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Proc. nº 371/98 Cons. Messias Bento
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A. F. reclama para este Tribunal do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25 de Fevereiro de 1998.
Neste acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça, julgando em conferência, desatendeu a reclamação apresentada contra o despacho do Conselheiro Relator, de 30 de Outubro de 1997, que não admitiu o recurso, por ele interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão, de 14 de Outubro de 1997, daquele Supremo Tribunal, para apreciação da constitucionalidade do artigo 217º do Código Civil, 'na interpretação que dela fez' o mesmo Supremo Tribunal.
Neste acórdão, de 14 de Outubro de 1997, o Supremo Tribunal de Justiça tinha desatendido a arguição de nulidades apresentada contra um seu anterior aresto, que concedera a revista, em que o ora reclamante era recorrido, sendo recorrente M. C. e mulher.
O Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal é de parecer que a presente reclamação improcede.
2. Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. A reclamação só é de deferir, quando o recurso interposto for de admitir. Deve ser indeferida, caso se não verifiquem os pressupostos do recurso.
Pois bem: o recurso, interposto que foi ao abrigo da alínea b) do nº
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, só seria de admitir se o ora reclamante tivesse suscitado, durante o processo, 'de modo processualmente adequado', a inconstitucionalidade da norma que pretende ver apreciada sub specie constitutionis - que é a do artigo 217º do Código Civil, 'na interpretação que dela fez' o Supremo Tribunal de Justiça - e que o Supremo Tribunal de Justiça a tivesse aplicado no aresto recorrido.
Suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica durante o processo, é fazê-lo até ao momento em que o tribunal recorrido tem que decidir a questão cujo julgamento convoca a aplicação da norma que se tem por inconstitucional.
Tal não sucedeu no presente caso.
De facto, convocando o julgamento da revista o artigo 217º do Código Civil (atinente às modalidades de declaração negocial), pois que, no processo, se discutia a validade de um contrato de compra e venda, era antes da prolação do aresto que a decidiu, que a constitucionalidade de tal normativo devia ter sido questionada - e não, como o foi, apenas no requerimento em que se veio arguir a sua nulidade.
Interpretar o artigo 217º do Código Civil no sentido de que ele permite extrair dos factos apurados uma certa 'declaração negocial quanto ao elemento preço, essencial desse contrato típico' (o contrato de compra e venda), não é, seguramente, fazer uma interpretação insólita e imprevisível, susceptível de conduzir à dispensa do ónus da suscitação atempada da questão de constitucionalidade.
Aliás, como decorre das suas próprias afirmações, o que o reclamante, verdadeiramente, questiona é a interpretação que o Supremo Tribunal de Justiça fez dos factos (disse ele: 'pois concluiu que do contrato arguido de nulo constava, embora em declaração tácita, o preço de compra e venda'), e não, propriamente, a inconstitucionalidade de uma certa interpretação do referido artigo 217º do Código Civil.
A interpretação dos factos, no entanto, é insindicável por este Tribunal. E, além disso, ela nada tem a ver com a interpretação da norma do referido artigo 217º do Código Civil - interpretação que, de resto, o reclamante não enuncia, como se impunha que fizesse, pois só assim cumpriria a exigência da suscitação 'de modo processualmente adequado' da questão de constitucionalidade.
É, aliás, no sentido de que o ora reclamante não suscitou uma questão de inconstitucionalidade normativa que Ministério Público se pronunciou no seu parecer. Disse ele, entre o mais, o seguinte: Ora, mesmo admitindo que não seria normalmente previsível tal enquadramento do litígio, em termos de o recorrente ter o ónus de suscitar a questão da inconstitucionalidade de tal norma antes de a mesma ser aplicada na decisão recorrida, nem por isso devia ter sido admitido o recurso de constitucionalidade interposto, já que o mesmo não incide sobre uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa.
É óbvio que nada na Lei Fundamental obsta à relevância das declarações tácitas de vontade, a qual decorre inclusivamente do princípio da boa fé, evitando que as partes só se vinculem em função daquilo que, formal e literalmente, declarem, sem que os seus comportamentos pudessem ter algum valor. Assim sendo, o que está em causa nos presentes autos é a avaliação global da situação de facto apurada, face às regras da experiência e aos princípios da boa fé que regem na formação dos contratos: trata-se, desde logo (pura matéria de facto) de saber se todos os contraentes tinham conhecimento do conteúdo do documento que titulava o pagamento da sisa; e se - tendo-o - o seu silêncio no momento da celebração da escritura notarial não valia como assentimento tácito, no que se reporta ao preço, do que constava do aludido documento. Ora, tal matéria não integra verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, já que a definição do que, num caso concreto, seja comportamento concludente da parte passa pela ponderação e avaliação das circunstâncias reais que rodearam a celebração do negócio jurídico, à luz das regras da experiência, do apuramento da vontada das partes e da concreta incidência do princípio da boa fé - matérias obviamente subtraídas aos poderes cognitivos deste Tribunal.
Assim sendo, como, de um lado, o reclamante não questiona, propriamente, a inconstitucionalidade de uma certa interpretação do mencionado artigo 217º do Código Civil; e, de outro, mesmo entendendo-se as suas palavras como colocação de uma questão de inconstitucionalidade normativa, sempre haveria de concluir-se que esta questão não foi suscitada a tempo de o Supremo Tribunal de Justiça a decidir - e, por isso, ele não a decidiu - não se verificam os pressupostos do recurso interposto.
Concluindo este ponto: suposto mesmo que o reclamante chegou a suscitar, no processo, uma questão de inconstitucionalidade normativa, não a tendo ele suscitado durante o processo; e não sendo caso de o dispensar de cumprir o respectivo ónus; não pode o recurso ser admitido. E, por isso, tem a reclamação que ser indeferida.
4. Registe-se, por último, que o reclamante, em virtude de uma errada interpretação do acórdão nº 517/94 deste Tribunal (publicado no Diário da República, II série, de 16 de Dezembro de 1994), em vez de reclamar para o Tribunal Constitucional do despacho do Conselheiro relator do Supremo Tribunal de Justiça, que não admitiu o recurso de constitucionalidade (como impõe o artigo 76º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional), primeiro, reclamou para a conferência do mesmo Supremo Tribunal, e só do respectivo acórdão reclamou, então, para este Tribunal. O resultado foi ter a reclamação sido apresentada muito para além do prazo de 10 dias, fixado no artigo 688º, nº 2, do Código de Processo Civil para o efeito: de facto, o despacho de rejeição do recurso foi-lhe notificado em 31 de Outubro de 1997, e ele só apresentou a reclamação, em 11 de Março de 1998.
Daqui não se extrairia, porém, necessariamente, a consequência da extemporaneidade da reclamação.
É que, como o reclamante, ao dirigir-se à conferência do Supremo Tribunal de Justiça, disse que, no caso de se entender que, 'do despacho do relator que não admitiu o recurso, se deve reclamar imediatamente para o Presidente do Tribunal Constitucional, o reclamante declara desde já que [...] se deve entender a presente reclamação para a conferência como dirigida ao [...] Presidente do Tribunal Constitucional', sempre se poderia concluir que ele não fez um requerimento alternativo, pondo a cargo daquele Supremo Tribunal a decisão da atitude a tomar no processo, antes adiantou a reclamação para o Tribunal Constitucional, ao mesmo tempo que apresentou, cautelarmente, uma reclamação para a conferência do Supremo.
Se, porém, esta interpretação benévola não for possível, então haveria de concluir-se pela extemporaneidade da reclamação, pois as partes não podem cometer aos tribunais o encargo de decidir por elas as atitudes a adoptar nos processos. São elas que hão-de assumir a responsabilidade de, em cada momento, decidir o que fazer.
Não é, porém, necessário decidir agora esta questão, dado o que atrás se disse.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:
(a). indeferir a reclamação;
(b). condenar o reclamante nas custas, com taxa de justiça que se fixa em dez unidades de conta. Lisboa, 2 de Julho de 1998
Lisboa, 2 de Julho de 1998 Messias Bento José de Sousa e Brito Luis Nunes de Almeida