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Processo nº 454/01
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. P... interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de Maio de 2001 (de fls. 944 e segs.), ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo que o Tribunal apreciasse a 'inconstitucionalidade orgânica do artigo 3º do Decreto-Lei nº 180/96 de 25 de Setembro, designadamente ao revogar os artigos 360 a 370º do Código de Processo Civil, por violar o disposto no artigo 168º, nº 1, alínea q), da CRP, na redacção que lhe foi dada pela 3º revisão constitucional de 1992 (que corresponde ao actual artigo 165º, nº 1, alínea p), da CRP, nos termos da redacção que foi conferida pela 4º revisão de 1997', bem como o julgamento de 'inconstitucionalidade material dos artºs 546º, 547º e 548º do CPC, por desrespeito aos princípios do contraditório e da igualdade das partes, em violação dos artºs 13º, nº 1, 18º, nº 1, 20º, nº 5 e 204º da CRP'.
O acórdão recorrido foi proferido no âmbito de uma providência cautelar de suspensão de deliberações sociais requerida pelo agora recorrente contra D..., CRL, que foi indeferida pela 1ª instância, em sentença posteriormente confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Para o que agora releva, a requerida alegou e as instâncias deram como verificada a falsidade da data do reconhecimento notarial de um determinado documento, identificado nos autos. O Supremo Tribunal de Justiça, julgando o recurso de agravo interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, desatendeu a alegação de inconstitucionalidade feita pelo ora recorrente nos seguintes termos:
'Questão da constitucionalidade. No recurso para a Relação, o recorrente diz: O governo não estava autorizado a alterar os artºs do CPC que regulavam o incidente da falsidade. Além disso, a aplicação feita dos artºs 546º e 547º do C.P.C. viola os princípios do contraditório e da igualdade das partes. A Relação pronunciou-se dizendo, além do mais, o seguinte:
‘O legislador de 1995/1996, para simplificar os trâmites do incidente, teve de expurgar as normas do processo civil de matérias que eram, e são, do foro penal, remetendo a sua discussão e apreciação para os tribunais competentes...’.
‘Em vez de ser o juiz cível a apreciar matérias eventualmente criminais, remeteu para o processo penal os trâmites a seguir na sua apreciação, por quem de direito’.
‘Nada que possa ser entendido como violador dos princípios do contraditório ou da igualdade das partes, já que estes princípios terão total guarida nas normas do direito penal ou processual penal, onde certamente, não deixarão de ser respeitadas’. Conclui dizendo que as normas invocadas não sofrem de inconstitucionalidade orgânica.
É certo que na decisão não se inclui a inconstitucionalidade material mas ela está implícita na fundamentação. Não cremos que haja nulidade por omissão. Havendo-a, teríamos que a conhecer agora. Vamos pois apreciar a questão constitucionalidade. A Lei 33/95 autoriza o Governo a rever o C.P.C. nos termos e com o âmbito resultante dela. Artº 2º- As alterações a introduzir...visam concretizar, ..., o direito fundamental de acesso à justiça e aos tribunais, consagrando que tal direito envolve a obtenção, em prazo razoável, de uma decisão de mérito e afirmando como princípios estruturantes do processo civil o princípio do contraditório, designadamente na medida em que pressupõe que, em momento prévio à decisão, tenha sempre lugar a audição das partes sobre as questões de direito ou de facto suscitadas, e o princípio da igualdade das partes. No restante articulado não põe quaisquer limites à regulação do incidente da falsidade. Assim podemos dizer que a Assembleia deixou ampla margem de manobra ao governo na escolha do processo para atingir os fins indicados. Os verdadeiros limites, já resultavam da Constituição. O Governo escolheu uma forma, que julgou adequada, para processar o incidente da falsidade, mais simples que a anterior. Não violou a autorização. Também não violou a Constituição, porque não tratou de forma diferente as partes, nem violou o princípio do contraditório, pois a funcionária não é parte no processo. O que o legislador fez foi optar por afastar o litisconsórcio necessário que existia no procedimento anterior. Não há inconstitucionalidades.'
2. Apenas o recorrente apresentou alegações, sustentando, em síntese, o seguinte:
No que toca à inconstitucionalidade orgânica, afirma que as Leis nº
33/95, de 18 de Agosto e 28/96, de 2 de Agosto, que autorizaram o Governo a alterar o Código de Processo Civil, não incluem, 'directa ou indirectamente, expressa ou tacitamente, objectiva ou subjectivamente', qualquer autorização
'para alterar e muito menos para revogar os artºs 360º a 370º do CPC'. Deste modo, conclui, quanto a este ponto:
'8º O Governo, ao decidir, por si só, revogar os artºs 360º a 370º do CPC e incluir tal incidente específico num incidente atípico e de objecto diversificado de impugnação da genuinidade e elisão da autenticidade e força probatória de documentos,
9º
Com alterações estruturais no regime da mesma como por exemplo ao nível das partes formalmente consideradas – a funcionária deixa de ser parte
(quando efectivamente o é) para passar a ser apenas testemunha em violação do princípio do contraditório e da igualdade das partes, o que viola o espírito do artº 2º da lei nº 33/95 de 18 de Agosto.
10º
Extravasou as suas competências, legislando sobre matéria para a qual necessita de autorização expressa da Assembleia da República – art. 168º, nº 1, al. q) da CRP (redacção anterior à 4ª Revisão de 1997).
Assim,
11º
Verifica-se inconstitucionalidade orgânica do art. 3º do DL 180/96 de 25 de Setembro que revogou os artºs. 360º a 370º do CPC, em violação do art.
168º, nº 1 al. q) da CRP, na redacção que lhe foi dada pela 3º Revisão Constitucional de 1992'.
Para além disso, o recorrente afirma ainda que, sendo o Decreto-Lei
'hierarquicamente inferior à Lei', e não respeitando o artigo 3º do Decreto-Lei nº 180/96 'o objecto o sentido e a extensão das leis de onde emana', tal Decreto-Lei é ilegal, ilegalidade que poderia ser conhecida pelo Tribunal Constitucional.
Relativamente à alegada inconstitucionalidade material, o recorrente sustenta que os artigos 544º a 546º do Código de Processo Civil são materialmente inconstitucionais por violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, afirmação que assentaria nos seguintes argumentos, indicados nas conclusões das alegações:
'18º
A funcionária pública a quem a falsidade foi imputada, no presente processo, em virtude da aplicação do regime consagrado nos artºs 544º, 545º e
546º do CPC, não teve qualquer oportunidade de defesa, não pôde intervir na audiência em termos de contraditar os factos e as imputações aduzidas por ambas as partes.
19º
A decisão que foi proferida nos autos tem directa implicação na vida da funcionária, pois dela foi extraída certidão para efeitos de procedimento criminal.
20º
Não pode deixar de se considerar que a funcionária pública tem interesse directo na causa e nessa medida tem de ser considerada parte, com todos os direitos e deveres inerentes – art. 25º, nº 1 do CPC [sic].
21º
É por demais evidente que o novo regime de elisão de autenticidade de documento viola todas as garantias básicas e elementares de defesa do funcionário público, directamente ou indirectamente interveniente no acto que alegadamente originou a falsidade suscitada.
22º
Sendo parte obviamente interessada, com o novo regime ficou coartada a possibilidade de intervir no processo, contraditar os factos que lhe são imputados, apresentar provas, limitando-se a uma posição de testemunha.
(...)
27º
O facto de a funcionária pública não ter podido intervir e defender-se directamente consubstanciou uma situação de efectiva desigualdade entre as partes, formalmente consideradas, em proveito da recorrida D... e em prejuízo do recorrente.
Assim,
28º
A decisão recorrida aplicou as normas constantes dos artºs 544º,
545º e 546º em violação dos artsº 13º, nº 1 18º, nº 1, 32º, nº 5 e 204º da CRP, nos termos da redacção que lhe foi dada pela 4ª revisão de 1997 em preterição do princípio do contraditório e da igualdade das partes.'
3. Entendendo ocorrerem obstáculos ao conhecimento do mérito do recurso, a relatora determinou que as partes fossem notificadas do seguinte parecer (de fls. 1058):
'1. P... vem recorrer (por requerimento de 8 de Junho de 2001, de fls. 953 e segs.) para o Tribunal Constitucional do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de Maio de 2001 (de fls. 944 e segs.), visando, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o julgamento de
'inconstitucionalidade orgânica do artigo 3º do Decreto-Lei nº 180/96 de 25 de Setembro, designadamente ao revogar os artigos 360 a 370º do Código de Processo Civil, por violar o disposto no artigo 168º, nº 1, alínea q), da CRP, na redacção que lhe foi dada pela 3º revisão constitucional de 1992 (que corresponde ao actual artigo 165º, nº 1, alínea p), da CRP, nos termos da redacção que foi conferida pela 4º revisão de 1997', bem como o julgamento de
'inconstitucionalidade material dos artºs 546º, 547º e 548º do CPC, por desrespeito aos princípios do contraditório e da igualdade das partes, em violação dos artºs 13º, nº 1, 18º, nº 1, 20º, nº 5 e 204º da CRP'.
2. Tratando-se de um recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, é condição de conhecimento do respectivo objecto que a inconstitucionalidade que se pretende seja apreciada 'haja sido suscitada durante o processo', querendo isto dizer que há-de ter sido 'suscitada (...) de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer' (cit. al. b) do nº 1 do artigo 70º e nº 2 do artigo
72º da Lei nº 28/82).
Só é dispensado deste ónus o recorrente que não tenha disposto de oportunidade processual para o efeito, como o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado.
3. Ora, no caso, e não obstante a afirmação em contrário feita no requerimento de interposição de recurso, a verdade é que o recorrente não suscitou perante o Supremo Tribunal de Justiça, nem a inconstitucionalidade orgânica do artigo 3º do Decreto-Lei nº 180/96, de 25 de Setembro, nem a inconstitucionalidade, orgânica ou material, das normas contidas nos artigos 547º e 548º do Código de Processo Civil, limitando-se a suscitar a inconstitucionalidade em relação ao artigo 546º do mesmo Código.
4. Para além disso, nas alegações apresentadas perante o Tribunal Constitucional o recorrente vem colocar a questão da ilegalidade do mesmo artigo 3º do Decreto-Lei nº 180/96 e a da inconstitucionalidade dos artigos 544º e 545º do Código de Processo Civil, assim pretendendo alargar, de modo inadmissível, o objecto do recurso, que definira no requerimento de interposição.
5. Mesmo no que toca ao artigo 546º do Código de Processo Civil, não parece que se lhe possa referir a norma cuja inconstitucionalidade o recorrente lhe atribui, isto é, a que não permite ao funcionário a quem seja imputada a falsidade que se discute 'qualquer possibilidade de defesa', limitando-o 'a uma eventual posição de testemunha' (requerimento de interposição de recurso).
6. Finalmente, faz-se notar que, para a questão central que o recorrente pretendia ver conhecida, a da não intervenção com o estatuto de parte do referido funcionário, sempre seria irrelevante a apreciação do citado artigo 3º do Decreto-Lei nº 180/96; com efeito, tal intervenção não foi eliminada pela revogação dos artigos '360º a 370º' por aquele artigo 3º, mas sim pela revogação do nº 3 do artigo 361º do Código de Processo Civil pelo artigo 3º do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro. Assim, convidam-se as partes a pronunciarem-se sobre o não conhecimento do recurso, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 704º do Código de Processo Civil'.
4. Respondeu o recorrente, sustentando que 'a verdade é que o Supremo Tribunal de Justiça veio a conhecer da questão da inconstitucionalidade orgânica e material dos arts. 546º e 547º do CPC, como decorre da própria decisão', razão pela qual 'deve ser conhecido o mérito da causa' relativamente
àqueles preceitos e ao artigo '548º, pois são essas as normas reguladoras do incidente da falsidade.
Por último, com o devido respeito, contrariamente àquilo que vem alegado no parecer, onde se defende que é 'irrelevante a apreciação do citado artigo 3º do Decreto-Lei nº 180/96' pois a revogação dos art.s 360º a 370º do CPC foi efectuada pelo artigo 3º do DL 329-A/95, de 12 de Dezembro.
A revogação dos artigos supra identificados foi efectivamente operada pelo art. 3º do Decreto-Lei 180/96, de 25 de Setembro.
Pelo que, é relevante a apreciação da constitucionalidade tal como suscitada pelo recorrente'.
5. Não consta desta resposta nenhum argumento que permita afastar os apontados obstáculos ao conhecimento do objecto do recurso. Assim, o Tribunal Constitucional não pode conhecer da inconstitucionalidade atribuída, quer ao artigo 3º do Decreto-Lei nº 180/96, de 25 de Setembro, quer aos artigos 547º e 548º do Código de Processo Civil, por não ter sido suscitada
'durante o processo' (cfr. al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 e, por exemplo, os acórdãos deste Tribunal com os nºs 62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II, de 28 de Maio de 1994). Também se não pode pronunciar, nem sobre a ilegalidade apontada nas alegações apresentadas já no Tribunal Constitucional ao mesmo artigo 3º (o que, aliás, implicaria que o recurso tivesse sido também interposto ao abrigo da alínea f) do nº 1 do citado artigo 70º da Lei nº 28/82 ), nem sobre qualquer inconstitucionalidade que o recorrente quisesse referir aos artigos 544º e 545º do Código de Processo Civil, para além do mais, porque o objecto do recurso se define no requerimento de interposição, não podendo ser alargado nas alegações
(cfr., por exemplo, o acórdão nº 366/96, Diário da República II, de 10 de Maio de 1996). Finalmente, e no que toca ao artigo 546º do Código de Processo Civil, porque não se lhe pode referir – nem a nenhum dos outros preceitos do Código de Processo Civil que o recorrente acusa de inconstitucionalidade, aliás – a norma que o recorrente considera inconstitucional, como se observou no parecer. Com efeito, foi o artigo 3º do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, que, ao revogar o nº 3 do artigo 361º do Código de Processo Civil então em vigor, eliminou a intervenção do funcionário a quem fosse atribuída a falsidade do documento no incidente respectivo; e é a essa eliminação que o recorrente acusa de violar as regras constitucionais que aponta. É esta a observação que se fez no parecer acima referido, e não a que lhe é atribuída na resposta apresentada. Assim, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 ucs. Lisboa,15 de Março de 2002 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa