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Procº nº 860/96
2ª Secção/Plenário Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam em plenário no Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. H..., na qualidade de senhorio, não se conformando com o resultado da comissão de avaliação que fixou em 1.800.000$00 a renda anual do prédio sito em Largo Luís de Camões, nºs 4 e 5 em Cascais, interpôs recurso dessa decisão para o Tribunal Judicial de Cascais, pretendendo que a renda fosse fixada em 4.800.000$00.
Da mesma decisão recorreu o inquilino, J..., por entender, entre o mais, que a avaliação extraordinária em causa era legalmente inadmissível.
Por decisão de 19 de Maio de 1995, o Juiz a quo revogou a decisão da comissão de avaliação, com fundamento na inadmissibilidade da avaliação fiscal extraordinária efectuada, concedendo provimento ao recurso do inquilino e negando o do senhorio.
2. Inconformado, veio este interpor recurso dessa sentença para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Por despacho de 19 de Junho de 1995, tal requerimento de recurso foi liminarmente indeferido, com fundamento na irrecorribilidade da decisão final do recurso interposto de decisão da comissão fiscal de avaliação para o tribunal de comarca, nos termos do disposto no artigo 15º, § único, do Decreto nº 37021, de
21 de Agosto de 1948.
O recorrente reclamou então, com êxito, desse despacho para o presidente da Relação.
Todavia, por acórdão de 1 de Fevereiro de 1996, em conferência, a Relação de Lisboa não admitiu o recurso pretendido.
3. Novamente inconformado, o recorrente interpôs então recurso dessa decisão para o Supremo Tribunal de Justiça.
Por despacho de 28 de Fevereiro de 1996, o relator do processo não admitiu esse recurso, com fundamento na sua inadmissibilidade, quer face ao valor da causa, quer à natureza do processo.
O recorrente reclamou desse despacho para o Presidente do STJ, alegando, além do mais, que:
...a entender-se que o citado § único do artº 15 suprime a possibilidade de recorrer, então sempre se terá de concluir que esta norma é inconstitucional por violação do princípio do duplo grau de jurisdição estabelecido no artº 215 da CRP.
Em conferência, a Relação confirmou, por acórdão de 21 de Março de
1996, aquele despacho de não admissão do recurso, mas apenas com fundamento no disposto no artigo 15º, § único, do Decreto nº 37.021, de 21 de Agosto de 1948 - irrecorribilidade da decisão atenta a natureza do processo -, e já não no valor da causa.
4. Por despacho de 26 de Agosto de 1996, o presidente do STJ indeferiu a reclamação, confirmando a decisão de não admissão do recurso.
Desta decisão a recorrente interpôs recurso para este Tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC, para apreciação da constitucionalidade da norma constante do citado § único do artigo 15º do Decreto nº 37021, por violação do princípio constitucional do duplo grau de jurisdição, constante, segundo o recorrente, do artigo 215º da Constituição.
5. Pelo Acórdão nº 638/98, de 4 de Novembro de 1998, o Tribunal Constitucional, pela sua 2ª Secção, julgou não inconstitucional a norma constante do § único do artigo 15º do Decreto nº 37021, de 21 de Agosto de 1948 e negou provimento ao recurso.
Notificado desse aresto, veio o Ministério Público «interpor recurso para o Plenário deste Tribunal, nos termos do artigo 79º-D da Lei nº 28/82, com fundamento em nele se ter emitido juízo de constitucionalidade de certo segmento ou dimensão» daquela norma, «em colisão com o decidido anteriormente pela 1ª Secção deste Tribunal, no acórdão nº 124/98 (orientação reiterada no Acórdão nº
383/98)».
Por despacho de 2 de Dezembro de 1998, o relator não admitiu o recurso, por falta de legitimidade do Ministério Público para o efeito, nos termos seguintes: Na verdade, estabelece o artigo 79º-D, nº 1, da LTC, que o recurso em causa, quando ocorra divergência jurisprudencial, é «obrigatório para o Ministério Público quando intervier no processo como recorrente ou recorrido». Ora, no caso sub judicio, o Ministério Público não interveio como recorrente ou como recorrido. E não se diga que, em tais casos, a interposição de recurso para plenário, pelo Ministério Público, não sendo obrigatória é, todavia, facultativa: é que se não vê como poderia ficar na discricionariedade do Ministério Público o eventual destino da marcha de um processo em que não é parte, sendo certo que a lei não entendeu existir um interesse público na uniformização da jurisprudência suficientemente relevante para que fosse instituído um regime de recurso obrigatório.
O Ministério Público reclamou, então, desse despacho para o Plenário, com os fundamentos seguintes:
1º - Afigura-se que – na interpretação que nos parece, salvo melhor opinião, a mais correcta e adequada – o Ministério Público terá legitimidade para interpor recurso para o Plenário deste Tribunal em todos os casos em que se verifiquem divergências jurisprudenciais entre as Secções, no que respeita à apreciação do mérito de uma questão de constitucionalidade normativa.
2º - Independentemente de ser ou não parte principal no processo em que foi proferido o acórdão que originou o referido conflito jurisprudencial.
3º - Neste sentido, invocamos, desde logo, o elemento literal, que parece apontar para a plena admissibilidade de tal recurso por parte das pessoas ou entidades a quem o acórdão proferido deve ser notificado – apenas se explicitando que ele reveste natureza obrigatória para o Ministério Público quando tiver tido intervenção principal, como recorrente ou recorrido, no processo.
4º - Ou seja: de tal interpretação resulta que o Ministério Público poderá recorrer para o Plenário sempre que, não sendo 'parte principal' na causa, se aperceba do conflito jurisprudencial originado; e deverá recorrer para o mesmo
órgão sempre que – por ter tido intervenção principal no recurso – se deva necessariamente ter apercebido da criação de tal conflito.
5º - De um ponto de vista funcional ou teleológico, tal legitimação para recorrer parece-nos fundar-se na tutela do interesse público na uniformização da jurisprudência – tarefa tradicionalmente cometida, no nosso ordenamento jurídico, ao Ministério Público – visando evitar que se consolidem irremediavelmente decisões contraditórias sobre a conformidade constitucional de uma mesma norma jurídica, com os evidentes inconvenientes em termos de segurança e certeza do direito.
6º - Deste modo, o fundamento da legitimação para recorrer que, a nosso ver, é conferida ao Ministério Público pela citada norma será – não obviamente a tutela do interesse particular da parte que será reflexamente beneficiada com a interposição (e eventual procedência) do recurso – mas a tutela do interesse público em que se não consolidem no ordenamento jurídico decisões contraditórias sobre a constitucionalidade de uma mesma norma.
7º - Não estaremos, pois, confrontados com uma 'normal' legitimidade para recorrer, fundada no artigo 680º do Código de Processo Civil – destinada a tutelar o interesse da 'parte principal' na causa, que haja ficado 'vencida' - mas perante uma legitimação para agir que assentará antes na tutela do interesse público na uniformização da jurisprudência.
8º - Tarefa essa, aliás, tradicionalmente cometida ao Ministério Público, e que sempre comportou a atribuição da faculdade (ou do dever de recorrer) com vista a solucionar conflitos jurisprudenciais (cfr. artigos 770º do CPC, na redacção anterior à reforma operada pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, artigos 437º, 446º e
447º do CPP, artigo 104º, nº 1, da LPTA), bem como a consagrar a necessária intervenção em tal tipo de recursos do Ministério Público (artigos 79º-D, nº 3, da Lei nº 28/82, artigos 732º-A, nº 2 e 732º-B, nº 1, do Código de Processo Civil), mesmo quando não haja sido o recorrente.
9º - Invoca-se, finalmente, em apoio da tese ora sustentada, o precedente resultante da tramitação do processo nº 642/92, da 1ª Secção, que culminou na prolação do acórdão nº 176/97, que confirmou a decisão constante do Acórdão nº
508/96.
10º - Na verdade, embora o Ministério Público não tivesse intervenção principal neste processo – em que figuravam como recorrente José Alberto Taveira Marques e como recorrido o Secretário de Estado do Tesouro – foi interposto pelo Ministério Público recurso, nos termos do artigo 79º-D, invocando contradição entre aquele aresto e o Acórdão nº 106/95, o qual foi admitido e apreciado pelo próprio Tribunal Constitucional, culminado na prolação do Acórdão nº 176/97, que solucionou efectivamente o conflito jurisprudencial surgido entre as Secções deste Tribunal.
11º - Termos em que deverá, salvo melhor opinião, proceder a presente reclamação, admitindo-se o recurso interposto nos autos.
Cumpre decidir.
II – FUNDAMENTOS
6. O artigo 79º-D, nº 1, da LTC estabelece o seguinte:
Se o Tribunal Constitucional vier julgar a questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade em sentido divergente do anteriormente adoptado quanto à mesma norma, por qualquer das suas secções, dessa decisão cabe recurso para o plenário do Tribunal, obrigatório para o Ministério Público quando intervier no processo como recorrente ou recorrido.
Admite-se que o teor literal deste preceito contenha uma certa ambiguidade, não sendo inteiramente claro se nele se pretende apenas impor que o Ministério Público recorra obrigatoriamente naqueles casos em que, por ser parte, o poderia sempre fazer; ou se, pelo contrário, nele se quer estipular não só que o Ministério Público deve obrigatoriamente recorrer quando for parte, mas também que ele o pode igualmente fazer, embora facultativamente, nos restantes casos.
Nesta conformidade, o que importa é determinar quais as razões que podem ter levado o legislador a optar por uma daquelas alternativas – isto é, apurar qual o espírito da lei, tendo em conta os interesses em presença.
Em favor da legitimidade do Ministério Público para a interposição do recurso, poderia invocar-se, desde logo, como o faz o reclamante, um
«interesse público na uniformização da jurisprudência», com referência a determinados lugares paralelos – artigo 770º do Código de Processo Civil, na redacção anterior à reforma operada pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, artigos 437º,
446º e 447º do Código de Processo Penal e artigo 104º, nº 1, da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos.
Em sentido contrário, poderá fazer-se apelo, para além do mais, ao princípio dispositivo, ele próprio emanação do Estado de direito democrático. Na verdade, o princípio dispositivo é «redutível à ideia de disponibilidade da tutela jurisdicional», que inclui a «disponibilidade da instância» (cfr. José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil – Conceito e Princípios Gerais, Coimbra Editora, 1996, págs. 125/126), o que pressupõe que, em princípio, só às partes – ou àqueles que hajam sido directa e efectivamente prejudicados pela decisão - seja reconhecida legitimidade para recorrer das decisões jurisdicionais.
Há, assim, que começar por averiguar se o legislador, no caso vertente – e no quadro do nosso sistema jurídico -, pretendeu aqui fazer prevalecer o invocado interesse público na uniformização da jurisprudência, com postergação dos princípios gerais atinentes à legitimidade para a interposição de recursos.
7. Cumpre assinalar, em primeiro lugar, como se sublinhou no despacho reclamado, que «a lei não entendeu existir um interesse público na uniformização da jurisprudência, suficientemente relevante para que fosse instituído um regime de recurso obrigatório».
Com efeito, se o legislador entendesse atribuir valor absoluto à necessidade de uniformização da jurisprudência, teria então determinado que, sempre que ocorresse contradição de julgados, o Ministério Público era obrigado a interpor recurso para o plenário. A previsão de um mero recurso facultativo – tese sustentada na reclamação – é dificilmente compatível com o reconhecimento de um interesse público na uniformização da jurisprudência suficientemente forte para fazer recuar a aplicação das regras gerais - ao que acresce o facto de a lei não conferir valor de jurisprudência obrigatória à decisão tirada em plenário. Com efeito, como a satisfação desse interesse público na uniformização da jurisprudência, por um lado, só se pode obter no caso de haver recurso e, por outro lado, é obtida seja qual for a decisão de fundo sobre a questão controvertida, não se lobriga como possa o legislador prosseguir tal interesse, a título principal, sem estabelecer um recurso obrigatório e concedendo ao Ministério Público a faculdade de recorrer ou não recorrer, consoante o teor da decisão recorrida.
A invocação dos lugares paralelos do antigo artigo 770º do Código de Processo Civil e do artigo 447º do Código de Processo Penal é, a este propósito, inconclusiva. Desde logo, porque o primeiro foi eliminado da nossa ordem jurídica, exactamente porque se considerou já não se justificar um recurso para uniformização da jurisprudência; e, ainda, porquanto em ambos os casos a decisão proferida para resolver o conflito de jurisprudência não tem – ou não tinha – eficácia no processo em que o recurso tiver – ou tivesse – sido interposto, o que elimina qualquer colisão com o princípio dispositivo.
Por outro lado, também falece a comparação com o preceituado no artigo 104º, nº 1, da LPTA, já que, no âmbito do contencioso administrativo, a lei reconhece expressamente ao Ministério Público possibilidades especiais de intervenção para defesa da legalidade, sendo certo que ele pode sempre interpor recurso, em prazo alargado, de actos administrativos para o STA (cfr. artigo
46º, nº 2º, do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo).
8. Dir-se-á, porém, que o recurso facultativo, no caso vertente, se justificaria na medida em que, havendo contradição de julgados, sempre deveria caber ao Ministério Público promover a uniformização da jurisprudência em defesa da legalidade democrática, no exercício de uma competência que resultaria do disposto na parte final do nº 1 do artigo 219º da Constituição. Isto é, ao Ministério Público deveria ser concedida a possibilidade de recorrer ou de não recorrer, conforme o juízo que fizesse sobre a legalidade (recte, a constitucionalidade) da solução adoptada na decisão em causa.
Só que o nosso sistema legal não reconhece, em geral - salvo nos casos excepcionais referidos na alínea o) do nº 1 do artigo 3º do Estatuto do Ministério Público, republicado em anexo à Lei nº 60/98, de 27 de Agosto - competência ao Ministério Público para interpor recursos facultativos em defesa da legalidade democrática – o que suporia uma legitimidade do Ministério Público para recorrer de todas as decisões jurisdicionais com que discordasse, mesmo não sendo parte. Mas, decisivamente, o nosso sistema legal também lhe não confere essa competência, em particular, para interpor recursos facultativos em defesa da Constituição, quando não seja parte no processo.
Assim, o artigo 72º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional só permite que o Ministério Público recorra (recurso facultativo) no caso previsto na alínea b) do nº 1 artigo 70º - caso em que se estabelece efectivamente um recurso em defesa da Constituição – quando seja parte no processo e tenha previamente suscitado nos autos a questão de inconstitucionalidade, em inteira igualdade com as restantes partes.
9. Nesta conformidade, não se vê razão para reconhecer legitimidade ao Ministério Público para interpor o recurso previsto no artigo 79º-D da LTC, quando não tenha tido intervenção nos autos como recorrente ou recorrido.
Na verdade, tal significaria possibilitar a alteração de uma decisão jurisdicional com a qual as partes interessadas se conformaram, sendo certo que, muitas vezes, como acontece no caso dos autos, isso ocorreria em situações em que estão apenas em causa direitos disponíveis das partes. E, para além do mais, sem que se vislumbre que o único interesse que poderia, excepcionalmente, permiti-lo – o interesse na uniformização da jurisprudência – tenha merecido do legislador, em circunstâncias paralelas, um tratamento que pudesse justificar, no caso a que se reportam os autos, a adopção de uma tal solução.
Em boa verdade, ao entender que o Ministério Público carece de legitimidade neste caso, o Tribunal Constitucional assenta em pressupostos idênticos aos que já anteriormente suportaram jurisprudência que fixou quanto à ilegitimidade do Ministério Público para interpor recursos não obrigatórios em defesa da Constituição, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, quando não seja parte no processo. Assim o decidiu no Acórdão nº 636/94
((Acórdãos do Tribunal Constitucional, 29º vol., págs. 265 e segs.), onde se considerou que «não tendo o Ministério Público tido intervenção principal no processo, pois que não era parte nele [...], não tem ele legitimidade para recorrer», a qual pertence «à parte vencida no processo, ou seja, à parte a quem a decisão foi desfavorável – parte que, por isso, tem interesse em fazê-la revogar ou reformar» (no mesmo sentido, Acórdão nº 171/95, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., págs. 887 e segs.; e Acórdão nº 1187/96, Diário da República, II Série, de 13 de Fevereiro de 1997).
É bem verdade que no Acórdão nº 176/97 (Diário da República, II Série, de 28 de Abril de 1997), este Tribunal conheceu de recurso interposto para o plenário pelo Ministério Público, nos termos do artigo 79º-D da LTC, num caso em que ele não era recorrente nem recorrido. Só que nesse caso - em que, aliás, não estavam em causa relações jurídicas disponíveis, mas a eventual suspensão de eficácia de um acto administrativo – o Tribunal não analisou especificamente o problema ora controvertido.
Concluindo: o Ministério Público - que não teve intervenção no recurso de constitucionalidade, como recorrente ou recorrido - carece de legitimidade para interpor o presente recurso.
III – DECISÃO
10. Nestes termos, indefere-se a reclamação.
Lisboa, 27 de Janeiro de 1999 Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito Messias Bento Vítor Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Paulo Mota Pinto Bravo Serra Maria Fernanda Palma Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Artur Maurício (vencido, conforme declaração de voto junta) Declaração de voto
A solução da questão que o presente acórdão decide – ao que parece, pela primeira vez 'ex professo' – no sentido da ilegitimidade do Ministério Público para recorrer nos termos do artigo 79º-D nº. 1 da Lei 28/82, suscita-me dúvidas que me levam a votar vencido, em consonância com o princípio de que, em matéria de direito de recurso, as dúvidas se devem resolver no sentido da ampliação e não da restrição ao exercício desse direito.
Para tanto, não deixo, à partida, de admitir – tal como, de resto, o faz, o acórdão – que o citado artigo 79º-D nº. 1, no seu teor literal, contem uma 'certa ambiguidade', comportando, também a meu ver, uma interpretação de sinal contrário à que veio a fazer vencimento.
Impõe-se, prioritariamente, ter em conta a natureza do 'interesse' na uniformização da jurisprudência e a medida em que ele é juridicamente tutelado no nosso ordenamento jurídico.
Mas, deverá advertir-se que o valor reconhecível da 'uniformização da jurisprudência' não há-se buscar-se numa pretensa fixidez da jurisprudência, mas no que ela traduz de 'interpretação uniforme simultânea', deste modo se impondo 'com uma necessidade social, a fim de assegurar a estabilidade jurídica'
(cfr. Alfredo Buzaid 'Da uniformização da jurisprudência' in 'Estudos em homenagem aos. Prof. Doutores M. Paulo Merêa e G. Braga da Cruz', II vol., pág.
158).
Ora, no direito vigente, quer em processo civil, quer em processo penal, quer ainda em contencioso administrativo, estão consagrados meios processuais que visam a resolução de conflitos de jurisprudência.
É assim com a 'revista alargada', nos termos do artigo 732º-A do CPC, por iniciativa do presidente do STJ, a requerimento de qualquer das partes, ou do Ministério Público, ou a sugestão do relator, dos adjuntos, ou dos presidentes das secções cíveis; é também assim, nos termos do artigo 437º do CPP com o recurso que pode ser interposto pelo arguido, assistente, partes civis ou Ministério Público, do artigo 446º, com o recurso obrigatório do Ministério Público, sempre que houver decisões proferidas contra a jurisprudência fixada pelo STJ e do artigo 447º, com o recurso determinado pelo Procurador Geral da República, sempre que houver razões para crer que uma jurisprudência fixada está ultrapassada; é, ainda assim, com os recursos nos termos dos artigos 22º alíneas a), a’) e a’’), 24º b) e b’) e 30º b) e b’) do ETAF, na redacção dada pelo artigo 1º do DL nº. 229/96, que podem ser interpostos pelo Ministério Público.
Neste quadro normativo, não parece haver lugar a dúvidas: a uniformização da jurisprudência (sem prejuízo da sua revisibilidade), representa um interesse e um valor que merece a tutela, pelo menos, do direito infraconstitucional.
A intervenção do Ministério Público, sempre admitida naqueles meios de impugnação, não tem outro sentido senão o que resulta de o interesse em causa assumir natureza dominantemente pública, interesse cuja prossecução se integra no âmbito das atribuições constitucionalmente cometidas àquele 'orgão de justiça' (artigo 219º nº. 1 da CRP).
Mas não será ousado ir mais longe.
Já no Acórdão nº. 810/93 (in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional',
26º vol., pp. 261 e segs.) se situavam as palavras de Antunes Varela, ao propor a instituição do recurso de revista ampliada, aludindo ao 'benefício transcendente da uniformização da jurisprudência'; ainda aí se referia que todas as propostas revelavam 'uma postura favorável à existência de um mecanismo processual tendente ao asseguramento da uniformização da jurisprudência e da unidade do direito; e justificava a continuidade do instituto pela 'unidade progressiva da jurisprudência'.
Ora, estes fins – garantia da estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito – estão intimamente conexionados com o princípio da segurança jurídica que é um dos subprincípios concretizadores do princípio do Estado de Direito ou da legalidade democrática (cfr. Gomes Canotilho 'Direito Constitucional e Teoria da Constituição', p. 250).
Em tal medida, poderá reconhecer-se o interesse da uniformização da jurisprudência, não só como interesse público, mas ainda como interesse constitucionalmente imposto.
Mas se é assim, quanto à uniformização de jurisprudência em termos gerais, não deixará de se fazer relevar a circunstância de, no caso, estar em causa a unidade do direito em matéria de conformidade das leis à Constituição, através de recurso que mereceu consagração expressa no texto constitucional
(artigo 224º nº. 3), seguro índice das garantias que oferece na prossecução da estabilidade jurídica e da realização do direito.
Ora, para fazer valer este interesse público, constitucionalmente tutelado, um Ministério Público com legitimidade substancial para a interposição do recurso impõe--se como lógica decorrência das atribuições e competências que a CRP (cit. artigo 219º nº. 1) e o EMP (em especial artigo 3º, alíneas f), p) e o)) lhe atribuem na defesa do ordenamento jurídico, defesa que, no caso, se não pode aferir – note-se – pelo juízo que é feito sobre a legalidade da decisão recorrida, mas pela própria contradição de julgados como desvalor a corrigir; de outro modo, e citando o que, noutro contexto, escreveu Dias Bravo em 'alegações' publicadas na 'Revista do Ministério Público', vol. 9º, p. 28, 'frustar-se-ia todo o objectivo visado pela lei constitucional de defesa, pelo Ministério Público, da legalidade democrática; instituía-se-lhe um fim, concedia-se-lhe um direito, mas obviava-se a que o fim fosse prosseguido e o direito exercido'.
Importa, por último, assinalar que o constrangimento do princípio do dispositivo se mostrará justificado – como em outros casos (artigo 72º nº. 3 da Lei nº. 28/82), onde de igual modo pode suceder que as partes, na estratégia de defesa dos seus interesses privados, se tenham conformado com a decisão que, apesar dessa conformação, é obrigatoriamente impugnada – pela superior relevância do interesse público em causa.
E, ainda, que a 'facultatividade' do recurso (contraposta à
'obrigatoriedade', quando o Ministério Público é recorrente ou recorrido) não é, de 'per si' incompatível com a prossecução daquele interesse, como até se demonstra pela intervenção (não obrigatória) do Ministério Público no actual recurso de revista alargada, como no anterior recurso previsto no artigo 770º do CPC, onde se não vê outro interesse, senão de natureza pública, que legitime tal intervenção.
De resto, a 'obrigatoriedade' expressa no artigo 79º-D nº. 1 da Lei nº. 28/82 dificilmente se explicará por estar então em causa um interesse público, quando a intervenção do Ministério Público, como parte, pode, ocasionalmente, nada mais traduzir do que a defesa de interesses privados do Estado ou de outro ente público.
Estes, em síntese, os tópicos da fundamentação que me levam a votar vencido.
Guilherme da Fonseca (vencido, conforme declaração de voto junta) DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votei vencido, pois deferiria a reclamação do Ministério Público, com a consequência da revogação do despacho do Relator reclamado, o que implicava a admissão do recurso interposto pelo mesmo Ministério Público para este Plenário
(recurso fundado no disposto no artigo 79º-D, nº 1, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, a LTC). Portanto, a meu ver, está errada a conclusão a que se chegou no acórdão de carecer o Ministério Público - que não teve intervenção no recurso de constitucionalidade, como recorrente ou recorrido - 'de legitimidade para interpor o presente recurso' (sublinhado nosso), ou seja, o recurso para o Plenário do Tribunal Constitucional, sendo que essa fórmula sublinhada revela a fragilidade do decidido, na medida em que se abre a porta a outros recursos, mas não ao presente.
2. Concordando, no essencial, com a declaração de voto do Exmº Cons. Artur Maurício, dissentindo também do entendimento do acórdão, acrescento apenas o que se segue:
2.1. 'Entre as funções constitucionais atribuídas ao Ministério Público na Constituição da República Portuguesa sobressai, até pela extensão de tratamento que mereceu no texto do artigo 221º, [actual artigo 219º], a que se relaciona com o exercício da acção penal e com a execução da política criminal, tal como definida na lei pelos órgãos de soberania. No entanto, não menor importância, embora situada em último lugar no texto do referido artigo da Constituição da República Portuguesa, reveste a defesa da legalidade democrática, mais não seja por, no fundo, dela decorrer sistematicamente toda a outra plêiade de funções que ao Ministério Público são atribuídas. Isto é, dela resultam, no fundamental, as especificações que anteriormente são feitas no texto do artigo e que, assim, não representam mais do que um acentuar concreto da mais abrangente missão que no final do preceito se comete a esta magistratura'.
(...)
'Ou seja, o Ministério Público como um dos motores privilegiados da aplicação exercício processual da lei pelos tribunais - legalidade que, aí, e só aí, lhe incumbe defender (e no caso do Direito Penal, exercitar) - fá-lo, no entanto, a partir de uma sua iniciativa ainda não judicial. Isto, na medida em que ela se funda num juízo prospectivo e de conhecimento anterior ao específico procedimento judicial, mas que só se pode desenvolver legitimamente (no caso do Direito Penal de forma ainda mais radicalmente exclusiva) com vista à sua concretizarão.' Nisso difere, fundamentalmente, a acção do Ministério Público, da acção do juiz, que esta está, desde logo, balizada pela conformação processual do caso sub judice. Por isso e nesse sentido a actuação do Ministério Público, recolhendo directamente vida a sua razão de agir, participa da essência do poder soberano - na vertente judicial - pois situando a seu poder e vontade de desencadear o procedimento judicial m plano ante-jurídico ou meta-jurídico, fá-lo orientado, essencialmente, pela necessidade de aplicação da lei ao caso concreto.' E, isto por causa (ou apesar) da necessária obediência a estritos critérios de objectividade e do respeito mais severo pelo princípio da legalidade.
É este poder/dever do Ministério Público, quando lhe é conferido iniciativa autónoma, que permite, no nosso sistema constitucional, ao órgão complexo que é o Tribunal, corporizar um verdadeiro poder soberano de Estado - o poder judicial
- não o limitando ou resumindo a um papel passivo de mera autoridade judiciária, como acontece, de resto, em outros ordenamentos jurídicos.' Daí, também, dizer-se que a autonomia do Ministério Público é condição da independência do poder judicial, pois só um poder independente - por causa da sua iniciativa - é soberano. Por outro lado, o Ministério Público, devendo agir sempre no âmbito estrito do Direito e da Lei, fá-lo a partir de uma preocupação de Justiça, de que é suposto o Direito ser, numa sociedade democrática, o propulsor. Justiça que, todavia, se situa, em certo sentido, para além ou aquém do Direito, apenas encontrando nele a linguagem historicamente variável da sua condensação'. Estes trechos transcritos do discurso de António Cluny, apresentado e sustentado no 5º Congresso do Ministério Público (Porto, Novembro de 1998), podem aqui aproveitar, quando se trata da incumbência importante do Ministério Público no Tribunal Constitucional de defender a uniformização da sua jurisprudência, o que de forma notada vem registado na declaração de voto que acompanho (pelo contrário, essa incumbência está degradada no acórdão, que pretende sobrepor o interesse das partes ao interesse público e constitucionalmente imposto da uniformização da jurisprudência). E essa incumbência constitucionalmente atribuída ao Ministério Público, iluminada com a imposição da legalidade que decorre do artigo 3º, nº 3, da Constituição, e a que não é estranha a norma do artigo 224º, nº 3, encontra eco no Estatuto do Ministério Público, quando a par da repetição da 'defesa da legalidade democrática' em vários locais deste texto, se lhe dá competência específica, a nível dos respectivos órgãos, para 'velar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis', para propor 'ao Ministro da Justiça providências legislativas com vista (...) a pôr termo a decisões divergentes dos tribunais', para proceder 'a estudos de tendência relativamente a doutrina e a jurisprudência, tendo em vista a unidade do direito' (artigos 3º, nº 1, f), 12º, nº 2, g) e 56º, g), na versão última de
1998). Tudo isto aponta para uma acentuação muito forte do parâmetro da defesa da legalidade democrática, por imperativo constitucional e por imperativo estatutário, o que passa pela vigilância e fiscalização da aplicação das leis e pela actuação dos mecanismos próprios para a reposição da legalidade violada.
2.2. Daí que me possa permitir ir mais longe do que o texto do artigo 79º-D, da LTC, parece consentir, sustentando mesmo que o recurso aí previsto assume carácter obrigatório para o Ministério Público em todos os casos, sempre que, em seu critério, se imponha a uniformização da jurisprudência. O Ministério Público, a meu ver, e tanto quanto pode consentir um texto ambíguo como é o texto literal do artigo 79º-D, tem o poder-dever de actuar sempre que haja divergência jurisprudencial no seio do Tribunal Constitucional, relativamente ao julgamento de (in)constitucionalidades de uma mesma norma, que pode ser até uma norma da LTC (e esse objectivo de pôr termo a tal divergência, que só pode estar a cargo do Ministério Público, encontra eco no citado do nº 3 do artigo 224º, da Constituição, pois os constituintes quiseram claramente que se evitassem 'decisões contraditórias das secções no domínio da aplicação da mesma norma').
Alberto Tavares da Costa (vencido nos termos da declaração de voto do Exmº Conselheiro Artur Maurício com a qual concordo, no essencial) José Manuel Cardoso da Costa