DL nº. 80/95, diferenciação a que, por sua vez, o legislador quis pôr fim com o Decreto-Lei nº. 299/97, de 31 de Outubro, no qual se insere a norma em apreço.
Tal significa que a haver desigualdade de tratamento violadora do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da CRP, ela só pode ter resultado do citado DL nº. 80/95.
Ora, a invocada desigualdade, no entender do recorrente, terá resultado do Decreto-Lei nº 80/95, na medida em que, ao reposicionar os primeiros-sargentos da Marinha nos escalões da respectiva escala indiciária, passaram a verificar-se situações em que, de facto, estes primeiros-sargentos da Marinha passaram a poder auferir maior remuneração que os primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea.
Sobre o princípio da igualdade tem este Tribunal abundante e unânime jurisprudência [entre outros, cfr., por ex., os Acórdão nº 39/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11º, pág. 233 e segs), Acórdão nº 186/90,
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 16º, pág. 383 e segs ), Acórdão nº
231/94 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 27º, pág. 205 e segs.), Acórdão nº 609/94 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 29º, pág. 173 e segs.) e Acórdão nº 109/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 30º, pág.
617 e segs.)], afirmando-se, de forma reiterada e clara, que tal princípio obriga a que se trate como igual o que for essencialmente igual e como diferente o que for essencialmente diferente. Ou seja, como se afirmou no Acórdão nº
1007/96 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 35º, pág. 169 e segs.): não impede a diferenciação de tratamento, mas apenas a discriminação arbitrária, a irrazoabilidade, ou seja, o que aquele princípio proíbe são as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante. Prossegue-se assim uma igualdade material, que não meramente formal.
Para que haja violação do princípio constitucional da igualdade, necessário se torna verificar, preliminarmente, a existência de uma concreta e efectiva situação de diferenciação ou discriminação. Ou seja, determinar se aquelas normas em causa introduzem uma discriminação de tratamento entre situações idênticas, e, se se concluir afirmativamente, então haverá ainda que indagar da existência de eventual fundamento material para tal discriminação: é que, como claramente se perceberá, a não existência de uma qualquer discriminação ou diferenciação de tratamentos afasta, desde logo, a possibilidade de qualquer ofensa do referido princípio da igualdade.
Concretizando, importará perguntar se estas normas possuem uma justificação material para a 'diferenciação' que (eventualmente) estabelecem. É que, se a tiverem, não importarão - ou deixarão de importar -, violação do princípio da igualdade.
Assim delimitado o alcance e sentido do princípio constitucional da igualdade, há então que averiguar se, in casu, se verifica uma discriminação, ou seja, no caso de se verificar uma diferenciação remuneratória, se esta é irracional, ou arbitrária, isto é, carecida de fundamentação.
10. O TCA deu resposta negativa a esta questão, e citou outros arestos no mesmo sentido. Considerou que o legislador não está impedido de prever diferentes regimes remuneratórios para os diferentes ramos das FAs, uma vez que também estes possuem diferentes funções e especificidades.
Como já se fez notar supra, o regime instituído pelo Decreto-Lei nº
299/97, de 31 de Outubro, não quis instituir um regime idêntico para os primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea aos da Marinha; apenas criou um diferencial de remuneração a ser abonado aos primeiros, nas condições ali previstas. Na verdade, o diploma visou antes de mais corrigir a situação criada pelo Decreto-Lei nº 80/95, substituindo a disciplina de reposicionamento noutro escalão pela atribuição de um diferencial de remuneração, relativamente aos primeiros-sargentos da Marinha, e estendendo este diferencial aos primeiros-sargentos dos restantes quadros das FAs, sempre que estes tenham igual ou maior antiguidade no posto, e aufiram menor retribuição face aos primeiros-sargentos da Marinha.
Com efeito, se o legislador procurasse instituir um regime em tudo igual ao dos primeiros-sargentos da Marinha para os do Exército e da Força Aérea, então teria estabelecido um regime ou um sistema que visasse a situação dos respectivos primeiros-sargentos dentro dos respectivos ramos das Forças Armadas, como fez para os da Marinha, ou seja, visando as situações em que aqueles auferissem menor retribuição que os segundos-sargentos do mesmo ramo. O que não foi manifestamente o caso.
Para o recorrente, a desigualdade gerou-se com o anterior Decreto-Lei nº 80/95, ao estabelecer aquele regime apenas para os primeiros-sargentos da Marinha, não determinando que, quando ocorresse um tal reposicionamento de escalões daí decorresse, por arrastamento, um reposicionamento dos escalões dos primeiros-sargentos dos restantes ramos das FAs com maior ou igual antiguidade, ou seja, ter-se-á criado assim, enquanto durou a sua vigência, uma desigualdade, injustificada no seu entender, entre os primeiros-sargentos da Marinha e os dos restantes quadros das Forças Armadas.
11. Mas não é a isso que o princípio da igualdade obriga.
O Tribunal Central Administrativo tem reiterado a sua posição em vários arestos, entendendo que «o legislador não está impedido de tratar de forma diferente e no aspecto remuneratório sargentos que pertencem a ramos distintos das forças armadas e cujas funções são diferentes» (acórdão de 18 de Maio de 2000, proc. nº 1445/98, entre outros).
Na verdade, o objectivo do Decreto-Lei nº 80/95, como se referiu, foi o de corrigir as anomalias constatadas no seio – e apenas neste ramo – dos primeiros-sargentos da Marinha, por via do reposicionamento nos escalões da respectiva escala indiciária: concretamente, fazendo com que os primeiros-sargentos que auferissem remuneração inferior à dos sargentos de menor antiguidade ou posto fossem remunerados de acordo com o escalão equivalente ao valor daquele pelo qual os sargentos de menor antiguidade eram efectivamente remunerados; ou, na falta daquele escalão, pelo índice imediatamente superior.
Este diploma não visou os restantes ramos das FAs, nem a eles se dirigiu, pois que o legislador não constatou ou não verificou nesses ramos a existência de tais anomalias ou distorções.
Ora, o princípio da igualdade não impõe necessariamente uma igualdade absoluta entre os militares pertencentes a diferentes ramos das FAs, no que se refere à globalidade do respectivo sistema remuneratório, tal como o não exige para o regime global de progressão nas respectivas carreiras.
Assim, no que se reporta à progressão nas carreiras, verifica-se, desde logo, que, para além das condições gerais de promoção a cada posto - previstas no artigo 55º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas (aprovado pelo Decreto-Lei nº 236/99, de 25 de Junho) - prevê ainda o mesmo Estatuto, para cada ramo das FAs, disposições específicas que consagram regimes diversos quanto
às condições especiais de promoção, tendo em atenção, naturalmente, as especificidades de cada ramo. É o que resulta do disposto respectivamente nos artigos 271º (para a Marinha), 275º (para o Exército), e 280º (para a Força Aérea), sendo certo que essas condições especiais, no que se refere à Marinha, prendem-se com o condicionalismo específico do exercício da actividade no seio deste ramo das FAs, pelo que compreendem determinados tempos de embarque e de navegação, como se estabelece no anexo III ao mencionado Estatuto.
Por outro lado, como determina o artigo 116º do Estatuto, o «militar tem direito a aceder aos postos imediatos dentro da respectiva categoria», segundo não apenas «as aptidões, competência profissional e tempo de serviço que possui», mas também «de acordo com as modalidades de promoção e as vagas existentes nos respectivos quadros especiais». Ora, tal determina que a progressão nas carreiras será tanto mais rápida quanto maior for o número de vagas a preencher, pelo que cada militar avançará ou progredirá mais ou menos rapidamente na respectiva carreira, não apenas consoante o ramo, como ainda consoante o quadro especial a que pertencer.
De resto, também na Administração Pública civil a progressão nas carreiras varia de acordo com os quadros de cada serviço, desenvolvendo-se assim aquela progressão nuns casos de forma mais rápida do que noutros, nomeadamente consoante as vagas existentes nesses quadros.
Nesta conformidade, nunca pode ocorrer uma igualdade absoluta entre todos os militares das FAs, relativamente à progressão na carreira.
De igual modo, também a pertença a um ou outro ramo das FAs pode determinar diferenças remuneratórias, desde que não se configurem como manifestamente arbitrárias. E não serão tais diferenças arbitrárias, desde logo, se os cargos e conteúdos funcionais não coincidirem exactamente.
Ora, os cargos e conteúdos funcionais estão definidos diferentemente consoante os ramos em que idênticas categorias se inserem.
Assim, enquanto essa definição para os sargentos da Marinha se encontra no artigo 270º, é o artigo 274º que contém tal descrição para os sargentos do Exército, enquanto que relativamente aos sargentos da Força Aérea se encontra a descrição de tais cargos e conteúdos no artigo 279º do referido Estatuto.
Não pode, pois, pretender-se uma necessária e obrigatória igualdade absoluta entre os sargentos dos diversos ramos das FAs, quando eles se encontram sujeitos a diferentes regimes no que se refere às condições especiais de promoção e aos respectivos conteúdos funcionais.
Assim também o tem entendido o STA, nomeadamente no aresto de 28 de Junho de 2000, proferido no recurso nº 45.927 (não publicado, mas cujo sumário se encontra disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/), no qual se pode ler:
O preâmbulo do DL nº 299/97 reconheceu que a disciplina instituída pelo DL nº 80/95 colocara os primeiros-sargentos do Exército e da Força Aérea
«numa situação de relativa desigualdade remuneratória» em relação aos militares do mesmo posto da Marinha, desigualdade essa que o DL nº 299/97 intentou, entretanto, «superar». No entanto, as desigualdades verificadas numa dimensão simplesmente remuneratória não envolvem a automática existência de uma violação do princípio da igualdade, pois é claro que tais diferenças nas remunerações podem ser a tradução harmoniosa e justificada de diferenças havidas nas actividades desempenhadas. Ora, e como o acórdão recorrido assinalou, nada impedia o legislador do DL nº 80/95 de «tratar de forma diferente e no aspecto remuneratório sargentos que pertencem a ramos distintos das forças armadas e cujas funções são diferentes».
12. Assinale-se, finalmente, que o que o recorrente entende é que se deveria ter efectuado um reposicionamento dos escalões dos primeiros-sargentos de todos os restantes ramos das FAs sempre que se efectuasse o reposicionamento dos primeiros-sargentos da Marinha, ou seja, independentemente da verificação concreta, no respectivo ramo, daquelas circunstâncias anómalas que, desde o princípio, justificaram a feitura do Decreto-Lei nº 80/95. Ou seja, o recorrente não reclama a aplicação do regime deste Decreto-Lei aos restantes ramos das FAs, isto é, que se proceda a um reposicionamento no caso ou na hipótese de se verificarem as situações anómalas nele previstas.
Se verificada uma tal situação, então aí poderíamos estar perante uma dimensão da norma eventualmente portadora de desigualdade; mas tal não é manifestamente o caso, nem é essa dimensão da norma que o recorrente identifica como violadora do princípio da igualdade.
Por outro lado, dir-se-á ainda que não cabe a este Tribunal efectuar ou tecer juízos de censura ou apreciação sobre o bom ou mau direito, ou mesmo sobre a eventual «bondade» da solução adoptada pelo legislador, mas tão somente aferir da respectiva observância dos preceitos constitucionais, não se mostrando in casu afectado o invocado princípio da igualdade. O legislador limitou-se a aplicar tratamento diferente a situações diferentes, baseando-se nas especifidades respectivas de cada ramo, de forma razoável e com fundamento racional.
Nestes termos, não se vislumbra qualquer violação do princípio constitucional da igualdade por banda da norma em crise.
III – DECISÃO
13. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) UC’s.
Lisboa, 27 de Fevereiro 2001 Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa