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Proc. n.º60/98
1ª Secção Relator — Paulo Mota Pinto
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, e em que figuram, como recorrente, o Ministério Público e, como recorrida, R..., o anterior relator lavrou a exposição prévia de fls.331 a 334, nos termos do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional (na redacção anterior à introduzida pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro), propondo que o Tribunal não conheça do recurso, por falta de suscitação de uma inconstitucionalidade normativa durante o processo.
2. Apenas o recorrente respondeu a esta exposição, fazendo-o nos seguintes termos:
'2º Afigura-se, porém, que (...) nas alegações apresentadas se terá construído, com um mínimo de inteligibilidade, uma questão de inconstitucionalidade normativa, reportada às normas que conduziram à decisão judicial de reintegrar aquela trabalhadora, ao afirmar-se, a fls. 274, que ao 'admitir uma reintegração com esta natureza [isto é, 'como trabalhadora efectiva, com um estatuto de contrato de trabalho, em tudo idêntico ao contrato de trabalho privado, por força da conversão do contrato a termo num contrato sem termo], sempre se dirá que a referida situação conflitua com o artigo 14º, n.º 1, a contrário, e com o artigo 43º do Decreto-Lei 427/89, que proíbem tal tipo contratual na função pública e no regime de emprego na Administração Pública.
3º É neste quadro que deverão, porventura, ser entendidas as imputações de inconstitucionalidade feitas naquela alegação: a fls. 274, ao afirmar-se 'que tal reintegração (que pressupõe naturalmente a referida interpretação normativa dos artigo 14º e 43º do Decreto-Lei 427/89) viola o disposto no artigo 47º, n.º
2, da Constituição da República Portuguesa.
4º E que tal reintegração, ao originar a coexistência de dois regimes de prestação de trabalho, surgiria à revelia de uma opção de política legislativa da Assembleia da República, que possui reserva relativa de competência em matéria de bases gerais do regime e âmbito da função pública (fls. 275).
5º Em suma: reconhecendo embora alguma deficiência, no que toca a adequada suscitação da questão de constitucionalidade normativa nas conclusões da alegação propriamente ditas, a articulação destas com a argumentação anteriormente expendida permitirão, porventura, identificar tal questão de constitucionalidade, reportada a certa interpretação e aplicação da norma do artigo 14º do Decreto-
-Lei n.º 427/89.'
3. O presente recurso foi interposto pelo Ministério Público, em representação do Estado, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Constituem requisitos deste tipo de recurso a suscitação, durante o processo, de uma inconstitucionalidade normativa, a aplicação dessa norma, com o sentido alegadamente inconstitucional, como critério de decisão do caso, e o esgotamento prévio dos recursos ordinários à disposição do recorrente. O Tribunal Constitucional tem decidido que só lhe cumpre proceder a um controle de constitucionalidade de normas e não de decisões, e que a exigência de suscitação da inconstitucionalidade, para o recurso da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional,
'é uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade para que o Tribunal Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame (e não a um primeiro julgamento) de tal questão.' (Acórdão n.º 560/94, publicado no Diário da República, II Série, de 10 de Janeiro 1995) E tem igualmente decidido este Tribunal que
'Suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que (..) tal se faça de modo claro e perceptível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido.'( Acórdão n.º 269/94, publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Junho de 1994). Como se afirmava no Acórdão n.º 199/88 (publicado no Diário da República, II Série, de 28 de Março de 1989):
'[...]este Tribunal tem decidido de forma reiterada e uniforme que só lhe cumpre proceder ao controle da constitucionalidade de ‘normas’ e não de ‘decisões’ – o que exige que, ao suscitar-se uma questão de inconstitucionalidade, se deixe claro qual o preceito legal cuja legitimidade constitucional se questiona, ou, no caso de se questionar certa interpretação de uma dada norma, qual o sentido ou a dimensão normativa do preceito que se tem por violador da lei fundamental.'
(ver também, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 178/95 - publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Junho de 1995 -, 521/95 e 1026/9, inéditos)
4. Ora, será que, consultando as alegações de recurso apresentadas pelo Ministério Público, em representação do Estado, no Tribunal do Trabalho de Almada, se pode considerar adequadamente cumprido o ónus de suscitação da inconstitucionalidade da norma recorrida, isto é, do artigo 14º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, quando interpretado no sentido de que os contratos de trabalho a termo certo celebrados com o Estado, ou outras pessoas colectivas de direito público, são passíveis de conversão em contratos de trabalho sem termo? Impõe-se uma resposta negativa. Na verdade, nas referidas alegações não se indica sequer a referida interpretação do artigo 14º, n.º 3, apenas se imputando a inconstitucionalidade, por violação do artigo 47º, n.º 2 da Constituição, à decisão de reintegração da recorrida, a qual, diz-
-se, contraria igualmente o artigo 14º do referido Decreto-Lei n.º 427/89. Não se encontra porém, impugnada a constitucionalidade desta norma do artigo 14º, em qualquer dos seus números (não se fazendo sequer referência ao n.º 3), nem se menciona a interpretação do referido artigo 14º, n.º 3 que se pretende agora ver apreciada pelo Tribunal Constitucional. Não se pode, pois, afirmar que a questão de constitucionalidade desta norma, com a interpretação agora impugnada, tenha sido posta ao tribunal recorrido em termos de este a dever apreciar e de poder delimitar o sentido dessa norma cuja inconstitucionalidade é questionado. É, aliás, sintomático que não se faça qualquer referência à questão de constitucionalidade na parte decisória do acórdão da Relação de Lisboa recorrido. Quanto à alegada inconstitucionalidade orgânica, por violação da reserva relativa de competência da Assembleia da República – aliás, não mencionada no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional -, também não foi adequadamente suscitada pelo recorrente, não sendo sequer referida directamente a um determinado diploma nem constando das conclusões das alegações de recurso.
5. Nestes termos, o Tribunal entende que a «pronúncia» do recorrente sobre a exposição prévia elaborada pelo anterior relator não infirma os argumentos e o teor da decisão proposta, decidindo, em concordância com essa exposição, não tomar conhecimento do presente recurso. Lisboa,6 de Outubro de 1998 Paulo Mota Pinto Vitor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Artur Maurício Maria Helena Brito Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa