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Processo nº 759/97
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A, com os sinais identificadores dos autos de execução ordinária
(hipotecária), em que é exequente a B, veio 'apresentar a presente reclamação, nos termos do artº 76º nº 4, da lei 28/82, de 15 de Novembro' do despacho do Relator do recurso de agravo pela mesma sociedade interposto no Tribunal da Relação de Évora, de 25 de Setembro de 1997, que não admitiu o recurso para este Tribunal Constitucional do acórdão daquela Relação, de 10 de Abril de 1997, que não tomou conhecimento desse recurso de agravo. No requerimento de reclamação invoca, no que pode interessar, o seguinte:
'4-A Douta Decisão de rejeição do recurso, fundamenta que a recorrente não suscitou qualquer inconstitucionalidade durante o processo.
5-Porém, falece razão à Decisão de indeferimento.
6-No requerimento de 8/2/96, apresentado no 1º Juízo, proc. Nº 218/94, do Tribunal Judicial de Loulé, nos nºs 20ºe 2 1º, que se dão como reproduzidos, foi alegada a inconstitucionalidade da marcação de nova praça.
7-Dessa marcação de praça, foi interposto recurso, no citado Tribunal de Loulé, que foi admitido, com efeito suspensivo e alegou-se nomeadamente que:
7.1. A Constituição da República Portuguesa no seu artº 62º protege a propriedade privada.
7.2. A eventual venda na situação de ocupação ilegal e com erro na publicação dos editais e anúncios seria inconstitucional.
7.3. Pois, punham em causa o principio da igualdade e da protecção da propriedade privada, o que é inconstitucional e para todos os efeitos se alega, por colidir com os artºs 13º, 20º e 62º da C.R.P..
7.4. Não deve marcar-se nova praça sem que seja feita uma vistoria à fracção penhorada, fazer cessar a ocupação ilegítima da mesma e sem que seja rectificado o conteúdo dos anúncios de forma a identificarem sumariamente as características da fracção penhorada, conforme está inscrita nas Repartições públicas, nomeadamente a área, estacionamentos e que tem alvará para Discoteca, sob pena de se criar um enriquecimento sem causa para a exequente e delapidação e denegação da Justiça para a executada.
7.5. Se eventualmente for marcada nova praça sem que se cumpra os requisitos enumerados no artigo anterior é feita uma interpretação contrária, ao disposto no artº 247º e 473º do C-C. e 890º no 4 do C.P.C., a qual irá colidir com os princípios da igualdade e da discriminação, de acesso ao direito e da protecção de propriedade privada, previstos respectivamente entre outros nos artºs 13º,
20º e 62º da C.R..P., o que é inconstitucional, conforme se decidiu no Ac. T.C. nº 391/89, de 17/5/89, in BMJ nº 387, pág. 625.
7.6. A inconstitucionalidade alegado no número anterior é feita nos termos do artigo 70º nº 1 al. b) do Dec.Lei 28/82 de 15.11.
7.7.Com o devido respeito foram infringidas as disposições dos artº 247ºe 473º do C.C., 843º nº 1 e 2890º nº4, 1020º e 1023ºdo C.P.C., 13º, 20º e 62º da C.R.P..
8-Porém, o Tribunal da Relação de Évora não conheceu desse recurso.
9-Por isso, a recorrente recorreu dessa não admissão para o Tribunal Constitucional, como tinha direito a fazê-lo'.
2. No seu visto o Ministério Público pronunciou-se no sentido da 'improcedência desta reclamação', alinhando, para o efeito, o seguinte arrazoado:
'Inconformado com o acórdão, proferido na Relação de Évora, que não admitiu que se conhecesse do recurso interposto da decisão do juiz deprecado que ordenara que se procedesse à venda judicial dos bens, por a qualificar como ‘despacho de mero expediente’ e ‘proferido no uso legal de um poder discricionário’, fundando-se mo preceituado no artº 679º, nº 1, do C.P.C., pretendeu a executada interpor o presente recurso de fiscalização concreta, através de requerimento que omite, na totalidade, os elementos que o recorrente tem o ónus de indicar, nos termos do disposto no artº 75º-A da Lei nº 28/82. O recurso, porém, não foi admitido, por se entender que inexistiam os respectivos pressupostos de admissibilidade, de forma óbvia, o que tornaria
‘acto inútil’ o convite ao aperfeiçoamento do requerimento deficiente. Por sua vez, na reclamação que agora apresentou, a executada-reclamante nem especificou a questão de constitucionalidade que pretenderia ver apreciada, reportando-a às normas dos artºs 247º e 473º do CC e 890º, nº 4, do CPC, interpretados em termos de consentirem na marcação de praça para venda dos bens sem estarem previamente supridas as alegadas ‘irregularidades’: ou seja, o reclamante acabou por suprir, no âmbito da própria reclamação, a inexistência do aludido convite ao aperfeiçoamento do requerimento de interposição do recurso de cons-titucionalidade, formulado no tribunal ‘a quo’.
É, porém, evidente que tais normas, ora indicadas pelo reclamante, não foram aplicadas pela decisão de que explicitamente pretendeu recorrer: a proferida pela Relação e que não conheceu do recurso (cfr. fls. 82): na realidade – e como se referiu – a única norma efectivamente aplicada pela decisão recorrida foi a constante do artº 679º, nº 1, do CPC, atinente à questão da qualificação – e subsequente recorribilidade – do despacho que, em deprecado, designa dia para a arrematação em hasta pública. Note-se, aliás, que – a nosso ver – toda a estratégia processual delineada pela executada padece de um vício ou equívoco fundamental: na verdade, deveria ela ter arguido ou reclamado tempestivamente das nulidades processuais que entendesse terem sido cometidas, inquinando o acto de venda, provocando sobre elas decisão judicial que explicitamente as apreciasse – e impugnando, porventura, tal decisão, nos termos gerais, se lhe não fosse favorável. Ao limitar-se a impugnar o despacho que – sem apreciar tais nulidades – se limitou a fixar data para a realização da venda judicial deprecada, é evidente que a pretensão da executada estaria irremediavelmente condenada ao fracasso. Nestes termos – não tendo a decisão de que se pretendeu recorrer para este Tribunal feito aplicação do ‘bloco normativo’ identificado pela ora reclamante
(cfr. pontos 7.5 e 7.6 da reclamação deduzida, a p. 91) -, falta um essencial pressuposto do tipo de recurso que se pretendeu interpor, nos termos da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei nº 28/82, o que conduz à improcedência desta reclamação'.
3. Vistos os autos, cumpre decidir. Por maior facilidade, transcreve-se o acórdão recorrido do Tribunal da Relação de Évora:
'A executada A interpôs recurso de agravo do despacho de fls. 10 de uns autos de Carta Precatória, a correr termos no tribunal judicial da comarca de Loulé, no qual despacho o Ex.mo Juiz designou o dia de Janeiro de 1996, para a deprecado
‘arrematação em hasta pública’. A exequente foi ouvida e pronunciou-se pela irrecurribilidade de tal despacho. O Ex.mo Juiz da comarca de Loulé, porém, admitiu o recurso e sustentou-o.
Entende-se, porém, que a razão está do lado da exequente recorrida.
É que o despacho de fls. 10, referenciado, não passa de um ‘despacho de mero expediente’ - artigo 679.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC). É um despacho pelo qual o juiz ‘provê ao andamento regular do processo, de harmonia com a lei..‘. Por outro lado, o despacho em causa foi proferido mesmo no uso legal de um poder discricionário. Na verdade, como parece óbvio, o juiz deprecado, recebida a deprecada para arrematação, nada mais tem a fazer que não seja designar dia para o acto deprecado. É, assim, um despacho proferido pela entidade a quem a lei
‘atribuí a livre escolha, quer da oportunidade da sua prática, quer da solução a dar a certo caso concreto...’. De resto, a agravante, se entendia que havia problemas prévios à arrematação, teria o ónus de os levantar perante o tribunal da execução. E do despacho que sobre esse requerimento recaísse é que, então, caberia recurso. Neste caso, não. Por tudo isto é que acordamos, em conferência, nesta Relação, ao abrigo das disposições do artigo 704.º, n.º 2 (ex vi do disposto no artigo 749º) do CPC, não tomar conhecimento do recurso'.
Desse acórdão veio a reclamante dizer que 'pretende recorrer para o Tribunal Constitucional', nada mais acrescentando, mas o recurso não foi admitido pelo despacho reclamado, na base de que ele 'incide sobre o acórdão que não conheceu do recurso', e, por isso, não tem 'como objecto a recusa de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade ou que aplique norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo nem qualquer dos casos previstos no artº 70º, da Lei do Tribunal Constitucional'. Também desse acórdão, e de modo estranho, apresentou a reclamante outra reclamação 'para o Presidente do Tribunal onde foi proferido o acórdão', o que foi indeferido, por despacho de 5 de Junho de 1997, pela razão simples de que 'o artº 688º do C.P. Civil, não contempla a reclamação para o Presidente da Relação como processo para impugnar as decisões do próprio Tribunal da Relação a que preside'.
4. A leitura do acórdão recorrido revela à saciedade que nele não houve aplicação das normas jurídicas identificadas pela reclamante – aliás, identificadas só no requerimento de reclamação –, e que, na sua óptica, a interpretação que delas se faça, a propósito de marcação de arrematação em hasta pública, 'irá colidir com os princípios da igualdade e da discriminação, de acesso ao direito e da protecção de propriedade privada, previstos respectivamente entre outros nos artºs 13º, 20º e 62º da C.R..P., o que é inconstitucional'. Decisivamente o acórdão apoiou-se numa consideração única acerca do 'despacho de mero expediente' previsto no artigo 679º, nº 1, do Código de Processo Penal, para concluir pela sua irrecorribilidade e remata com a decisão de 'não tomar conhecimento do recurso', com invocação 'das disposições do artigo 704º, nº 2
(ex vi do disposto no artigo 749º) do CPC', o que mostra inexistir coincidência entre as normas que a reclamante pretende agora questionar, no plano de uma interpretação que seria inconstitucional, e aqueloutras do Código de Processo Civil acabadas de referir. Tanto basta para concluir que falta um pressuposto processual do recurso previsto no artigo 70º, nº 1, b), da Lei nº 28/82, o da aplicação de 'norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo', dando de barato que essa suscitação foi mesmo feita nas alegações do dito recurso de agravo
1. Termos em que, DECIDINDO, indefere-se a reclamação e condena-se a reclamante nas custas, com a taxa de justiça fixada em DEZ unidades de conta. Lisboa, 1 de Julho de 1998 Guilherme da Fonseca Messias Bento Bravo Serra José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida