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Proc. 687/97
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em acção que correu seus termos no Tribunal do Trabalho de Lisboa, J. L., identificado nos autos, demandou a LTE - Electricidade de Portugal, pedindo a condenação da ré no pagamento integral de quantias devidas a título de complemento de pensão de reforma. Tal pretensão fundou-se nos artigos 1º e 2º do Título I do Estatuto Unificado do Pessoal da EDP, aprovado pelo despacho nº
103/79 do Secretário de Estado da Energia e das Indústrias de Base, de 26 de Dezembro de 1979, que regulava expressamente a atribuição de complementos de pensão de reforma a conceder pelo Centro Nacional de Pensões.
2. A LTE alegou a nulidade de tais disposições, porquanto violariam a proibição
ínsita no artigo 6º, nº 1, alínea e), do Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 29 de Dezembro (na sua redacção inicial), ou seja, a impossibilidade de os instrumentos de regulação colectiva de trabalho estabelecerem e regularem benefícios complementares dos assegurados pelas instituições de previdência.
3. O Tribunal do Trabalho de Lisboa desatendeu aquela argumentação da LTE, afirmando a inconstitucionalidade do artigo 6º, nº 1, alínea e), do citado Decreto-Lei nº 519-C1/79, na sequência, aliás, do acórdão nº 966/96 do Tribunal Constitucional:
'Quaisquer razões políticas ou históricas não são, segundo se nos afigura, suficientes para que se imponha uma restrição à liberdade de negociação colectiva. Segundo resulta do estudo de Francisco Liberal Fernandes, «a proibição introduzida pelo D.L. 887/76 e reafirmada pela LIRC [DL 519-C1/79, de
29 de Dezembro] não impediu, porém, que as empresas continuassem a conceder PCSS aos trabalhadores não abrangidos pelo regime do artº 6º, nº 2, da LIRC, ou seja, aos que foram contratados depois de 04.01.77. Na verdade, apesar da proibição legal, os IRC celebrados ou renegociados após a entrada em vigor daqueles diplomas não só mantiveram os regimes já consagrados, como os desenvolveram ou criaram pela primeira vez. Por outro lado, os dados existentes indicam que a situação em meados da década de 80 não sofreu qualquer retrocesso nos anos subsequentes, tanto mais que as causas que, de uma maneira geral, determinam a concessão dos benefícios complementares ? em geral, a insuficiência do sistema público de segurança social em garantir para o universo dos potenciais beneficiários níveis de protecção considerados satisfatórios para os actuais padrões de vida, e o facto de as empresas integrarem a respectiva atribuição na política de gestão do pessoal ? perduram ou, inclusive, acentuaram-se».
'De acordo, ainda, com o mesmo estudo, a resistência a acatar a proibição de estabelecer e regular benefícios complementares, é generalizada na Europa. Pode, assim, dizer-se que a proibição não encontra eco na vontade de quem negoceia na contratação colectiva. Não é só o uso, nem as expectativas criadas à economia dos trabalhadores, que leva a uma tão grande resistência, no cumprimento de uma norma, demonstrativa da sua inadequação à realidade económico-laboral. Não obstante aquelas considerações, continuam a chegar aos tribunais litígios decorrentes da atribuição de benefícios complementares. É que, novas questões se vieram colocar e que se prendem com a crise vivida por algumas empresas e a privatização de outras, aspectos já um pouco à margem de uma interpretação estritamente jurídica do artº 6º, nº 1, al. e) da LIRC, na sua redacção inicial. Seguindo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, que decorre do Acórdão acima citado, declara-se inconstitucional o artº 4º, nº 1, al. e) do D.L.
887/76, de 29.12, e o artº 6º, nº 1, al. e) do D.L. 519-C1/79, de 29.12, por violação dos artºs 58º, nº 3, 17º e 18º da C.R.P., versão de 1976, e artºs 17º,
18º e 57º, nº 3, versão de 1982. Deste modo, julga-se não provada e improcedente a alegada nulidade.'
A acção foi assim julgada procedente.
4. Da decisão do Tribunal do Trabalho de Lisboa, que recusou a aplicação das normas referidas com fundamento na sua inconstitucionalidade, interpôs o Ministério Público o presente recurso, obrigatório, nos termos dos artigos 70º, nº 1, alínea a), 72º, nº 1, alínea a), e nº 3, e 78º, nº 4, todos da Lei do Tribunal Constitucional.
II
5. A questão que se debate nos presente autos, como se depreende da citação da sentença recorrida, não é nova no Tribunal Constitucional. Na verdade, foi já por diversas vezes objecto da atenção deste Tribunal a inconstitucionalidade da norma do artigo 6º, nº 1, alínea e), do Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 29 de Dezembro (que reproduz a norma anteriormente contida no artigo 4º, nº 1, alínea e), do Decreto-Lei nº 164-A/76, de 28 de Fevereiro, com a redacção dada pelo Decreto-Lei nº 887/76, de 29 de Dezembro).
6. O acórdão nº 966/96, da 1ª Secção (publicado no Diário da República, II, de 31 de Janeiro de 1997, p. 1296 ss), pronunciou-se, embora sem unanimidade, no sentido da inconstitucionalidade material da citada disposição legal por violação dos artigos 56º, nºs 3 e 4, 17º e 18º, nº 2, da Lei Fundamental.
7. Contudo, mais tarde, no acórdão nº 517/98, tirado em Plenário, em 15 de Julho de 1998 (publicado no Diário da República, II, de 10 de Novembro de
1998, p. 15978 ss), o Tribunal Constitucional, por maioria, afastou a inconstitucionalidade material do artigo 6º, nº 1, alínea e), mas pronunciou-se no sentido da sua inconstitucionalidade orgânica. Considerou-se que o Decreto-Lei nº 519-C1/79, abrangendo disposições relativas aos direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores, deveria ter sido emitido ao abrigo de autorização legislativa, uma vez que a matéria em causa se inseria na reserva de lei parlamentar [artigo 167º, nº1, alínea c), da Constituição, versão originária].
A este propósito, escreveu-se no mencionado acórdão nº 517/98, transcrevendo argumentação constante de acórdão anterior:
?5. A norma sub iudicio e a reserva parlamentar
5.1. [...]
[...]
«5. O direito de contratação colectiva deveria ser entendido, na verdade, como um direito fundamental dos trabalhadores, no âmbito da versão originária da Constituição de 1976. Tal direito caracteriza, decisivamente, o trabalho subordinado como trabalho prestado por pessoas livres, numa sociedade essencialmente liberal e fundada na dignidade da pessoa humana (artigo 1º da Constituição). A autonomia colectiva representa, efectivamente, uma particular forma de autonomia privada (cf. Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho,
1991, p. 321). Mesmo admitindo que outros direitos dos trabalhadores se não devessem então classificar como fundamentais, o direito de contratação colectiva haveria de incluir-se nesse domínio, não, propriamente, atendendo à sua estrutura, mas tendo em conta a sua importância relativa. Não faria sentido, ante o princípio democrático, incluir direitos subjectivos menos relevantes, mas imediatamente exercíveis por trabalhadores, na reserva de lei e reconhecer quanto ao direito de contratação colectiva, a competência própria do Governo. Aliás, a primeira revisão constitucional viria a reforçar este entendimento, ao incluir o direito de contratação colectiva no âmbito dos direitos, liberdades e garantias consagrados no Título II da Parte I (artigo 57º, nºs 3 e 4), na sequência de uma diferenciação entre ?direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores? e ?direitos e deveres económicos? (que englobam outros direitos dos trabalhadores).
6. Conclui-se, por conseguinte, que a norma sub judicio padece de inconstitucionalidade orgânica, ante o disposto nos artigos 167º, alínea c),
58º, nºs 3 e 4, e 17º da Constituição, na sua versão originária, visto que está inserida num decreto-lei aprovado pelo Governo, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 201º da Constituição (versão originaria), no exercício de competência legislativa alegadamente própria.»
É certo que este fundamento não foi invocado, na decisão recorrida, para fundamentar a recusa de aplicação da norma. Todavia, o Tribunal Constitucional pode julgar inconstitucional a norma em crise com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada, por força do disposto no artigo 79º-C da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (aditado pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro).
É esta posição que ora aqui inteiramente se sufraga, pois que o direito de contratação colectiva, embora, então, indubitavelmente remetesse para a lei a sua delimitação, já se encontrava expressamente previsto na versão originária da Constituição, não podendo, assim, ser a contratação colectiva tida apenas, à
época, como mera garantia institucional, como se chegou a sustentar numa das declarações de voto juntas ao citado Parecer nº 18/78 da Comissão Constitucional.
5.2. Concluindo este ponto: a norma sub iudicio viola, pois, a alínea c) do artigo 167º ? conjugada com os artigos 58º, nº 3, e 17º ? da Constituição
(versão originária).?
8. As mesmas conclusões foram reafirmadas nos acórdãos nºs 520/98 e
521/98, também tirados em Plenário (ainda inéditos).
III
9. Em aplicação da jurisprudência firmada no acórdão nº 517/98, tirado em Plenário, o Tribunal Constitucional decide:
Não julgar inconstitucional a norma constante da versão originária do artigo 6º, nº 1, alínea e), do Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 29 de Dezembro, por se considerar que não contraria os artigos 56º, nºs 3 e 4, 17º e 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa; Julgar inconstitucional a mesma norma, com fundamento na violação dos artigos
17º, 58º, nº 3, e 167º, nº 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa
(versão de 1976); Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que se refere à matéria de constitucionalidade, embora com diferentes fundamentos.
Lisboa, 18 de Novembro de 1998 Maria Helena Brito Alberto Tavares da Costa Maria Fernanda Palma Vitor Nunes de Almeida Paulo Mota Pinto Artur Mauricio José Manuel Cardoso da Costa