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Processo n.º 609/96
1ª Secção Relator — Paulo Mota Pinto
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
Relatório
1. A, jornalista, foi condenado pelo 2º Juízo do Tribunal de Competência Genérica de Macau na pena de sessenta dias de prisão – que foi, porém, suspensa por um período de dois anos – e, a título de indemnização por danos morais, no pagamento de trinta e cinco mil patacas, pela prática de um crime de abuso de liberdade de imprensa, previsto e punido pelas disposições combinadas dos artigos 28º, n.º 1, 29º, 32º, n.º 1, alínea a) e 33º da Lei n.º 7/90/M, de 6 de Agosto.
2. Inconformado, A interpôs recurso dessa decisão para o Tribunal Superior de Justiça de Macau, concluindo nas suas alegações:
“1ª. Ao deixar de conhecer de parte da matéria da acusação particular – introduzida em juízo – o Ac. Recorrido incorreu em omissão de pronúncia (artº.s
668º, n.º. 1, alínea d), 660º., n.º. 2 e 156º. Do Código de Processo Civil, aplicável por força do § único do artº. 1º do Código de Processo Penal), pelo que é nulo.
2ª. O Ac. Condenatório viola o artº. 32º., n.º. 1, alínea a) da Lei de Imprensa de Macau pelo facto de ali se consagrar uma responsabilidade solidária entre o autor do escrito e o director da publicação e haver o aqui recorrente sido acusado desacompanhadamente do autor;
3ª. Viola um princípio do nossa ordenamento jurídico-penal, hoje, expressamente consagrado na lei penal da República que não permite que o ofendido escolha a pessoa que há-de ser punida;
4ª. Viola o princípio da igualdade consagrado no artº. 13º. da CRP por criar uma situação de desigualdade na aplicação do direito;
5ª. Faz aplicação – para além do que se deixa dito e se resume nas primeiras três conclusões desta minuta – de uma norma inconstitucional (a norma do artº.
32º., n.º. 1, alínea a) da Lei n.º. 7/90/M de 6 de Agosto), pois tal disposição normativa viola o princípio da culpa que tem entroncamento constitucional no princípio da dignidade da pessoa humana, norma idêntica à do artº. 26º., n.º. 2 alínea a) do decreto Lei n.º. 85-C/75, de 26 de Setembro e que foi, por essa mesma razão alterada pela Lei n.º.15/95, de 25 de Maio, extirpando-se do ordenamento jurídico da República uma tal responsabilidade criminal objectiva e viola, ainda, o princípio da proibição da censura explicitamente consagrado no artº. 37º., n.º. 2 do Texto Fundamental;
6ª. Existe contradição insanável entre as respostas dadas aos quesitos 5º.,
36º., e 37º. – por um lado – e a resposta dada ao quesito 9º. – por outro -, contradição que sempre imporia a anulação do julgamento, nos termos do disposto no artº. 712º., n.º. 2 do C. P. Civil (aplicável ao processo penal);
7ª. Não pode considerar-se ofensivo da honra e consideração devidas ao queixoso, quer a expressão ‘É um espanto; sempre que abre a boca sai asneira’, quer a expressão ‘sofrível no seu curriculum académico e profissional’, porque os elementos fornecidos pelo processo são indestrutivelmente reveladores da fundamentação e adequação de tais expressões à lupa da convicção íntima do autor do escrito;
8ª. O Senhor Presidente do TSJ é uma figura pública que se expôs no terreno político e foi alvo de uma impressionante corrente crítica de opinião na qual se situou o escrito em questão, sendo ele o único responsável pelas críticas a que deu azo, através das suas intervenções públicas;
9ª. O recorrente – como é reconhecido pelo Ac. Recorrido – apenas foi movido ao reproduzir o artigo em questão, pelo propósito de dar a conhecer aos seus leitores aquilo que se escrevia em Portugal a respeito do ilustre ofendido.” No seu visto, largamente fundamentado, formulou o Ministério Público o seu parecer e concluiu dever confirmar-se “o douto acórdão da 1ª instância, negando-se provimento ao recurso.” O Tribunal Superior de Justiça de Macau decidiu, por Acórdão de 29 de Maio de
1996, negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida, remetendo, “no tocante ao princípio da responsabilização criminal dos directores das publicações por abuso de liberdade de imprensa”, para os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 447/87 e 448/87.
3. É deste Acórdão que vem interposto o presente recurso “nos termos consentidos pelo artº 280º, n.º 1, alínea b) da Constituição da República, pelo artº 70º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro e pelo artº 11 da Lei n.º
112/91, de 29 de Agosto”, para apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 32º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 70/90/M, de 6 de Agosto. Nas alegações apresentadas junto deste Tribunal, o recorrente formulou as seguintes conclusões:
“1ª. O Ac. Recorrido fez aplicação – para condenar o recorrente – da norma do artº. 32º., n.º. 1, alínea a) da lei n.º. 7/90/M;
2ª. Tal norma é inconstitucional por violar o princípio da culpa, que tem entroncamento constitucional no princípio da dignidade da pessoa humana, o qual emana de várias disposições da Lei Fundamental, nomeadamente os artºs. 1º.,
13º., 16º. E 26º.
3ª. Ao condenar somente o director da publicação desacompanhado do autor do escrito ou imagem, o Ac. Recorrido violou o princípio da igualdade, consagrado no artº 13º da Constituição da República.
4ª. Seria sempre ilegal a coexistência de legislação da mesma natureza vigorando nos ordenamentos jurídicos da República e de Macau, ao desenvolverem matérias na
área dos direitos fundamentais, em desconformidade.
5ª A norma do artº 32º, n.º. 1, alínea a) da Lei n.º. 7/90/M é ainda inconstitucional por ofender os princípios da liberdade de expressão e da liberdade de informação consagrados no artº. 37º. da Lei Fundamental, que têm como corolário a proibição da censura.” Por seu turno, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal concluiu as suas contra-alegações do seguinte modo:
“1º Não padece de inconstitucionalidade a norma constante do artigo 32º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 7/90/M, de 6 de Agosto, na parte em que estabelece a responsabilidade criminal do director de uma publicação periódica, excepto se provar que desconhecia o escrito ou a imagem publicados ou que lhe não foi possível impedir a publicação, em termos estritamente análogos aos que decorriam do artigo 26º, n.º 2, alínea a) do Decreto-Lei n.º 85-C/75.
2º Deverá, pois, ser julgado improcedente o presente recurso.”
4. Após mudança de relator, devida a alteração na composição do Tribunal, prosseguiram os vistos legais. Completados estes, cumpre agora apreciar e decidir. II. Fundamentos A) Delimitação do objecto do recurso
5. Uma vez que nenhumas dúvidas se colocam quanto à verificação dos pressupostos da espécie de recurso intentada, e “estando (...) as normas de direito ordinário específico de Macau (sejam as aí editadas, sejam as provenientes de órgãos da República) também elas sujeitas à observância de princípios e preceitos da Constituição e, em especial, dos respeitantes aos direitos fundamentais” - como se escreveu num outro Acórdão deste Tribunal referente a um crime de abuso de liberdade de imprensa no território de Macau (o Acórdão n.º245/90, publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Janeiro de 1991) -, a única questão preliminar ao conhecimento do recurso prende-se com a delimitação do respectivo objecto. Resulta das conclusões das alegações do recorrente que se imputam no presente recurso vícios diversos a objectos diversos:
- inconstitucionalidade à norma da alínea a) do n.º1 do artigo 32.º da Lei n.º7/90/M (conclusões 2ª e 5ª);
- ilegalidade à mesma norma (conclusão 4ª); e
- inconstitucionalidade ao Acórdão recorrido (conclusão 3ª; note-se, porém, que na explanação da parte III dessas alegações – epigrafada “Violação do princípio da igualdade” – “a violação de um principio do nosso ordenamento juridico-
-penal” aparece imputada à “queixa que determinou a instauração do presente processo”). A actividade de fiscalização concreta da constitucionalidade cometida ao Tribunal Constitucional incide apenas sobre actos normativos, com exclusão dos actos administrativos ou jurisdicionais (cfr., por exemplo, J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 983, e o Acórdão n.º 18/96, publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Março de 1996) e, por maioria de razão, dos actos dos particulares. Só pode, pois, ser considerada por este Tribunal a violação do princípio da igualdade, não pela decisão recorrida, mas pela existência de diferentes
“soluções legislativas vigentes na República e em Macau à data do (...) julgamento (do recorrente) pelo crime de abuso de liberdade de imprensa”; questão, esta, que, por implicar o cotejo de diferentes soluções legislativas no
âmbito da mesma ordem jurídica, o recorrente volve, com alguma lógica, numa questão de “legalidade”, dado se não aferir a norma impugnada pela Constituição mas sim por outras normas infra-constitucionais vigentes em Portugal. Porém, interposto apenas recurso de constitucionalidade - e não sendo caso de uma daquelas situações em que o Tribunal Constitucional pode apreciar a ilegalidade de normas (cfr. o n.º 2 do artigo 280º da Constituição e as alíneas c) a g) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º28/82, de 15 de Novembro) -, naturalmente não poderá conhecer-se, nem da inconstitucionalidade do acórdão recorrido (conclusão 3ª), nem da ilegalidade da “coexistência de legislação da mesma natureza vigorando nos ordenamentos jurídicos da República e de Macau, ao desenvolverem matérias na área dos direitos fundamentais, em desconformidade”
(conclusão 4ª). A única norma cuja constitucionalidade vem impugnada é, portanto, a da alínea a) do n.º1 do artigo 32.º da Lei n.º 7/90/M, de 6 de Agosto (Lei de Imprensa vigente em Macau), sendo esse o objecto do presente recurso. B) Apreciação do recurso
6. A alínea a) do n.º1 do artigo 32.º da Lei n.º 7/90/M, de 6 de Agosto tem a seguinte redacção:
“Artigo 32.º
(Autoria)
1. Nas publicações periódicas respondem sucessivamente, pelos crimes de abuso de liberdade de imprensa: a) O autor do escrito ou imagem, salvo nos casos de reprodução não consentida, nos quais responderá quem a tiver promovido, e o director da publicação ou seu substituto, salvo se provar que desconhecia o escrito ou a imagem publicados ou que não lhe foi possível impedir a publicação;
(...)” Como se vê, esta norma inspira-se patentemente na redacção da alínea a) do n.º2 do artigo 26.º do Decreto-Lei n.º85-C/75, de 26 de Fevereiro (Lei de Imprensa vigente em Portugal):
“Artigo 26.º
(Responsabilidade criminal)
1. (...)
2. Nas publicações periódicas, são criminalmente responsáveis sucessivamente: a) O autor do escrito ou imagem, se for susceptível de responsabilidade, salvo nos casos de reprodução não consentida, nos quais responderá quem a tiver promovido, e o director do periódico ou o seu substituto legal, como cúmplice, se não provar que não conhecia o escrito ou a imagem publicados ou que não foi possivel impedir a publicação.
(...)” Verifica-se, pois, que existe uma fundamental similitude entre ambas as normas e o respectivo enquadramento, dependendo as questões de constitucionalidade suscitadas de parâmetro aferidor comum a ambas (a Constituição da República Portuguesa). Assim, o juízo formulado a propósito de uma das normas não deixará de ser relevante também para a outra - havendo apenas que ressalvar a já referida questão da coexistência de soluções diferenciadas no território de Macau e em Portugal na dependência da mesma ordem constitucional de direitos, liberdades e garantias.
7. Nestes termos, pode e deve considerar-se na apreciação da alínea a) do n.º1 do artigo 32.º da Lei n.º7/90/M, de 6 de Agosto, a jurisprudência anterior deste Tribunal a propósito da correspondente norma da Lei de Imprensa portuguesa – e, em particular, o juízo de não inconstitucionalidade formulado a propósito da norma do Decreto-Lei n.º85-C/75. Juízo, este, constante do Acórdão n.º135/92
(publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Julho de 1992), que pode ser directamente invocado a propósito da norma impugnada nos presentes autos e que se baseou no confronto da norma da Lei de Imprensa portuguesa com os princípios da presunção de inocência e da culpa.
É certo que na legislação da República a responsabilização penal do director do periódico se fazia a título de cumplicidade, ao passo que em Macau tal responsabilização se faz a título de co-autoria. Mas também esta - única - diferença substancial entre as normas foi devidamente ponderada naquele citado aresto, na sequência da apreciação da conformidade constitucional da incriminação do director do periódico. Pondera-se, efectivamente, no citado Acórdão n.º 135/92 (na sequência dos Acórdãos n.ºs 447/87 e 448/87, publicados no Diário da República, II Série, de
19 de Fevereiro de 1988) que
“a simples circunstância de a lei prever a possibilidade de o director se exonerar pela prova de que desconhecia o teor do escrito inculca a ideia de que o legislador não quis pôr de parte a culpa como elemento da infracção. Se o director fosse responsabilizado independentemente de culpa, não faria sentido poder invocar tal desconhecimento que é justamente um facto que a exclui. De qualquer modo, a incriminação do director assenta em razões materiais, apontadas no citado Acórdão n.º 447/87: Radicando o crime precisamente na «publicação» - o que significará que o fundamento material da correspondente ilicitude residirá na violação não apenas do bem jurídico directamente posto em causa pelo escrito ou imagem, mas ainda do próprio bem jurídico da «imprensa» ou da «liberdade de imprensa», já que nesta vai necessariamente implicada a ideia ou exigência de um seu uso «responsável»
-, radicando aí o crime, por um lado, e cabendo justamente ao director, por outro lado, a responsabilidade pela «determinação do conteúdo do periódico», seguramente que não pode dizer-se dissonante desta última e da correlativa função, ou a elas inadequada, uma correspondente responsabilidade criminal, em particular na hipótese em apreço. Não é isso inadequado, nem é desproporcionado ou excessivo – vista a questão à luz dos princípios e valores jurídico-constitucionais (designadamente, os da liberdade de expressão e de imprensa, os dos direitos pessoais do artigo 26º da Lei Fundamental e o respeito pelos «princípios gerais do direito criminal») relevantes para se aferir da legitimidade, nesse plano, da tipificação específica dos crimes da imprensa feita pelo legislador (que é como quem diz, do programa de política criminal definido para essa área). Ao estabelecer a norma em questão, o legislador partiu da ideia de que o director do periódico deve ser também punido pela infracção. Porém, pareceu-lhe excessivo puni-lo neste caso segundo as regras gerais, isto é, como co-autor da infracção. Com efeito, poderia ter considerado haver aqui co-
-autoria, atendendo a que a participação do director na prática do facto pode ser considerada essencial, na medida em que a posição funcional e legal que detém na empresa jornalística, lhe permite, e lhe impõe até, determinar o que é que se publica e o que é que se não publica no periódico; partindo desta consideração, poderia ter configurado a atitude do director como um crime negligente. (...) O legislador viu, portanto, como cumplicidade a participação do director do periódico, em relação à publicação do escrito, quando o respectivo autor fosse conhecido e susceptível de responsabilização. Se ficcionou ser tal participação não essencial, poderá eventualmente ser acusado de falta de rigor, mas não incorreu em inconstitucionalidade.” (itálicos aditados) Estas considerações afiguram-se transponíveis para o presente recurso. Aliás, embora o juízo de não inconstitucionalidade formulado no Acórdão n.º135/92 em relação à alínea a) do n.º2 do artigo 26.º do Decreto-Lei n.º85-C/75 se tivesse baseado, directamente, no confronto com uma alegada violação do princípio da culpa, constitucionalmente consagrado, e com o igualmente constitucionalizado princípio da presunção da inocência, pode, todavia, concluir-se da decisão de não inconstitucionalidade, atento o disposto no actual artigo 79º-C da Lei do Tribunal Constitucional, aditado pela Lei n.º
85/89, de 7 de Setembro, que também outros fundamentos não foram então encontrados por este Tribunal que conduzissem à conclusão da inconstitucionalidade daquele normativo. No sentido da não inconstitucionalidade da norma da alínea a) do n.º 2 do artigo
26.º da Lei n.º85-C/75 pode, aliás, aduzir-se a argumentação expendida já também nos Acórdãos deste Tribunal n.ºs 447/87, 448/87, já citados, e 245/90 (publicado este no Diário da República, II Série, de 22 de Janeiro de 1991). No primeiro, como se viu, equacionou-se também a responsabilidade criminal do director do periódico à luz dos princípios e valores jurídico-constitucionais relevantes, “designadamente, os da liberdade de expressão e de imprensa, os dos direitos pessoais do artigo 26º da Lei Fundamental e o respeito pelos
«princípios gerais do direito criminal»”, considerando que tal solução não se afigurava inadequada, desproporcionada ou excessiva. No citado Acórdão n.º 245/90, por sua vez, considerou-se que o regime de responsabilidade criminal do director de publicações periódicas, prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 26.º da Lei n.º85-C/75, suscitava interrogações paralelas, sob o ponto de vista constitucional, às da alínea a) dos mesmos n.º e artigo. Salientou-
-se, assim, que esse regime era
“idêntico, em dois pontos fundamentais (o do princípio da responsabilidade e o dos termos em que pode ter lugar a exoneração dela), ao previsto na alínea a) do mesmo n.º2 desse artigo para a responsabilidade do director por escritos assinados.” Ora, toda esta argumentação expendida, que conduziu nos citados arestos o Tribunal Constitucional a não julgar inconstitucionais as normas das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 26º da Lei de Imprensa portuguesa, afigura-se transponível para a norma da alínea a) do n.º1 do artigo 32º da Lei de Imprensa de Macau - conduzindo, igualmente, à conclusão de que não se está perante uma solução inconstitucional.
8. Assim sendo, só há, no presente recurso, que tratar da invocação de eventual violação do princípio da igualdade - que unicamente se poderia concretizar em se obterem, à sua luz, soluções diversas das que seriam logradas na República -, bem como que precisar os termos do confronto dessa norma, “derivada” da Lei de Imprensa de 1975, com os “princípios da liberdade de expressão e da liberdade de informação consagrados no art. 37.º da Lei Fundamental, que têm como corolário a proibição da censura” (conclusão 5ª das alegações do recorrente). Começando pela questão da violação do princípio da igualdade no caso sub iudicio, resolve-se ela em saber se podem ou não existir soluções normativas diferenciadas em Portugal e em Macau em matéria de liberdade de imprensa - uma vez que a desigualdade resultante de o processo crime ter sido concretamente instaurado apenas contra o director do periódico que publicou o texto tido por ofensivo, e não também contra o seu autor, não é constitucionalmente sindicável, nem enquanto queixa, nem enquanto resultado permitido pelas regras processuais e de competência e jurisdição do Território (desde logo, por a constitucionalidade destas últimas não ter sido impugnada no presente recurso). A diferença de soluções constitucionalmente relevante para o presente caso, em Portugal e em Macau, resultaria, para o recorrente, do facto de não existir na Lei de Imprensa em vigor neste território disposição correspondente à do n.º 4 do artigo 26º da Lei de Imprensa portuguesa, nos termos do qual, tratando-se de textos de opinião, devidamente assinalados como tal e que não ofereçam dúvidas de identificação do seu autor, os directores não podem ser responsabilizados. Note-se, antes do mais, que o referido artigo 26º, n.º 4 foi introduzido na Lei de Imprensa em Portugal pelo Decreto-Lei n.º 15/95, de 25 de Maio, ou seja, em momento posterior ao da prática dos factos que serviram de base à condenação do recorrente. Pelo que, a ser essa lei portuguesa aplicável a esses factos, apenas pelo princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável poderia aquele n.º 4 do artigo 26º vir a ser aplicado ao recorrente. Acresce, todavia, que os factos em causa foram praticados em Macau, e não se pode afirmar que a inexistência de preceito correspondente ao artigo 26º, n.º 4, da Lei portuguesa de Imprensa, na legislação do território de Macau constitua uma violação do princípio da igualdade, desde logo, pelo facto de a Assembleia Legislativa de Macau dispor de poderes legislativos, que exerceu aprovando a Lei n.º 7/90/M, de 6 de Agosto. Na medida em que se reconhece à Assembleia Legislativa de Macau poderes legislativos nessa matéria - e o Estatuto Orgânico de Macau (que é também direito constitucional português: cfr. o artigo 290º da Constituição) reconhece-lhos (cfr. a alínea c) do n.º 1 do artigo 30º do Estatuto Orgânico de Macau, com a última redacção dada pela Lei n.º 23-A/96, de 29 de Julho) -, a possibilidade de existência de uma diferenciação legislativa torna-se, na verdade, inevitável. Não há nisso qualquer especificidade, sendo assim em todas as áreas onde se reconhece autonomia legislativa, e dentro dos limites para que essa autonomia é reconhecida.
É, pois, logo por esta razão, improcedente a invocação da eventual desigualdade de soluções alcançadas no território de Macau e em Portugal. Não há, aliás, lugar a invocar o princípio da igualdade quando os universos comparados, onde as normas se destinam a ser aplicadas, não são semelhantes, nem no contexto e vivências quotidianos (tendo os factos em causa sido praticados, com eventual ressonância social, no território de Macau), nem no respectivo enquadramento jurídico geral (no qual assume relevância, repete-se, a atribuição de poderes legislativos próprios à Assembleia Legislativa do território).
9. Quanto, por sua vez à ofensa, pela norma impugnada, dos princípios da liberdade de expressão e de liberdade de informação, pode, desde logo, remeter-se para as considerações do citado Acórdão n.º 447/87. Aliás, a liberdade de expressão e a liberdade de informação – que, como a liberdade de imprensa, se encontram numa “relação intrinsecamente conflitual” com certos bens jurídicos pessoais (cf. M. Costa Andrade, Liberdade de imprensa e inviolabilidade pessoal, Coimbra, 1996, págs. 28 e segs., e, para a problemática jurídico-
-penal, págs. 149 e segs.) – não podem deixar de conhecer restrições para tutela da inviolabilidade pessoal, e, em particular, de bens pessoais como a honra e intimidade da vida privada. Por isso mesmo, a Constituição submeteu as infracções cometidas no exercício desses direitos “aos princípios gerais de direito criminal”. Pode, assim, afirmar-se, com Faria Costa, “O círculo e a circunferência: em redor do direito penal da comunicação”, in Direito Penal da Comunicação (alguns escritos), Coimbra, 1998, que
“o chamamento do direito penal é um pressuposto inarredável para se ter uma compreensão global e exacta de toda a problemática aqui envolvida (...). Nesta perspectiva, também o direito constitucional tem de apelar ao direito penal para poder estabelecer limites, barreiras, para, em suma, se assumir como direito definidor de direitos” (pág. 51). Deste modo:
“Quando o legislador define, penalmente, a difamação e a injúria como crimes contra a honra, ele não está unicamente a elevar à categoria de bem jurídico-penal a honra, está também e simultaneamente a tomar uma posição marcante no que toca ao equilíbrio de valorações entrecruzadas entre o direito de informar e o direito à honra. Ele está, digamo-lo de forma sintética mas não menos precisa, a introduzir um limite ao exercício do direito de informar. Efectivamente, este, o direito de informar, cessa quando, na lógica da sua interna discursividade, se violar ou puser em perigo o direito à honra.” (pág.
58) Inviabilizada fica, pois, neste entendimento, a possibilidade de exclusão da intervenção do direito penal para a própria delimitação do espaço de possibilidades garantido pelos princípios da liberdade de expressão e de informação (intervenção apoiada, repete-se, no artigo 37º, n.º 3, da Constituição). E pode igualmente reafirmar-se a concordância sobre a “igual valência normativa” do direito à honra e do direito de informação: “o que faz com que se não possa, de modo algum, defender que o direito de informação prevalece sobre o direito à honra.” (pág. 57). Deste modo, não se considera que a solução legal resultante do artigo 32º, n.º
1, alínea a), da Lei de Imprensa de Macau seja violadora da liberdade de expressão e de informação, ao prever a responsabilidade criminal do director da publicação ou seu substituto, “salvo se provar que desconhecia o escrito ou a imagem publicados ou que não lhe foi possível impedir a publicação.” A limitação àquelas liberdades que possa resultar do facto de o director da publicação ser, na hipótese desta norma, punível por co--autoria não é maior do que a que decorre, em Portugal (ou decorria, pelo menos até 1995) da alínea a) do n.º2 do artigo 26.º do Decreto-Lei n.º85-C/75. E ainda que essa restrição se pudesse considerar mais gravosa do que a que vale para o autor do escrito - ou do que a que, para o mesmo director, resulta da alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo 32º, ou do seu n.º 3 (correspondente ao n.º 3 do artigo 26º da Lei de Imprensa portuguesa) –, ela justifica-se pela necessidade de protecção de bens jurídicos pessoais que (como a honra) podem ser atingidos através da publicação de escritos, baseia-se na ideia, salientada já por este Tribunal (assim, nos citados Acórdãos n.ºs 447/87 e 448/87), de que cabe justamente ao director a responsabilidade pela «determinação do conteúdo do periódico», e encontra limite na possibilidade de o director provar o desconhecimento do escrito ou imagem publicados ou a impossibilidade de impedir a publicação.
10. Conclui-se, por conseguinte, que a norma constante da alínea a) do n.º1 do artigo 32º da Lei n.º7/90/M (única norma em apreciação no presente recurso) não importa qualquer violação dos princípios da culpa e da presunção de inocência - como já anteriormente decidido por este Tribunal -, nem violação do principio da igualdade ou dos princípios da liberdade de expressão e de liberdade de informação. Pelo que o presente recurso de constitucionalidade não pode proceder. III Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional o artigo 32º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º7/90/M, de 6 de Agosto, e negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que diz respeito à questão de constitucionalidade. Lisboa, 3 de Fevereiro de 1999 Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Vitor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa Artur Maurício Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa