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Proc. nº 505/96
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. R...,LDA apresentou, no Tribunal Tributário de 1ª Instância de Braga, recurso da decisão proferida pelo Director Distrital de Finanças que lhe aplicara, pela falta de entrega do IRS retido aos seus colaboradores respeitante a diversos períodos (ao 3º trimestre de 1991, aos meses de Outubro e Novembro de 1991, aos
1º e 3º trimestres de 1992, e ainda aos meses de Outubro, Novembro e Dezembro do mesmo ano), as coimas de 300.000$00 por cada período em falta, no total de 1 800
000$00, reduzido para metade, ou seja, 900 000$00, mediante a regularização das faltas no prazo de 15 dias.
Por sentença de 24 de Setembro de 1993, o Tribunal Tributário de 1ª Instância de Braga, decidindo que as coimas tinham sido bem aplicadas e devidamente graduadas, negou provimento ao recurso.
2. Inconformada, a recorrente interpôs recurso dessa decisão para a 2ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo. Nas suas alegações no STA a recorrente suscitou a inconstitucionalidade do nº 4 do artigo 29º do Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro (RJIFNA), aplicado na fixação da coima, por violação dos artigos 12º e 13º da Constituição, 'na medida em que estabelece uma nitida desigualdade entre o contribuinte em geral e a pessoa colectiva ou entidade fiscalmente equiparada.' Contra-alegando nesse recurso, a representante da Fazenda Pública, no tocante à suscitada questão de inconstitucionalidade, pronunciou-se pela sua não verificação, nos seguintes termos: Este tipo de responsabilização das pessoas colectivas tem finalidades so-cialmente justificadas. Trata-se de evitar que a utilização da ficção da personalidade jurídica colectiva que representa riscos acrescidos para os credores, devido a fenómenos como a limitação de responsabilidade, seja feita com defraudação de interesses legítimos da sociedade em que actua. A eventual responsabilização mais agravada prevista nas leis é expressão desses objectivos. Por Acórdão de 29 de Março de 1995, o STA declarou-se incompetente, em razão da hierarquia, para conhecer do recurso, nos termos do nº 3 do artigo 47º do Código de Processo Tributário, declarando competente para o mesmo o Tribunal Tributário de 2ª Instância.
3. Remetidos os autos à 2ª Instância, este Tribunal, por acórdão de 9 de Janeiro de 1996, negou provimento ao recurso, concluindo também pela não verificação da inconstitucionalidade suscitada. Novamente inconformada, a recorrente veio então interpor recurso dessa decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), e nº 2, da LTC, para apreciação da constitucionalidade da norma contida no nº 4 do artigo 29º do Decreto-Lei nº 20-A/90 (na redacção anterior ao Decreto-Lei nº 394/93). Indicou como preceitos constitucionais violados os artigo 12º e 13º da Constituição.
4. Já neste Tribunal, concluiu assim as suas alegações:
1. A recorrente, por falta de entrega do I.R.S. respeitante a seis períodos, foi punida no pagamento da coima total de 1.800.000$00 - reduzida para 900.000$00 nos termos da al. c), do nº 1, do artº 25º do CPT-, valor esse que corresponde ao dobro do que normalmente seria devido.
2. Tal valor foi fixado tão só pelo facto de a recorrente ser pessoa colectiva e, pois, pelo recurso ao disposto no nº 4, do artigo 29º, do Dec. Lei nº
20-A/90, na sua redacção original.
3. O preceito legal citado no número anterior é inconstitucional, dado que prevê uma medida de sanção totalmente divergente daquela a que qualquer pessoa singular estaria sujeita, consubstan-ciando assim uma verdadeira e absurda discriminação.
4. Os princípios constitucionais da universalidade e igualdade são de aplicação automática à recorrente, que beneficia de todos os seus efeitos, o que apenas não poderia verificar-se se o questionado dispositivo legal estabele-cesse qualquer justificação para uma diferenciação tão importante.
5. Crê-se, pois, que o nº 4, do artigo 29º, do Dec. Lei nº 20-A/90, não está em conformidade com os princípios gerais da universalidade e igualdade consagrados nos artigos 12º e 13º da Lei Fundamental. Por sua vez, a Fazenda Pública concluiu as suas contra-alegações pela forma seguinte: a) O regime consagrado no nº 4 do Dec-Lei 20-A/90, de 15 de Janeiro assenta na especificidade dos ilícitos de natureza fiscal em que podem estar em causa a evasão de montantes bastante elevados e nas exigências de harmonização e coerência do sistema penal fiscal; b) Tal especificidade é cabalmente justificada pelo legislador; c) O nº 4 do artigo 29º do Dec-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, está em conformidade com todos os princípios constitucionais e, designadamente, não viola os princípios gerais de universalidade e igualdade consagrados nos artigos
12º e 13º da CRP.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
5. A norma cuja inconstitucionalidade vem suscitada é a constante do nº 4 do artigo 29º do Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro (RJIFNA), com o seguinte teor:
Se as condutas mencionadas nos nºs 1 e 2 forem imputáveis a pessoa colectiva ou entidade fiscalmente equiparada, os limites das coimas neles previstas elevar-se-ão para o dobro. Aqueles outros números estabelecem os limites mínimo e máximo das coimas aplicáveis pela não entrega, por período até 90 dias, da prestação tributária, fixando-os em 20 000$00 e 300 000$00, ou, no caso de negligência, em 10 000$00 e
150 000$00. Entende a recorrente que aquela disposição legal cria uma discriminação injustificada e irrazoável entre situações iguais ou equivalentes, ou seja, atribui tratamento diferenciado a situações que o não são, assim violando os princípios da universalidade e da igualdade.
6. Desde logo, adiante-se que não se descortina qualquer violação do princípio da universalidade, disposto no artigo 12º da Constituição. Este dispõe:
1. Todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição.
2. As pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza.
É o próprio texto constitucional a distinguir de forma clara as pessoas singulares das pessoas colectivas, ao referir-se a estas de forma expressa naquele nº 2, ressalvando assim a sua específica natureza. Não se descortina aqui qualquer equiparação, ainda que formal, da personalidade colectiva à personalidade singular. Com efeito, a personalidade colectiva, como criação jurídica, reveste-se de uma específica natureza e características, impossibilitando qualquer ficção de equiparação à personalidade singular. Assim, como dispõe o artigo 160º do Código Civil, no seu nº 2, «exceptuam-se [da capacidade das pessoas colectivas] os direitos e obrigações vedados por lei ou que sejam inseparáveis da personalidade singular», sendo a regra geral a de que a capacidade das pessoas colectivas apenas abrange os direitos e as obrigações (ou deveres) compatíveis com a sua específica natureza e que sejam necessários à prossecução dos seus fins - é o princípio da especialidade. Não são, pois, imediatamente aplicáveis às pessoas colectivas, indiscrimina-damente, todas as normas e regras que o são às pessoas singulares. Não existe no nosso sistema uma equiparação ou presunção de igualdade entre personalidade singular e personalidade colectiva, como parece entender a recorrente.
7. Citando J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, Coimbra, 1993: As pessoas colectivas não podem ser titulares de todos os direitos e deveres fundamentais mas sim apenas daqueles que sejam compatíveis com a sua natureza
(nº 2, in fine). Saber quais são eles, eis um problema que só pode resolver-se casuisticamente. Assim, não serão aplicáveis, por exemplo, o direito à vida e à integridade pessoal, o direito de constituir família; já serão aplicáveis o direito de associação, a inviolabilidade de domicílio, o segredo de correspondência, o direito de propriedade. [...]
É claro que o ser ou não ser compatível com a natureza das pessoas colectivas depende naturalmente da própria natureza de cada um dos direitos fundamentais, sendo incompatíveis aqueles direitos que não são concebíveis a não ser em conexão com as pessoas físicas, com os indivíduos. E depende também da natureza das pessoas colectivas em causa [...]
É evidente que certos direitos podem revelar-se incompatíveis com a personalidade colectiva apenas em parte ou em certa medida, pelo que não podem ser aplicados com a mesma extensão e conteúdo que às pessoas físicas.
8. Este entendimento foi já acolhido por este Tribunal, nomeadamente no Acórdão nº 198/85, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 6º vol., págs. 473), a propósito da norma constante do artigo 1216º do CPC e do conteúdo do direito ao sigilo de correspondência relativamente às pessoas colectivas. Entendendo-se que tal direito «não é incompatível com a natureza das pessoas colectivas e de que, portanto, este é um direito fundamental de que também tais pessoas gozam, nos termos do nº 2 do artigo 12º da Constituição», aí se afirma em seguida: Simplesmente, a «aplicação» dos direitos fundamentais às pessoas colectivas não pode deixar de levar em conta a particular natureza destas - e de tal modo que seguramente tem de reconhecer-se que, ainda quando certo direito fundamental seja compatível com essa natureza, e portanto susceptível de titularidade
«colectiva» (hoc sensu), daí não se segue que a sua aplicabilidade nesse domínio se vá operar exactamente nos mesmos termos e com a mesma amplitude com que decorre relativamente às pessoas singulares. Tem a doutrina chamado a atenção para o ponto, e designadamente para o facto de o «conteúdo» dos direitos fundamentais poder ser diferente (e mais estreito) quando o respectivo titular for uma pessoa colectiva, antes que uma pessoa singular.
9. Presente esta distinção fundamental, vejamos então o conteúdo do princípio da igualdade. Como tem este Tribunal amplamente afirmado (cfr., por todos, Acórdãos nº 44/84, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3º vol., págs. 133 e segs., nº
309/95, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol., págs. e segs., nº 191/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 12º vol., págs. 239 e segs., nº 303/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 17º vol., págs. 65 e segs., nº 468/96, Diário da República, II série, de 13 de Maio de 1996, e, mais recentemente, nº
1186/96, Diário da República, II série, de 12 de Fevereiro de 1997, e nº
1188/96, Diário da República, II série, de 13 de Fevereiro de 1997), o que o princípio da igualdade proíbe não é a realização de distinções pelo legislador, mas antes que este estabeleça situações discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, desprovidas de fundamento razoável ou de justificação objectiva e racional. Proíbe, pois, o arbítrio. Não haverá qualquer ofensa desse princípio sempre que estivermos perante situações de facto diferentes, merecendo da parte do legislador tratamento diverso em função de tal diferenciação. Já tal se verificará se, perante situações de facto idênticas a exigirem um mesmo e único tratamento indiferenciado, o legislador, sem fundamento razoável e objectivo, criar tratamentos diferenciados para elas.
10. A norma em questão, pela matéria que versa, insere-se no âmbito da problemática da responsabilização penal das pessoas colectivas. Como regra, a nossa lei consagra a individualidade da responsabilidade criminal, abrindo excepções a esse princípio. Ora, da total irresponsabilidade das pessoas colectivas passou-se, de excepção em excepção, a uma cada vez mais ampla responsabilização das mesmas, e consequente aplicação de punições ou sanções, sobretudo no domínio do direito de mera ordenação social. Essa responsabilização das pessoas colectivas tem-se caracterizado pelo estabelecimento de sanções - coimas - de montantes mais elevados do que os determinados para as pessoas singulares, e isto não só no específico âmbito a que se reporta a norma em questão nos presentes autos (infracções fiscais). Assim, o Decreto-Lei nº 433/83, de 27 de Outubro - que instituiu o ilícito de mera ordenação social, e como lei quadro desta matéria -, enquanto estabelecia, na versão originária, no nº 1 do artigo 17º, que o limite máximo das coimas para as pessoas singulares não podia ultrapassar os 200.000$00, dispunha desde logo no seu nº 3 que tais limites se poderiam elevar aos máximos de 3 000 000$00 e de
1 500 000$00, no caso de serem aplicáveis a pessoas colectivas, respectivamente, a título de dolo ou de negligência. O Decreto-Lei nº 356/89, de 17 de Outubro, alterou os números 1 e 3 daquele artigo, passando aqueles limites a situar-se em 500 000$00 para as pessoas singulares, e em 6 000 000$00 em caso de dolo, ou 3 000 000$00 em caso de negligência, para as pessoas colectivas; finalmente, o Decreto-Lei nº 244/95, de
14 de Setembro, veio estabelecer aqueles limites em 750 000$00 para as pessoas singulares e em 9 000 000$00 para as pessoas colectivas, determinando ainda que, em caso de negligência, tais montantes máximos seriam respectivamente, de 375
000$00 para as pessoas singulares e de 4 500 000$00 para as pessoas colectivas.
11. Assim, ressalta desde logo como constante deste sistema sancionatório, a diferença substancial entre os limites máximos das coimas aplicáveis às pessoas colectivas e os aplicáveis às pessoas singulares. No preâmbulo do Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, do qual faz parte a norma em apreciação, alude-se expressamente ao problema da responsabilização penal das pessoas colectivas nos termos seguintes: Esclarecida a opção da crimina-lização de algumas infracções fiscais, uma primeira questão essencial se colocava: a da aplicabilidade das penas criminais
às pessoas colectivas. Como é sabido, razões de ordem pragmática têm levado a que nos últimos anos se generalize a tendência de admitir excepções ao dogma da individualidade da responsabilidade criminal. Tais razões assentam, principal-mente, na necessidade de responder ao moderno incremento das actividades delituosas imputáveis preponderantemente a grandes organizações económicas, pelo que a responsabilização criminal das pessoas colectivas tem sido admitida, cada vez mais, sobretudo no domínio do direito penal secundário, incluindo o direito penal fiscal. O próprio Código Penal Português, embora afirmando a regra da indivi-dualidade da responsabilidade criminal, considerou que tal princípio não é intangível, podendo haver excepções ao mesmo. Aliás, tal forma de respon-sabilização encontra-se há alguns anos expressa e profusamente consagrada no ordenamento penal, sobretudo nas áreas do direito penal secundário. Em consonância, admitiu-se a responsabilidade penal das pessoas colectivas. E, mais adiante, no tocante ao montante dos limites máximos das coimas aplicáveis, pode ler-se também: Por sua vez, e no que se refere à dosimetria das coimas, pode o montante máximo das mesmas ascender a 20 000 000$00, em caso de infracção dolosa da responsabilidade de pessoas colectivas ou entidades fiscalmente equiparadas. Esta alteração quantitativa é aceitável e justificada, por um lado, em razão da própria especificidade dos ilícitos de natureza fiscal em que podem estar em causa a evasão de montantes bem elevados e, por outro lado, pelas exigências de harmonização e coerência do sistema penal fiscal.
12. A norma em questão insere-se, pois, na lógica do sistema e na tradição legislativa adoptada em sede de punição de contra-ordenações, com diferenciação dos limites aplicáveis, consoante se esteja perante pessoas colectivas ou singulares. Ora bem, aquela diferenciação não se apresenta como violadora do princípio da igualdade. Com efeito, a radical distinção de natureza entre pessoas singulares e colectivas, exclui, desde logo, a existência da igualdade fáctica que constitui o necessário pressuposto para que se possa considerar a operatividade do princípio jurídico-constitucional da igualdade. De todo o modo, a desigualdade de tratamento, no aspecto que ora importa, entre pessoas singulares e pessoas colectivas, assenta em fundamentos objectivos e razoáveis. Na verdade, as medidas sancionatórias visam, também, numa perspectiva de prevenção geral dos comportamentos ilícitos, impedir a ocorrência de certas condutas com reflexos negativos na organização social. Pois bem: essas condutas, em última análise, são sempre imputáveis à actuação de certas pessoas singulares, sendo certo que, em regra, as sanções aplicadas à pessoa colectiva se reflectem de forma já muito atenuada sobre aquelas pessoas singulares. Assim sendo, bem se compreende que, para se poder atingir o referido objectivo de prevenção geral, evitando-se a diluição de responsabilidade individual que sempre resulta da personalidade colectiva, as sanções aplicáveis sejam de montante sensivelmente superior quando o respectivo destinatário seja uma pessoa colectiva.
13. Tem, pois, a norma constante do nº 4 do artigo 29º do Decreto-Lei nº 20-A/90 fundamentos razoáveis e objectivos que legitimam a diferenciação de tratamento por ela determinado. Não se trata de uma distinção arbitrária nem desprovida de fundamento. Não se vislumbra, portanto, qualquer violação do princípio da igualdade.
III - DECISÃO
14. Assim, e pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso. Lisboa, 7 de Outubro de 1998 Luis Nunes de Almeida Messias Bento Guilherme da Fonseca Bravo Serra Maria dos Prazeres Beleza José Manuel Cardoso da Costa