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Proc.nº 816/95
2ª Secção Relator : Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional :
I Relatório
1. Em processo contra-ordenacional, o Governador Civil do Distrito de Braga aplicou a A. a coima de 25.000$00, pelo cometimento da contra-ordenação referida nos artigos 11º nº 1 e 78º nº 3 do Regulamento Policial do Distrito de Braga (publicado no Diário da República, II Série de 15 de Junho de 1992 - adiante designado RPDB), traduzida na abertura de um estabelecimento sua propriedade para além da hora constante da respectiva licença.
Utilizando a faculdade prevista no DL nº 433/82, de 27 de Outubro (artigos 55º e 59º e seguintes), o recorrente impugnou judicialmente, junto do Tribunal de Esposende, tal decisão, invocando, entre outros argumentos, a inconstitucionalidade do RPDB (argumentos expressos nas conclusões
1 a 7 e 13 a 19 do requerimento de fls. 19/30).
Debruçando-se sobre esta vertente do recurso, consignou o Tribunal de Esposende :
'... o regulamento policial em causa e as disposições legais supra citadas em especial não sofre de qualquer dos vícios de inconstitucionalidade apontados pelo recorrente. Na verdade, o 'Regulamento Policial do Distrito de Braga' constitui um instrumento de prossecução do interesse público cuja administração está atribuída ao Governo Civil. Por força do disposto no artigo 291º da CRP enquanto as regiões administrativas não estiverem concretamente instituídas subsistirá a divisão distrital, competindo ao governador civil representar o Governo e exercer os poderes de tutela na área do respectivo distrito.'
E, depois de citar o teor da disposição do Código Administrativo
(artigo 408º §§ 1º e 2º) autorizando, ao tempo da edição do RPDB, os governadores civis a elaborarem regulamentos daquele tipo, acrescentou o mesmo despacho:
'Actualmente por força da publicação do DL nº 252/92, de 19/11, mantém-se a competência do governador civil para elaborar regulamentos obrigatórios em todo o distrito sobre matérias da sua competência policial que não sejam objecto de lei ou regulamento geral, bem como para aplicar as coimas pela sua infracção, sendo que a violação dos regulamentos constitui contra-ordenação punível com coima nos termos da lei geral (cfr. artigos 4º nºs 3 c) e 5º f) e 7º do citado diploma). Ora tal regulamento (e os preceitos legais em causa) foi elaborado e devidamente publicado no estrito exercício de competências que legal e constitucionalmente foram atribuídas ao governador civil, já que o mesmo diz respeito apenas a matéria relativa às atribuições policiais e em nada contende com as matérias reservadas à AR, ao Governo ou às autarquias locais, nem regulamenta o exercício de direitos liberdades e garantias (cfr. artigos 115º, 164º e ss., 201º e ss,
242º e 291º todos da CRP, artigos 4º, nºs 3 c) e 5 f) e 7º do DL nº 252/92, de
19/11). De referir que é o próprio DL nº 252/92, de 18/11, no seu artigo 7º, que determina que a violação do regulamento constitui contra-ordenação e que a mesma
é punível nos termos gerais, ou seja, por recurso às regras do DL nº 433/82, de
27/10, mormente os seus artigos 17º e ss., sendo que as medidas da coima em causa não excedem tal regime geral e como tal não violam a lei fundamental. Temos, portanto, que o regulamento policial em geral e as disposições em causa em particular não padecem do vício de inconstitucionalidade material e orgânica alegada pelo recorrente.'
Em função (também) destas considerações julgou tal decisão improcedente a impugnação judicial, condenando o referido A., por violação do artigo 11º do RPDB na coima de 20.000$00.
2. Reeditando os argumentos da primitiva impugnação judicial, pretendeu, então, recorrer para o Tribunal da Relação do Porto que, por irrecorribilidade da decisão, se absteve de conhecer do recurso.
3. Surge, assim, o presente recurso de constitucionalidade, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro
(LTC), indicando-se como normas objecto: 'o Regulamento Policial do Distrito de Braga' e o 'DL nº 252/92, de 15 de Novembro (Define o estatuto e competências do Governador Civil)'. Quanto à violação de disposições constitucionais, define-a o recorrente desta forma: 'dos artigos 3º nº 2 e 3; 115º nº 5; 167º l); 168º nº 1 b); 238º nº 1; 240º; 242º; e 291º nº 3 (...); e do Princípio da Preferência ou Preeminência da Lei e do Congelamento do Grau Hierárquico (artigo 115º da CRP)'.
Alegou o recorrente formulando as seguintes conclusões:
'1 - Os artigos 9º, 10º, 11º, 66º, 77º e 78º do RPDB constituem uma inequívoca restrição aos direitos de liberdade de profissão e de liberdade de iniciativa privada (artigo 47º nº1 e 61º nº 1 da CRP);
2 - Que sendo direitos fundamentais de natureza análoga gozam do regime constitucional dos direitos, liberdades e garantias (artigo 17º e 18º da CRP);
3 - E, assim sendo, a restrição de tais direitos constitui reserva de lei restritiva (vd. art. 47º nº 1 in fine e 67º nº 1 da CRP);
4- Sendo que, tal matéria é, nos termos do artigo 168º nº 1 al. b) da CRP, da competência exclusiva da Assembleia da República;
5- Pois que, em matéria de direitos, liberdades e garantias, o artigo 168º nº 1 al. b) da CRP não distingue 'restrições' dos 'condicionamentos' ou
'regulamentações'.
6 - Pelo que tais normas estão feridas de inconstitucionalidade orgânica.
7 - A CRP define taxativamente as entidades com poder regulamentar : desde logo o governo [artigo 202º al.c)] as regiões autónomas [artigo 229º nº 1 al. d)] e as autarquias locais (artigo 242º).
8 - A própria constituição enumera taxativamente o que considera autarquias locais (artigo 238º).
9 - Pelo que, o distrito e o respectivo Governador Civil, não gozam, face à actual Constituição, de qualquer poder regulamentar (cfr. artigo 291º nº 1).
10 - Assim sendo, todo o RPDB do distrito de Braga está ferido de inconstitucionalidade material.
(...)
11 - O DL nº 252/92 está, ele próprio, ferido de inconstitucionalidade orgânica.
12 - Pois que, o Governo, ao legislar sobre o estatuto e competências dos Governadores Civis, invadiu a reserva absoluta da competência da A.R. (artigo
167º al. l) da CRP).
13 - Mas mesmo que assim não fosse, sempre o artigo 4º nº 3 al. c) do referido diploma seria materialmente inconstitucional;
14 - Sendo que a lei ordinária não pode atribuir poder regulamentar a outras entidades para além daquelas expressamente previstas na Constituição;
(...)
15 - O regulamento em causa, ou melhor, os seus artigos 9º, 10º, 11º, 66º, 77º e 78º contrariam descaradamente uma lei anterior e hierarquicamente superior - o DL 417/83, de 25 de Novembro;
16 - Violando, desta feita, os princípios constitucionais da preferência da lei e do congelamento do grau hierárquico (artigo 115º nº5);
17 - Por outro lado, o referido regulamento (artigo 90º) interfere de forma inconstitucional no regime das finanças locais;
18 - Porquanto, retira aos municípios receitas que uma lei (DL nº 417/83) - anterior e hierarquicamente superior - lhes havia conferido.
19 - Pelo que, também por esta via o referido regulamento está ferido de inconstitucionalidade material por manifesta violação dos referidos princípios;
(...)
20 _ Por último, ao admitir os referidos documentos sem qualquer notificação do recorrente, o tribunal (...) violou os princípios constitucionais da defesa e do contraditório (artigo 32º da CRP), directamente aplicáveis nos termos do artigo
18º nº 1;
21 - As referidas normas violam os artigos 32º, 41º nº 1, 61º nº 1, 115º nº 5,
167º al. b), 202º al. c), 229º, 238º. 277º nº 1 e 291º da CRP, bem como os princípios constitucionais da preferência ou preeminência da lei, do congelamento do grau hierárquico e do contraditório.'
Contra-alegou o Ministério Público, sintetizando a sua posição nas seguintes conclusões:
' 1º Não tendo o recorrente especificado no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, fundado na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, quais eram as normas que dele constituíam objecto, deixando, deste modo, de dar cumprimento, em termos satisfatórios, ao ónus que lhe era imposto pelo nº1 do artigo 75º A daquela lei, falta um essencial pressuposto da admissibilidade do recurso.
2º As normas do DL nº 252/92, de 15 de Novembro, e do Regulamento Policial do Distrito de Braga, aplicadas na decisão recorrida, não padecem de inconstitucionalidade material ou orgânica.'
II FUNDAMENTAÇÃO
4. É certo - e assim abordamos o primeiro aspecto das contra-alegações - que o recorrente, no requerimento de interposição do recurso, não 'isola', indicando-as, as concretas normas do RPDB e do DL nº 252/92 que pretende ver apreciadas na sua conformidade constitucional. Estamos, assim, perante uma 'lacuna' de tal peça (v. artigo 75º A nº 1 da LTC), que, no entanto, o relator considerou 'integrada', recorrendo à posição expressa pelo recorrente anteriormente à interposição do recurso, designadamente na impugnação da decisão do Governador Civil de Braga e, posteriormente, nas alegações de fls.49/60
(note-se que, finalmente, este aspecto se tornou claro com as alegações junto do Tribunal Constitucional).
Neste particular, levar-se-á em conta que, quanto ao RPDB e ao DL nº 252/92, a linha argumentativa do recorrente, assente na negação, por razões de constitucionalidade, de poder regulamentar ao Governador Civil, acaba por reportar-se a todo o regulamento (ao próprio exercício do poder regulamentar) e a algo de muito concreto no DL nº 252/92 (diploma que define o estatuto e a competência dos governadores civis).
5. Ainda preambularmente sublinhar-se-á que o recurso tentado interpor para o Tribunal da Relação do Porto não foi apreciado por se entender irrecorrível a decisão aí em causa. Com efeito, pretendendo o recorrente que, fora dos pressupostos elencados nas alíneas do nº 1 do artigo 73º do DL nº
433/82, de 27 de Outubro, o recurso fosse admitido - e citamos o pressuposto extraordinário de admissibilidade constante do nº 2 do nosso artigo 73º - por tal se afigurar 'manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou
à promoção da uniformidade da jurisprudência', o que a Relação acaba por decidir
é a não verificação deste fundamento e, consequentemente, a irrecorribilidade da decisão.
Significa isto que o recurso para o Tribunal Constitucional está em tempo, em função do regime decorrente do nº 2 do artigo 75º da LTC.
6. Importa agora fixar o exacto alcance do recurso.
A decisão recorrida, que é a sentença da primeira instância, funda o poder regulamentar aqui em discussão no DL nº 252/92, concretamente nos seus artigos 4º nº 3 alínea c) e nº 5 alínea f) e 7º (estava em causa então - Março de 1995 - a versão do diploma anterior ao DL nº 316/95, de 28 de Novembro), sendo, por isso, estas as disposições aplicadas na decisão.
Quanto ao RPDB, em si, estão em causa os artigos 11º nº 1 (que define a materialidade da contra-ordenação: o que é estar em funcionamento um estabelecimento fora do horário) e 78º nº 3 (que fixa a coima).
Foram estas as disposições aplicadas, sendo a elas que a nossa indagação de constitucionalidade se irá referir.
7. Os governadores civis em Abril de 1992 (ou seja ao tempo da edição do RPDB) dispunham de competência para 'elaborar regulamentos genéricos, obrigatórios em todo o distrito, sobre as matérias das suas atribuições policiais que não sejam objecto de lei ou regulamento geral da Administração Pública' (artigo 408º § 1º do Código Administrativo, na redacção do DL nº
103/84, de 30 de Março; como se vê no parágrafo final do exórdio do RPDB foi esta disposição citada como fundamento do poder regulamentar aí exercido). O §
2º da mesma disposição acrescentava constituir a violação desses regulamentos
'contra-ordenação, sendo a aplicação das coimas e respectivas sanções acessórios da competência do governador civil'.
Posteriormente, o DL nº 252/92, de 19 de Novembro (cujo artigo
29º revogou o artigo 408º do Código Administrativo) veio definir, no que aqui nos interessa, a competência dos governadores civis, nos seguintes termos :
Artigo 4º
---------------------------------------------
3 - Compete ao governador civil, no exercício de funções de polícia :
---------------------------------------------
c) Elaborar regulamentos obrigatórios em todo o distrito sobre matérias da sua competência policial que não sejam objecto de lei ou regulamento geral, a publicar no Diário da República, após aprovação do Governo, que pode ser efectuada por despacho do Ministro da Administração Interna.
---------------------------------------------
Este o enquadramento legislativo do poder regulamentar dos governadores civis, na matéria aqui em causa, no momento da prolação da decisão recorrida (2/3/95). Mais tarde, através do DL nº 316/95, de 28 de Novembro, com a nova redacção introduzida no artigo 4º do DL nº 252/92, foi o governador civil exautorado dessa competência regulamentar, passando a lei a expressar-se da seguinte forma :
Artigo 4º
--------------------------------------------- 3 -----------------------------.
--------------------------------------------- d) Propor ao Ministro da Administração Interna a elaboração dos regulamentos necessários à execução das leis que estabelecem o modo de exercício das suas competências.
---------------------------------------------5
---------------------------------------------------------------------------------------- b) Aplicar as medidas de polícia e as sanções contra-ordenacionais previstas na lei.
---------------------------------------------
Em função desta sucessão de regimes poder-se-ia questionar a vigência dos regulamentos editados anteriormente, até 1/10/95, data da entrada em vigor do DL nº 316/95. Trata-se de questão sem incidência directa neste processo, cuja decisão recorrida se reporta a um enquadramento legal diverso (ao anterior a 1/10/95). A este respeito, o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, em Parecer datado de 19/8/96 (homologado por despacho do Ministro da Administração Interna de 17/10/96 e publicado no Diário da República-II Série de 29/11/96), entendeu - e citamos uma das suas conclusões
- que: 'Os regulamentos emanados pelos governadores civis no exercício dessas competências regulamentares (refere-se o Parecer às competências sucessivamente decorrente do § 1º do artigo 408º do Código Administrativo e do artigo 4º nº 3 alínea c) do DL nº 252/92, na sua primitiva redacção) não cessaram a sua vigência pelo simples facto da aludida transferência da competência operada em 1 de Outubro de 1995, apenas ficando revogados se e na medida em que o novo titular a exerça no mesmo domínio normativo, ou este domínio seja disciplinado mediante actos de adequado nível e valor formal'.
8. O enquadramento constitucional dessa (entretanto modificada) competência regulamentar dos governadores civis, pressupõe a caracterização do estatuto legal destes, desfazendo alguns equívocos que perpassam em certos aspectos da linha argumentativa do recorrente.
O governador civil - «magistrado administrativo» na antiga terminologia do Código Administrativo (na redacção dada ao seu artigo 404º corpo pelo seu artigo 1º do DL nº 42536, de 28/9/59) - caracterizou-se, e continua a caracterizar-se, como 'representante do Governo' na divisão administrativa consubstanciada no distrito. Dizia esse artigo 404º : 'Em cada distrito haverá um magistrado administrativo, imediato representante do Governo, com a designação de governador civil, e um substituto deste, ambos nomeados pelo Ministro do Interior, ao qual ficam imediatamente subordinados, podendo ser por ele livremente exonerados ou demitidos'. Com o DL nº 252/92 (que revogou o artigo 404º do Código Administrativo), passa a ser definido como 'o órgão que representa o Governo na área do distrito, para além de outras competências que lhe são atribuídas' [(artigo 2º); na redacção introduzida pelo DL nº 316/95 diz-se que 'é o órgão que representa o Governo na área do distrito e que, nessa
âmbito geográfico, exerce as competências que a lei lhe confere'].
Trata-se de uma função que vem sendo entendida como correspondente à de um «delegado do Governo» (Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol I, 10ª ed., Coimbra 1980, p.294), significando na sua essência uma forma de «desconcentração administrativa orgânica vertical territorial», traduzida numa delegação ope legis de poder decisório originalmente pertencente ao Governo, que não deixa de expressar, contrariamente ao que sucede numa situação de «autonomia», aquilo que Casalta Nabais chama:
'relação de supremacia - subordinação dirigida à definição e realização do mesmo interesse' («A autonomia local», in Estudos em Homenagem ao Prof.Doutor Afonso Rodrigues Queiró, II, Coimbra 1983, p. 165 e nota 119 e p. 171; sobre a caracterização desta «desconcentração vertical» cfr. Afonso Queiró, Lições de Direito Administrativo, vol. I, Coimbra 1976, p.103 e ss.).
Significa isto, relativamente ao estatuto e competência do governador civil (v. artigo 291º nº 3 da Constituição; cfr. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra 1993, p.1075), que o que está em causa fundamentalmente são funções e competências do Governo projectadas, no seu exercício, em determinado espaço através de uma forma organizacional específica (e já tradicional). Assim, torna-se patente a inconsistência, de um ponto de vista constitucional, da afirmação do recorrente (v. as conclusões 11º e 12º das alegações a fls. 110) de que através do DL nº 252/92 'o Governo, ao legislar sobre o estatuto e competências dos governadores civis, invadiu a reserva absoluta da competência da Assembleia da República' prevista na alínea l) do artigo 167º da Constituição. Com efeito, o governador civil não é titular de um órgão de soberania (v. artigo 113º da Constituição), do poder local, de algum órgão constitucional ou eleito por sufrágio directo e universal, ou seja, tratando-se de um titular de cargo público, não o é dos elencados na referida alínea l).
Essencialmente do que se trata, com o estabelecimento do estatuto orgânico e pessoal, das competências e regime dos actos praticados pelo governador civil, composição e competências dos órgãos consultivos e organização dos serviços dos governos civis (para usarmos as palavras do artigo 1º do DL nº
252/92), é, tão só, de 'arrumar' de determinada forma funções do Governo, que este, aliás, através da falada relação de subordinação hierárquica do governador civil, expressa na figura da «desconcentração vertical», não perde originariamente.
9. Caracterizada a figura do governador civil, importa ter presente em traços gerais o regime que, ao tempo da decisão recorrida, quanto a estabelecimentos comerciais vigorava, em matéria de licenciamento (autorização de funcionamento) e horários. Então - estamos a falar de Março de 1995-, nos termos dos artigos 36º e seguintes do DL nº 328/86, de 30 de Setembro (note-se que este diploma foi posteriormente revogado pelo DL nº 327/95, de 5 de Dezembro) constituía competência do governo civil o licenciamento do funcionamento dos estabelecimentos hoteleiros, através da emissão do chamado
«alvará de abertura», remetendo-se para regulamento os diversos aspectos relacionados com a efectivação deste licenciamento.
No que concerne a horários de funcionamento de estabelecimentos comerciais (e continuamos a reportar-nos à sequência temporal anterior a Março de 1995) o DL nº 417/83, de 25 de Novembro (que foi posteriormente alterado pelo DL nº 86/95, de 28 de Abril), situa-os entre as 6 h e as 24 h (artigo 1º nº 1 :
'... podem estar abertos entre ...'), acrescentando (artigo 3º nº 1) ser competência das câmaras municipais fixar o período de abertura para cada ramo de actividade, dentro dos limites apontados no artigo 1º nº 1 referido.
Da conjugação destes regimes (competência para licenciamento do governador civil; fixação genérica de horários pela câmara municipal), tendo presente o teor do RPDB [designadamente, o teor do artigo 10º nº 2 (que refere as modalidades de licença em função de horário) e nº 3 (que sujeita sempre o licenciamento ao 'que genericamente dispusessem os regulamentos municipais de abertura e encerramento dos estabelecimentos comerciais')], colhemos um regime global em que sobressai a compaginação entre a actividade regulamentar do governador civil, neste campo, e a competência da câmara: a primeira exerce-se no âmbito de competências (ao tempo), próprias, mas inserida e pressupondo o quadro de competências das câmaras.
Este enquadramento da situação faz cair pela base a ideia do recorrente, expressa nos nºs 1 e 4 das alegações, de que o RPDB, por si, restringiria 'direitos, liberdades e garantias', invadindo a esfera de competência da Assembleia da República (artigo 168º nº 1 alínea b) da Constituição). Com efeito, mesmo que estas matérias pudessem ( e estamos apenas a pressupor o entendimento do recorrente) ser reconduzidas a 'direitos, liberdades e garantias', o Regulamento limitar-se-ia a constituir decorrência - como, aliás, não poderia deixar de ser - de um quadro legal anterior, atrás exposto, quadro legal esse que o recorrente não atacou de um ponto de vista constitucional neste processo.
10. Outra das vertentes argumentativas do recorrente prende-se com o exercício em geral do poder regulamentar, consistindo na afirmação de uma pretensa taxatividade constitucional das entidades providas de tal poder (que seriam o Governo, as Regiões autónomas e as autarquias locais), em termos tais que estaria excluída - independentemente da existência de uma habilitação legislativa infra-constitucional - a emissão de regulamentos por entidade diversa, caso dos governadores civis.
A Constituição não impõe, relativamente à administração pública, qualquer numerus clausus das entidades com poder de emitir regulamentos (v. quanto à competência regulamentar: J.M.Ferreira de Almeida, «Regulamento Administrativo» in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. VII, Lisboa 1996, pp. 197/199). O que a Lei Fundamental estabelece é a inexistência de poder regulamentar não fundado numa específica lei anterior (precedência de lei) e a obrigatoriedade de citação da lei habilitante no acto de exercício do poder regulamentar (artigo 115º nº 7; v. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit. pp. 514/515).
Ora, na situação que nos ocupa é notória a existência, quando foi editado o RPDB, do poder regulamentar dessa forma exercido pelo governador civil, paralelamente à expressa citação da lei habilitante (então o § 1º do artigo 408º do Código Administrativo na versão do DL nº 103/84; v.o nº 4 trecho final do preâmbulo do RPDB).
11. De todo o modo, e ainda que se entenda que a lei não podia atribuir poder regulamentar ao governador civil, o certo é que, impondo o § 7 do artigo 408º do Código Administrativo, na redacção do artigo 1º do DL nº 103/84 de 30 de Março, a ratificação pelo Governo dos regulamentos editados pelos governadores civis, o que aliás se verifica no caso, temos que a intervenção do Governo se afigura suficientemente forte e relevante para afastar a inconstitucionalidade suscitada.
12. Quanto aos aspectos focados pelo recorrente no final das suas alegações, para além de não estar em causa no processo, em termos operantes como necessariamente terá de suceder em sede de fiscalização concreta, o artigo
90º do RPDB, as referências ao processamento seguido, tanto na aplicação da coima na fase administrativa como na posterior confirmação judicial dessa aplicação, não traduzem qualquer imputação de desconformidade constitucional a normas, mas às decisões administrativa e judicial, aí sucessivamente, em causa. Tal abordagem situa-se, assim, fora do âmbito da intervenção deste Tribunal.
III DECISÃO
12. Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade.
Lisboa, 14 de Maio de 1997 José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Fernando Alves Correia Bravo Serra Luís Nunes de Almeida