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Proc. nº 482/01
1ª Secção Rel.: Consº Luís Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. L... foi condenado no 2° Juízo Criminal da Comarca de Lisboa, por sentença de 24 de Março de 2000, como autor material de um crime de exploração de jogo ilícito, previsto e punido pelos artigos 3°, nº 1, 4°, nº 1, alínea g), e 108° do Decreto-Lei n° 422/89, de 2 de Dezembro. Operada a soma das penas parcelares, foi a pena global fixada na multa única de 155.000$00, subsidiariamente em 23 dias de prisão.
Desta sentença interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo suscitado, na respectiva motivação, a questão da inconstitucionalidade das disposições com base nas quais foi condenado.
Alegou então o recorrente:
III – Finalmente, impõe-se a absolvição do arguido, por inconstitucionalidade material do art. 108°, n° 1, conjugado com os arts. 3° e
4°, n° 1, alínea g) do D.L. 422/89-12-02, resultante da violação do princípio da proporcionalidade das penas, consagrado no art. 18° da Constituição.
É que, como bem se acentuou já em sentença do 4° Juízo Criminal de Lisboa, “retira-se, assim, da finalidade da proibição de exploração de jogos de fortuna ou azar, fora dos locais legalmente autorizados, que tal proibição se mostra despida de conteúdo ético. De outro modo, não se compreenderia que o legislador proibisse a exploração de jogos de fortuna e azar nuns locais e o permitisse noutros. Com efeito, se essa exploração fosse ético-socialmente desvaliosa, o legislador tê-la-ia proibido pura e simplesmente, independentemente do local onde fosse praticada. Ao não o fazer limitando-se a proibi-la, apenas, em determinados locais, é evidente que o que está em causa é a salvaguarda de receitas”.
(...)
O legislador não considera, manifestamente, o jogo socialmente pernicioso!
O que o legislador considera é que o jogo deve gerar receitas para o Estado e os concessionários do jogo!
E, quanto às máquinas, o que quer é impedir a concorrência nos casinos e, assim, salvaguardar as receitas ... dos concessionários dos casinos!
Repare-se na curiosa técnica legislativa:
a) No art° 3° define-se que “a exploração e prática de jogos de fortuna ou azar só são permitidos nos casinos existentes em zonas de jogo (…)” legalmente autorizadas;
b) No art° 4°, elenca, de a) a f) um conjunto de jogos nitidamente de fortuna ou azar;
c) Na alínea g) inventa outro tipo de situação que legalmente equipara a jogo de fortuna ou azar, o de “máquinas que, não pagando directamente fichas ou moedas (…)”.
Ora, como é evidente, nenhuma máquina que não pague prémios em fichas ou moedas é explorada ou explorável em casino autorizado!
(...)
(...) o legislador (...) sabe perfeitamente que as máquinas aí previstas não são nem nunca serão utilizadas ou utilizáveis em zonas de jogo legalmente autorizadas!
O seu único objectivo é proibir que, fora dessas zonas, se utilizem essas máquinas – máquinas que não dão prémios, nem em fichas, nem em dinheiro, note-se!
Obviamente que apenas e tão só para proteger os casinos da concorrência dessas máquinas (pois elas não dão prémios).
(...)
Ou seja, sob a aparência de defesa do cidadão, pretende-se é levá-lo a jogar... no casino!
O que se protege com esta norma? Apenas e tão só as receitas dos concessionários dos casinos!
(...)
Este propósito de protecção aos concessionários de zonas de jogo não
é claramente a tutela de um princípio ético.
Também (verdade se diga) não tem em si um desvalor ético: é aceitável que, impondo o Estado ao concessionário de zonas de jogo o pagamento de vultosas quantias, o Estado proteja a actividade do concessionário.
simplesmente, Viola o princípio da proporcionalidade ínsito no art.
18°, n° 2 da Constituição que efectue essa protecção através de sanção penal.
Sancionar penalmente conduta que não é ético-socialmente desvaliosa, mas que foi apenas proibida para proteger determinados interesses económicos
(dos concessionários das zonas de jogo), viola claramente, rudemente, brutalmente o princípio da Proporcionalidade.
Atentos os objectivos prosseguidos pela proibição, constitucionalmente apenas é admissível uma sanção de natureza contra-ordenacional – é para isso que ela serve !!! -, nunca de natureza Criminal.
E se o legislador agiu de uma forma desproporcionada, irrazoável, logo inconstitucional, deve o Tribunal usar o poder que lhe detém e que a Constituição lhe impõe:recusar a aplicação da norma, com fundamento em inconstitucionalidade.
E concluiu deste modo:
(...)
9. O art. 108°, n° 1, aplicado conjugadamente com os artigos 3°, n°
1 e 4°, n° 1, alínea g), todos do DL 422/89-12-02, está viciado de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da proporcionalidade das penas, consagrado no art. 18° da Constituição.
10. Com efeito, a finalidade da proibição da exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados está despida de conteúdo
ético, pois de outro modo não se compreenderia que o legislador proibisse a exploração de jogos de fortuna ou azar nuns locais e os permitisse noutros, nem que permitisse, eufemisticamente chama de “jogos sociais”, o País seja um autêntico casino-gigante, com a apologia dos Jackpots e das Rodas dos Milhões e das Santas Casas nas televisões e nos anúncios das rádios e nos cartazes e em tudo o que é sítio.
11. A única finalidade da proibição é a da salvaguarda de receitas para os concessionários dos jogos e, no caso, particularmente através da proibição de concorrência aos casinos.
12. Mais: a norma até obriga aquele que gosta de jogar videopoker a não o poder fazer por diversão, em qualquer salão de jogos e a ter de ir jogar a dinheiro nos casinos.
13. Assim, atento o objectivo de protecção do lucro de alguns da norma, e não a protecção de qualquer valor ético, consagrar sanção criminal viola claramente o sentido da proporcionalidade ínsito no art. 18°, n° 2 da Constituição.
14. Com efeito, apenas é admissível sanção contra-ordenacional – é para isso que o direito de mera ordenação social serve -, nunca de natureza criminal.
2. O Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, por acórdão de 22 de Fevereiro de 2001.
Aí se apresentam, inter alia, as seguintes razões:
Ao contrário do que pretende o recorrente, a proibição do jogo fora dos casinos tem outras finalidades que não a de proibir a concorrência desleal aos titulares da concessão de jogo.
Desde logo, surge a finalidade de melhor proteger os menores de 18 anos, os incapazes, inabilitados e culpados de falência fraudulenta que não tenham sido reabilitados, e todos os demais cidadãos com propensão para o vício do jogo que nos casinos podem, até por sua iniciativa, solicitar ao Inspector geral de jogos que lhes impeça o acesso às salas de jogos.
Desta enumeração meramente exemplificativa resulta bem claro que a proibição de jogo fora dos casinos tem por finalidade proteger o cidadão mais incauto e desprevenido, bem como os menores, da atracção sobre eles exercida pelo jogo, com todos os problemas que lhe são inerentes se o utilizador dos mesmos tiver propensão para o jogo, desde os empréstimos superiores às suas possibilidades de pagamento a outras vicissitudes, mais controláveis (ainda que não completamente) se o jogo apenas for permitido em determinados locais com concessão para o efeito, e que para a manter têm de obedecer a regras estritas.
Por outro lado, não vislumbramos que direito fundamental do recorrente esteja posto em crise por tal legislação, e que tenha sido ofendido pela alegada violação do princípio da proporcionalidade. É que nenhum direito fundamental seu pode ter como consequência a possibilidade de violação dos direitos fundamentais de terceiro por parte do recorrente.
A nosso ver, a legislação cuja inconstitucionalidade o recorrente pretende ver declarada tem como objectivo proteger os incautos da possibilidade de acabarem explorados pelo jogo através do qual apenas pretendiam passar umas horas de lazer.
Daí que nenhuma violação do princípio da proporcionalidade na fixação das penas exista, nem os jogos na televisão se lhe possam sequer comparar pois esses são, pelo menos, fiscalizados pelo Governo Civil respectivo.
3. Inconformado, interpôs o arguido recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto na alínea b) do n° 1 do artigo 70° da LTC.
Nas suas alegações, continua a defender a inconstitucionalidade do artigo 108°, n° 1, conjugado com os artigos 3°, n° 1, e
4°, n° 1, alínea g), do Decreto-Lei n° 422/89, por violação do princípio da proporcionalidade ínsito no art° 18°, n° 2, da Constituição.
Essas alegações concluem da forma seguinte:
1. O interesse juridicamente protegido pelas disposições conjugadas dos arts. 108°, n° 1 – 3°, n° 1 e 4°, n° 1, al. g) do DL n° 422/89-12-02 é a tutela dos interesses dos concessionários de jogo.
2. Este interesse não é constitucionalmente protegido.
3. Logo, não é admissível restrição ao direito fundamental
“liberdade individual” através de sancionamento penal em pena de prisão.
4. De qualquer forma, ainda que protegido constitucionalmente fosse aquele interesse ou também fosse outro interesse também tutelado por tais normas, sempre a restrição ao direito “liberdade individual” operada por sancionamento penal com pena de prisão é desproporcionada, por desnecessária.
5. Com efeito, mostra-se ultrapassada a medida da necessidade admitida pelo art. 18°, n° 2 da Constituição, com tal tutela penal.
6. Adequada, e à disposição do legislador, seria apenas tão só a tutela por via de sanção contra-ordenacional, a exemplo do que abundantemente existe no Ordenamento Jurídico Português.
7. Consequentemente, deve ser recusada a aplicação, por inconstitucionalidade material, das referidas normas conjugadas, por violação do art. 18°, n° 2 da Constituição e do princípio da proporcionalidade nele ínsito.
Por seu turno, o Ministério Público sublinha o seguinte nas suas contra-alegações:
Não questiona, aliás, em rigor, o recorrente a ilicitude da actividade que exerceu e com base na qual foi condenado – já que expressamente admite a sua relevância, pelo menos no domínio contraordenacional – mas tão-somente a criminalização do facto, traduzida na possibilidade de sancionamento com uma pena privativa da liberdade.
Existe, porém – como vem, aliás, reconhecendo a jurisprudência do Tribunal Constitucional – uma ampla margem de discricionariedade legislativa na precisa delimitação de fronteiras entre o ilícito penal e os demais direitos sancionatórios públicos – só em situações limites se podendo considerar violadora dos princípios da necessidade e proporcionalidade a criminalização de determinados comportamentos (v.g. acórdãos 204/94, 59/95, 527/95) – pelo que incluir certo e determinado ilícito no domínio do direito penal ou prevê-lo apenas no domínio dos direitos contravencional ou contraordenacional dependerá, em larga medida, de um juízo relativamente discricionário do legislador ordinário (desde que, naturalmente, tal entendimento e valoração não afronte manifestamente o princípio da necessidade).
Tudo visto, cumpre decidir.
II
4. O objecto do presente recurso é constituído pelas normas conjugadas dos artigos 3°, n° 1, 4°, n° 1, alínea g), e 108°, n° 1, do Decreto-Lei n° 422/89 (Lei do Jogo), cuja constitucionalidade já foi, aliás, examinada – mas tão-só face ao parâmetro constitucional do princípio da tipicidade - no Acórdão n° 93/01 (publicado no Diário da República, II Série, de
5 de Junho de 2001).
São do seguinte teor as referidas disposições legais:
Artigo 3°
1 – A exploração e a prática dos jogos de fortuna ou azar só são permitidas nos casinos existentes em zonas de jogo permanente ou temporário criadas por decreto-lei ou, fora daqueles, nos casos excepcionados nos artigos
6° a 8°
(...)
Artigo 4°
1 – Nos casinos é autorizada a exploração, nomeadamente, dos seguintes tipos de jogos de fortuna ou azar:
(...)
g) Jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.
(...)
Artigo 108°
1 – Quem, por qualquer forma, fizer a exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados será punido com prisão até 2 anos e multa até 200 dias.
(...)
Conforme se referiu, este Tribunal analisou, no citado Acórdão nº 93/01, a constitucionalidade deste bloco normativo, tendo então sido apenas confrontado com a questão da eventual violação do princípio da tipicidade, tendo concluído pela não desconformidade consitucional das normas impugnadas. No entanto, não estando o Tribunal Constitucional vinculado pelo princípio do pedido no que se refere aos fundamentos da inconstitucionalidade, nada o impedia – se o considerasse necessário - de ter analisado as disposições criticadas à luz de outros princípios constitucionais, nomeadamente o da proporcionalidade ou da necessidade das penas, sendo certo, porém, que o não fez e que tais questões nem sequer foram evocadas no aresto em causa; se daí se pode extrair que este Tribunal não encontrou então, qualquer motivo para suspeitar, prima facie, da existência de outros possíveis fundamentos de inconstitucionalidade, tal não o dispensa, todavia, de dever agora apreciar ex professo os fundamentos aduzidos ex novo pelo recorrente.
Esses fundamentos – recorde-se – resumem-se ao seguinte:
- as normas questionadas violam o princípio da necessidade das penas, por ser suficiente a punição contra-ordenacional do ilícito em causa, pois que ele não atinge qualquer interesse constitucionalmente protegido;
- de todo o modo, a punibilidade desse ilícto com pena de prisão configura-se como excessiva, donde decorre igualmente a violação do princípio da necessidade das penas, bem como do princípio da proporcionalidade.
5. O princípio da necessidade da pena decorre do preceituado no artigo 18º, nº 2, da Lei Fundamental, segundo o qual «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». Encontra-se, assim, umbilicalmente ligado ao princípio da proporcionalidade.
Este Tribunal tem, aliás, reconhecido que a Constituição acolhe o princípio «da necessidade (para defesa dos direitos ou interesses constitucionalmente protegidos) ou da máxima restrição (compatível com aquela defesa) das penas e das medidas de segurança (artigo 18°, n°s 2 e 3)», sendo certo que «por serem as sanções penais aquelas que, em geral, maiores sacrifícios impõem aos direitos fundamentais, devem ser evitadas, na existência e na medida, sempre que não seja certa a sua necessidade» (Acórdão n° 59/85, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., págs. 96-97).
E no Acórdão nº 634/93 (Acórdãos do Tribunal Constitucional,
26º vol., págs. 211-212) já se escrevera:
Seja como for, uma abordagem mais incisiva da matéria em causa é, porém, a que pode ser feita à luz do princípio da subsidiariedade do direito penal (ou princípio da máxima restrição das penas) que, como é sabido, limita a intervenção da norma incriminadora aos casos em que não é possível, através de outros meios jurídicos, obter os fins pretendidos pelo legislador.
É certo que o princípio da subsidiariedade do direito penal não resulta expressamente das normas que correspondem à chamada «constituição penal»
(artigos 27º e seguintes da Constituição). Todavia, ele não é mais do que uma aplicação, ao direito penal e à política criminal, dos princípios constitucionais da justiça e da proporcionalidade, este aflorando designadamente no artigo 18º, nº 2, da Constituição, e ambos decorrentes, iniludivelmente, da ideia de Estado de direito democrático, consignada no artigo 2º da Lei Fundamental.
Segundo Jescheck (Tratado de Derecho Penal – Parte General, trad., Bosch, 1986, p. 34), o princípio da proporcionalidade dos meios (proibição do excesso), também com consagração constitucional no direito alemão, refere-se ao conceito de Estado de direito material e foi introduzido expressamente no direito criminal como pressuposto de determinação das medidas penais. Deste princípio, bem como dos da protecção da dignidade da pessoa humana e da protecção geral da liberdade, resulta a limitação do Direito Penal à intervenção necessária para «assegurar a convivência humana na comunidade».
Como é sabido, entre nós, a consagração constitucional destes princípios não merece contestação desde a revisão constitucional de 1982.
(...)
É que, como afirma o Prof. Figueiredo Dias, «num Estado de Direito material, de raiz social e democrática, o direito penal só pode e deve intervir onde se verifiquem lesões insuportáveis das condições comunitárias essenciais de livre desenvolvimento e realização da personalidade de cada homem» («O sistema sancionatório do Direito Penal Português no contexto dos modelos da política criminal», Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, pp.
806/807). Daqui decorre, para o mesmo autor, que não devem constituir crimes – ou, sequer, caber no objecto do direito penal – as condutas entre outras, que
«violando embora um bem jurídico, possam ser suficientemente contrariadas ou controladas por meios não criminais de política social; com o que a necessidade social se torna em critério decisivo de intervenção do direito penal: este, para além de se limitar à tutela de bens jurídicos, só deve intervir como última ratio da política social» («O Movimento da Descirminalização e o Ilícito de Mera Ordenação Social» Jornadas de Direito Criminal – O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, Centro de Estudos Judiciários, p. 323).
Pode, assim, reconhecer-se que haverá que pesar os diversos bens e valores em causa para efectuar uma «ponderação de interesses segundo as circunstâncias do caso concreto», para averiguar «se o sacrifício dos interesses individuais que a ingerência comporta mantém uma relação razoável ou proporcionada com a importância do interesse estatal que se trata de salvaguardar», já que «se o sacrifício resulta excessivo a medida deverá ser considerada inadmissível, ainda que satisfaça os restantes pressupostos e requisitos decorrentes do princípio de proporcionalidade» (Nicolas Gonzalez-Cuellar Serrano, Proporcionalidad y Derechos Fundamentales en el Processo Penal, Colex, p. 225).
O recurso a meios penais está, pois, constitucionalmente sujeito a limites consideráveis. Consistindo as penas, em geral, na privação ou sacrificio de determinados direitos (maxime, a privação da liberdade, no caso da prisão), as medidas penais só são constitucionalmente admissíveis quando sejam necessárias, adequadas e proporcionadas à protecção de determinado direito ou interesse constitucionalmente protegido (cfr. artigo 18° da Constituição), e só serão constitucionalmente exigíveis quando se trate de proteger um direito ou bem constitucional de primeira importância e essa protecção não possa ser suficiente e adequadamente garantida de outro modo.
A este propósito, mas arrancando já para uma outra perspectiva, Maria Fernanda Palma (Constituição e Direito Penal - As questões inevitáveis, Perspectivas Constitucionais - Nos 20 anos da Constituição de 1976, Vol.II, Coimbra Editora, 1996) afirma:
Há, com efeito, limites claros à opção criminalizadora. As sanções criminais não podem ser conexionadas com um ilícito puramente civil (por exemplo, violação de direitos de crédito), laboral ou disciplinar. Só onde estejam em causa bens com relevância social externa, atinentes aos valores da sociedade em geral, é que o Direito Penal pode legitimamente intervir.
Assim, o Direito Penal pressupõe a dignidade punitiva das condutas que prevê, definida pela essencialidade do bem lesado ou posto em perigo, na perspectiva das condições da existência e realização dos fins do Estado de direito democrático, e pelo desvalor das condutas incriminadas, na dimensão de uma clara gravidade ética.
Por outro lado, a Constituição exige a carência efectiva de tutela penal das condutas incriminadas, a inexistência de meios alternativos eficazes de protecção jurídica.
Por seu lado, Figueiredo Dias e Costa Andrade, (Direito Penal
- Questões fundamentais - A doutrina geral do crime, plicop., 1996), ensinam:
A limitação da intervenção penal acabada de referir, independentemente do mandamento expresso contido no artigo 18°-2 da CRP, derivaria sempre aliás do princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade em sentido amplo que, como é sabido, faz parte dos princípios inerentes ao Estado de direito. Uma vez que o direito penal utiliza, com o arsenal das suas funções específicas, os meios mais onerosos para os direitos e as liberdades das pessoas, ele só pode intervir nos casos em que todos os outros meios da política social, em particular da política jurídica, se revelem insuficientes e inadequados. Quando assim não aconteça aquela intervenção pode e deve ser acusada de contrariedade ao princípio da proporcionalidade, sob a precisa forma de violação do princípio da proibição de excesso. Tal sucederá, p. ex., quando se determine a intervenção penal para protecção de bens jurídicos que podem ser suficientemente tutelados por intervenção dos meios civis (a legitimidade ou ilegitimidade de criminalização do cheque sem provisão constitui, a este propósito, um exemplo instrutivo), pelas sanções do direito administrativo
(entrando aqui, de pleno, toda a controvérsia sobre as fronteiras que devem separar o direito penal do direito de mera ordenação social ou das contra-ordenações: cf. infra) ou do direito disciplinar. Como o mesmo sucederá sempre que se demonstre a inadequação das sanções penais para prevenção de determinados ilícitos, nomeadamente sempre que a criminalização de certos comportamentos seja factor da prática de muitíssimas mais violações do que aquelas que aquela se revela susceptível de evitar (o que se sucede sobretudo no domínio dos criminologicamente “crimes sem vítima” como, v.g., o consumo de drogas ou de álcool, a prostituição, a pornografia, etc.); caso em que fica próxima a afirmação de que a prevenção e controlo de tais comportamentos, quando se repute socialmente desejável, deve ser deixada por inteiro à intervenção de meios não penais de controlo social. Neste sentido se pode e deve afirmar, em definitivo, que a função precípua do direito penal – e consequentemente também o conceito material de crime – reside na tutela subsidiária (de ultima ratio) de bens jurídicos.
E o Tribunal Constitucional, mais recentemente, afirmou com clareza (Acórdão n° 108/99, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 42º vol., págs.
521-522):
O direito penal, enquanto direito de protecção, cumpre uma função de ultima ratio. Só se justifica, por isso, que intervenha para proteger bens jurídicos - e se não for possível o recurso a outras medidas de política social, igualmente eficazes, mas menos violentas do que as sanções criminais. É, assim, um direito enformado pelo princípio da fragmentariedade, pois que há-de limitar-se à defesa das perturbações graves da ordem social e à protecção das condições sociais indispensáveis ao viver comunitário. E enformado, bem assim, pelo princípio da subsidiariedade, já que, dentro da panóplia de medidas legislativas para protecção e defesa dos bens jurídicos, as sanções penais hão-de constituir sempre o último recurso.
A necessidade social apresenta-se, deste modo, como critério decisivo da intervenção do direito penal. No dizer de SAX (citado por EDUARDO CORREIA, loc.cit.), a necessidade da pena surge “como o caminho mais humano para proteger certos bens jurídicos”. (Para maiores desenvolvimentos sobre esta questão, cf. o citado Acórdão n° 83/95, publicado no Diário da República,II série, de 16 de Junho de 1995).
Este princípio da necessidade – que, no dizer de EDUARDO CORREIA
(“Estudos sobre a reforma do direito penal depois de 1974”, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 119°, pág. 6), marca o “limite do âmbito do direito penal” – decorre do n° 2 do artigo 18° da Constituição. (...)
Mas então, como adverte FIGUEIREDO DIAS (“O sistema sancionatório no direito penal português”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Eduardo Correia, I, Boletim da Faculdade de Direito, número especial, Coimbra, 1984, página 823), há-de observar-se “uma estrita analogia entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídico-penais”, ficando toda a intervenção penal subordinada “a um estrito princípio de necessidade”. “Só por razões de prevenção geral, nomeadamente de prevenção geral de integração – sublinha – se pode justificar a aplicação de reacções criminais”.
Idêntico é o pensamento de JOSÉ DE SOUSA E BRITO (“A lei penal na Constituição”, in Estudos sobre a Constituição, 2° vol., Lisboa, 1978, pág.
218), que escreve: “Entende-se que as sanções penais só se justificam quando forem necessárias, isto é, indispensáveis, tanto na sua existência, como na sua medida, à conservação e à paz da sociedade civil”.
Pode, pois, dar-se como assente que os princípios da proporcionalidade e da necessidade da pena postulam que a norma penal, sobretudo quando recorre a penas privativas da liberdade, deve constituir uma última instância dos meios de tutela estadual dos valores ético-sociais constitucionalmente protegidos.
6. Contudo, não se deve simultaneamente perder de vista que o juízo de constitucionalidade se não pode confundir com um juízo sobre o mérito da lei, pelo que não cabe ao Tribunal Constitucional substituir-se ao legislador na determinação das opções políticas sobre a necessidade ou a conveniência na criminalização de certos comportamentos.
Com efeito, como se assinalou no já citado Acórdão nº 634/93,
«o juízo sobre a necessidade do recurso aos meios penais cabe, em primeira linha, ao legislador, ao qual se há-de reconhecer, também nesta matéria, um largo âmbito de discricionariedade». Consequentemente, a limitação da liberdade de conformação legislativa, no que se refere à opção de criminalizar determinada conduta, só pode «ocorrer quando a punição criminal se apresente como manifestamente excessiva».
Neste mesmo sentido, Costa Andrade (O novo Código Penal e a moderna criminologia, Jornadas de Direito Criminal, Centro de Estudos Judiciários, fase 1, Lisboa, 1983, nota 34, pág. 228), refere:
(...) importa,acima de tudo, salvaguardar o “primado político do legislador”
(Bachof) nos espaços de discricionariedade decorrentes do princípio da subsidiariedade. A sub-rogação de qualquer outro órgão neste domínio, designadamente do Tribunal Constitucional, representaria uma questionável transposição das fronteiras entre o jurídico e o político e uma violação do princípio da separação dos poderes. Como refere Bachof, deve reservar-se ao legislador a competência para definir os objectivos políticos e os critérios de adequação, como assumir os riscos pelas expectativas ou prognósticos sobre cuja antecipação assentam as suas decisões normativas.
Com efeito, como sublinha J.J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3° ed., Coimbra, 1999, pág. 876), a
«política deliberativa sobre as políticas da República pertence à política e não
à justiça»; e, por isso mesmo, no dizer de Jorge Miranda, ao juiz constitucional não compete «apreciar a oportunidade política desta ou daquela lei ou a sua maior ou menor bondade para o interesse público», mas tão-só averiguar «a correspondência (ou não descorrespondência) de fins, a harmonização (ou não desarmonização) de valores, a inserção (ou não desinserção) nos critérios constitucionais» (Manual de Direito Constitucional, Tomo VI, Coimbra Editora,
2001, págs. 43-44), sem «transformar o juízo de constitucionalidade em juízo de mérito em que se valora se a lei cumpre bem ou mal os fins por ela própria estabelecidos» (idem, vol. II, Coimbra, 1991, pág. 342).
Nesta conformidade, no mencionado Acórdão n° 108/99, numa linha jurisprudencial que aqui se adopta e reitera, concluiu-se que «quando, pois, se não se esteja em presença de uma situação de excesso – ou, pelo menos, não seja manifesto que tal aconteça – a norma incriminadora não pode ser censurada sub specie constitutionis, em nome do princípio da proporcionalidade».
Em suma, também em matéria de criminalização, o legislador não beneficia de uma margem de liberdade irrestrita e absoluta, devendo manter-se dentro das balizas que lhe são traçadas pela Constituição; mas no controlo do respeito pelo legislador dessa ampla margem de liberdade de conformação, com fundamento em violação do princípio da proporcionalidade, o Tribunal Constitucional só deve proceder à censura das opções legislativas manifestamente arbitrárias ou excessivas.
No caso dos autos, tal significa que importa, desde logo, determinar se a punição criminal da exploração de jogo ilegal constitui algo de intrinsecamente avesso ou indiferente às valorações ético-sociais que decorrem dos interesses juridico-constitucionalmente protegidos.
7. A repressão penal da exploração – e da própria prática – dos jogos de azar remontará ao Direito Romano, tendo-se acentuado, após um breve período de maior tolerância, no final da Idade Média. É que a «difusão do jogo e os graves inconvenientes provocados pela paixão do jogo – litígios, rixas e delitos, fraudes e enganos múltiplos para garantir a vitória à outrance, a que não foram insensíveis nobres e sacerdotes, acolhendo estes últimos na Igreja jogadores que, assim, beneficiavam da imunidade concedida aos lugares sacros para jogar e apostar – convenceram rapidamente os legisladores que não bastava limitar o jogo de azar e que urgia tomar medidas mais drásticas. Ou seja, que era preciso abandonar a tolerância e introduzir normas severas» (Carlos Alberto da Mota Pinto, António Pinto Monteiro e João Calvão da Silva, Jogo e Aposta – Subsídios de Fundamentação Ética e Histórico-Jurídica, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, 1982, pág. 47).
No nosso Direito Penal mais recente, evoluiu-se da punição, em todos os casos, daqueles que fossem achados a jogar jogo de fortuna ou azar ou o dirigissem ou explorassem (artigos 265º e 267º do Código Penal de 1886), para a punição, em leis avulsas, da exploração e prática de jogos de fortuna ou azar, fora dos locais e sem respeito pelas condições em que os mesmos são autorizados – maxime, nos casinos e salas de bingo. Adoptou-se, portanto, o sistema da autorização regulamentada (cfr. Carlos Alberto da Mota Pinto ..., ibidem, págs. 34-35).
Para justificar a opção por este sistema, têm sido apontadas diversas razões (idem, ib., págs. 30-31 e 36):
Por um lado, ao criar zonas de jogo, que fiscaliza, e ao estabelecer o monopólio da exploração de outros jogos em favor de certas entidades idóneas, o Estado, ao mesmo tempo que possibilita a satisfação de uma tendência natural do homem, fá-lo ainda por saber que serão observadas certas condições por ele impostas, as quais contribuem para atenuar os efeitos negativos do jogo (por ex., condições de entrada em casinos restritas a uma certa idade, profissão, etc.).
Assim, ao mesmo tempo que permite que o homem satisfaça o seu desejo de jogar, o Estado encaminha a sua prática para instituições onde são dadas garantias de seriedade e isenção aos jogadores – instituições que o Estado controla e fiscaliza -, reduzindo, ou anulando mesmo, o interesse pelo jogo clandestino, ilícito e particularmente perigoso, em si mesmo e no ambiente marginal que o rodeia.
Por outro lado, e ao mesmo tempo, o Estado obtém importantes receitas fiscais, incentiva o turismo e canaliza parte considerável das receitas do jogo para fins de ordem social.
Acresce ainda, no que diz respeito mais especificamente à lotaria nacional e ao «totobola», que se trata de jogos («lato sensu») de características marcadamente populares, praticamente isentos de gerar qualquer perigo, visto que a sua prática envolve apenas o dispêndio de pequenas quantias, possibilitando, em contrapartida, ganhos elevadíssimos.
Além disso, trata-se de jogos cuja prática não é contínua, não constituindo, pois, uma actividade absorvente que desvie o jogador das suas ocupações diárias. O tempo que decorre entre as diversas «jogadas» impede que o jogador seja prejudicado pela excitação momentânea produzida pelos resultados favoráveis ou desfavoráveis que tenha obtido.
Trata-se, em suma, de jogos que, além de revelarem poucos ou nenhuns inconvenientes, permitem que se obtenham apreciáveis vantagens, tanto para os particulares que arriscam, como para a sociedade, que beneficia em larga medida da receita dos mesmos.
(...)
Destarte, o Estado procura sublimar as tendências humanas para o jogo, controlando-as, defendendo a ordem pública e os bons costumes através de uma rigorosa disciplina preventiva de segurança pública que evite o jogo como fonte de litígios, de desordem e mesmo de paixões ardentes – a fazer com que o jogo lícito e controlado deixe de ser visto como ética e socialmente reprovável.
A moralidade dos jogos lícitos e controlados radica, pois, não só no facto de os seus benefícios se aplicarem a fins socialmente úteis mas também, mais directamente, em que sejam conduzidos honestamente e em que permitam satisfazer sem perigos a inclinação ao jogo inata no homem.
A opção criminalizadora portuguesa não se encontra isolada, já que outras legislações europeias punem esta conduta como ilícito penal, e mesmo de forma grave.
Por exemplo, o Código Penal alemão, no §284, pune com prisão até dois anos ou com multa quem organizar publicamente um jogo de azar sem autorização administrativa, ou ceder instalações para tal efeito, salvo se actuar de forma profissional ou como membro de um grupo que se tenha constituído para cometer continuadamente tais actos, caso em que será punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos. E a própria participação em jogo de azar não autorizado é punida com prisão até seis meses ou com multa (cfr. Emilio Eiranova Encinas (coord.), Código Penal Alemán StGB/Código Procesal Penal Alemán StPO, Marcial Pons, Barcelona, 2000, pág. 160).
E, de idêntica forma, o Código Penal francês, no seu artigo
410, pune os organizadores e exploradores não autorizados de jogos de azar ou de lotarias com penas que podem ir, consoante os casos, até três ou seis meses de prisão, para além de pesadas multas e do confisco de todos os bens móveis que guarneçam ou decorem os locais onde se processe o jogo proibido (Codes Dalloz, Code Pénal – Nouveau Code Pénal, 1993-1994, pág. 564).
A punição penal da exploração de jogos de fortuna ou azar não autorizados não se destina primacialmente a impedir a prática de uma actividade
– o jogo – considerada moralmente reprovável. Com efeito, o fundamento
ético-social do sancionamento penal do jogo de azar não se encontra tanto na necessidade de proteger o jogador contra as inclinações, gostos ou vícios que lhe podem – e normalmente são – prejudiciais, quanto na necessidade de reprimir a prática de uma actividade que constitui objecto de uma significativa reprovação social, do ponto de vista ético, tendo em conta os males e prejuízos para a própria sociedade que se considera encontrarem-se-lhe associados – por exemplo, acréscimo de burlas, usuras e fraudes, bem como de litígios e violências, facilitando o alastramento do crime organizado; significativa perturbação da vida familiar dos jogadores, com repercussão na capacidade de manutenção e educação dos filhos; ou, ainda, possibilidade de incidência negativa no domínio das relações laborais ou económicas dos jogadores.
Ora, o que é certo é que em todas estas possíveis situações se encontrarão afectados interesses constitucionalmente protegidos – a segurança dos cidadãos, o respeito da legalidade democrática, a protecção da infância e da juventude, a estabilidade da vida social e económica. E, consequentemente, não se vê que o legislador, ao criminalizar a exploração do jogo, pudesse estar a violar o princípio da necessidade da pena, procedendo a uma opção manifestamente arbitrária ou excessiva.
Não se sufraga, assim, pelo menos na sua integralidade, o que sustenta Rui Pinto Duarte (O Jogo e o Direito, Themis, II. 3 (2001), págs. 69 e segs.):
Tenho dois comentários a fazer ao tipo penal “prática ilícita de jogo”. O primeiro é o de que ele é provavelmente inconstitucional (por razões que nada têm a ver com o carácter indeterminado do conceito do “jogos de fortuna ou azar”). O segundo é o de que ele é, de certeza, discutível…
Desenvolvendo os dois comentários, recordarei que a Constituição determina, no seu art° 18, n° 2, que as restrições legais aos direitos e liberdades dos cidadãos se devem limitar ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Não vejo quais são os direitos ou interesses constitucionalmente protegidos para cuja salvaguarda é necessário incriminar a prática de jogos de fortuna ou azar, em especial aqueles que não envolvem o dispêndio de dinheiro pelo jogador. A razão da permanência da incriminação, com a sua enorme latitude, é, como adiante melhor veremos, a inércia na manutenção de mecanismos antiquados de defesa dos cidadãos contra o pecado e a dissipação do património, a par da protecção de interesses fiscais do Estado (e das entidades por ele beneficiadas). Discutíveis parece-me o mínimo que a tais fundamentos de incriminação se pode chamar.
O mesmo autor afirma ainda:
Embora entenda que nenhum dos bens jurídicos referidos justifica a punição criminal das actividades ligadas ao jogo, creio que na base dos quatro tipos penais em causa estão, sincreticamente, os três valores referidos (bons costumes, propriedade, interesse fiscal) ou melhor, certos entendimentos desses valores – cuja permanência na ordem jurídica resulta da inércia política. Em cada um dos quatro tipos penais considerados parece haver pesos diferentes dos três valores em causa, mas é defensável que estes estão presentes em todos aqueles.
É evidente que, tendo o legislador optado pelo já referido sistema da autorização regulamentada para evitar alguns dos piores malefícios associados à prática dos jogos de azar, por entender que essa ainda é uma forma adequada de alcançar esse desiderato, nem por isso fica ele impedido de criminalizar, de todo o modo, a exploração do jogo ilícito.
Por um lado, porque as razões que justificam a criminalização se verificam necessariamente – senão, todo o sistema da autorização regulamentada teria de ser considerado como incoerente – com muito maior acuidade no caso de jogo ilícito que no caso de jogo autorizado. Por outro lado, porque também a defesa dos interesses fiscais do Estado, resultantes do particular sistema de tributação do jogo (cfr. Sérgio Vasques, Os Impostos do Pecado – O Álcool, o Tabaco, o Jogo e o Fisco, Almedina, Coimbra, 1999), pode fundar a opção pela criminalização dos comportamentos em causa, uma vez que a doutrina vem considerando que a protecção de relevantes interesses financeiros do Estado pode justificar a adopção de normas penais que inclusivamente estabeleçam penas privativas da liberdade (cfr. Eduardo Correia, Os artigos 10º do Decreto-Lei nº 27153, de 31 de Outubro de 1936, e 4º, nº 1, do Decreto-Lei nº
28221, de 24 de Novembro de 1937, a Reforma Fiscal e a Jurisprudência (Secção Criminal) do Supremo Tribunal de Justiça, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 100º, nºs 3550 a 3557; Augusto Silva Dias, O Novo Direito Penal Fiscal Não Aduaneiro, Fisco, nº 22, Ano 2, Julho 90, págs. 16 e segs.; Nuno Sá Gomes, Direito Penal Fiscal, 1983, pág. 342; Celeste Cardona, A Infracção Fiscal no Direito Comparado, Estudos (col.), Centro de Estudos Fiscais, 1983, págs. 446 e segs.; Castro Martins e Macaísta Malheiros, A Pena de Prisão no Direito Fiscal, Ciência e Técnica Fiscal, nºs 226-228, págs. 29 e segs.).
Nesta conformidade, a criminalização de certo comportamento, tendo em vista a protecção dos interesses do fisco, depende de uma «qualificação
ética» que resulta de «algo de historicamente condicionado, que ao cabo e ao resto dependerá das exigências éticas da consciência social em cada momento»
(José Manuel M. Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, 2ª ed., Almedina,
1972, págs. 106-107), o que cabe, em primeira linha, ao legislador determinar.
Assim, a criminalização operada pelas normas impugnadas – face à alternativa da mera qualificação como contra-ordenação – deve ser tida como uma opção aceitável à luz da Constituição. Aliás, o próprio Rui Pinto Duarte (ob. cit.) o reconhece implicitamente quando afirma que «no que toca aos interesses fiscais do Estado, mesmo que os mesmos justifiquem a punição criminal de quem frustra a arrecadação de impostos – ou seja a punição criminal da exploração ilícita de jogo – eles não justificam certamente os outros tipos penais em causa.». Ora, no caso vertente, está em causa exactamente a dita exploração ilícita de jogo e não qualquer das outras infracções cuja punição aquele autor questiona do ponto de vista da sua conformidade constitucional.
8. Como se assinalou, questiona ainda o recorrente que a previsão da pena de prisão viola, in casu, o princípio da proporcionalidade.
Poder-se-ia, desde logo, colocar a questão de saber se a apreciação desta questão teria interesse no caso vertente, tendo em consideração, por um lado, que a pena de prisão foi substituída por multa (e que, por outro lado, a condenação em prisão subsidiária não está aqui em causa, por não ter sido suscitada a constitucionalidade do artigo 49º do Código Penal).
De todo o modo, sempre se dirá que, tendo este Tribunal já sublinhado, no Acórdão n° 13/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, ) «que ao legislador dev(e) ser reconhecida uma larga margem de liberdade de conformação ou, se se quiser, uma ampla margem conformativa», pelo que o juízo de censura constitucional só pode ocorrer «quando a gravidade do sancionamento se mostre inequívoca, patente ou manifestamente excessiva», essa não é, patentemente, a situação que se configura no caso sub judicio, tendo designadamente em consideração a já referida legitimidade constitucional da previsão da aplicação de penas privativas da liberdade em crimes deste tipo e a pouca gravidade da pena em causa, bem como a sua substituição por multa.
Também nesta dimensão, pois, se não descortina qualquer inconstitucionalidade nas normas impugnadas.
III
9. Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 15 unidades de conta.
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2002 Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa