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Proc. nº 169/98
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- R. M., identificado nos autos, foi condenado, por acórdão de 26 de Junho de 1997 do Tribunal Colectivo da 2ª Secção da 4ª Vara Criminal do Tribunal Criminal da Comarca de Lisboa, pela autoria material, em concurso efectivo e como reincidente, dos seguintes crimes:
- um crime de homicídio previsto e punido pelo artigo 131º do Código Penal, na pena de 16 (dezasseis) anos de prisão;
- dois crimes de sequestro, previstos e punidos pelo artigo 158º, nº 1, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão por cada um dos crimes;
- um crime de roubo previsto e punido pelo artigo 210º , nºs. 1 e 2, alínea b), com referência ao artigo 204º, nº 2, alínea f), do mesmo Código, na pena de 8 (oito) anos de prisão;
- um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 275º, nº 2, do Código Penal, na pena de 15
(quinze) meses de prisão.
Operado o cúmulo jurídico, foi o mesmo condenado na pena
única de 25 (vinte e cinco) anos de prisão.
Foi, ainda, condenado ao pagamento de várias quantias, a título de indemnização cível, ao marido e aos filhos da vítima, num total de
20.246.000$00 e à Caixa Nacional de Pensões, no valor de 945.880$00, todas acrescidas de juros de mora, e, bem assim, nas custas do processo que lhe foram fixadas.
Inconformado, recorreu o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo a respectiva motivação do seguinte modo:
a) a sentença recorrida é nula, por ausência de motivação probatória nas conclusões de facto, nos termos do disposto no artigo
374º, nº 2, do Código de Processo Penal (CPP);
b) é nula, ainda, por violação das normas determinantes de insuficiência para a decisão de facto de contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação da prova;
c) a não prevalecer este ponto de vista, deve haver lugar à repetição da prova perante a 2ª instância por inconstitucionalidade do artigo 410º do CPP, na interpretação que tende a ilidir o erro notório perante uma motivação de facto do estilo usado no acórdão recorrido;
d) mas se tal solução não for aceite, fica então prejudicado o direito fundamental ao duplo grau de recurso em matéria de facto, o que se argui para efeitos de recurso para o Tribunal Constitucional, pondo-se em crise a interpretação do citado preceito que veda o remédio proposto e a reforma da sentença;
e) em todo o caso, perante o vício de raciocínio estruturante da decisão recorrida, é justo e possível reduzir a matéria de facto, de modo a expurgá-la dos vícios correspondentes ao exercício de escola que ela manifestamente é;
f) nestas circunstâncias e na pior das hipóteses o recorrente só pode ser condenado por um crime de homicídio por negligência, sendo absolvido dos demais.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 15 de Janeiro de 1998, viria, no entanto, a negar provimento ao recurso, em tudo confirmando a decisão recorrida.
É deste aresto que o arguido vem, agora, interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Pretende ver apreciada a constitucionalidade das normas dos artigos 410º e 433º do CPP que, em seu entender (subentende-se) terão sido aplicadas na decisão recorrida em violação ao disposto ao artigo 32º, nºs. 1 e
2, da Constituição da República (CR) - questão oportunamente suscitada nas alegações de recurso para aquele Supremo Tribunal.
2.- De acordo com o preceituado no artigo 433º do CPP, 'sem prejuízo do disposto no artigo 410º, nºs. 2 e 3, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito'.
Ora, por sua vez, o artigo 410º, após, no seu nº 1, preceituar que sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida, dispõe nos números seguintes:
'2.- Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum;
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3.- O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal do recurso a matéria de direito, a insobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.'
3. - Delimitado o objecto do recurso a estas normas (à interpretação que delas o Supremo fez, aplicando-as), foi proferida decisão sumária, negando provimento ao recurso.
O recorrente, no entanto, inconformado, reclamou para a conferência, nos termos do nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, simultaneamente recorrendo para o plenário do Tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 79º-D do mesmo diploma.
Não foi este último recurso admitido, nos termos do despacho de fls. 610 e segs. dos autos.
O Tribunal, no entanto, por acórdão nº 487/98, tirado pelo pleno da secção, dada a falta de unanimidade verificada na conferência, deliberou mandar prosseguir o recurso, por se ter entendido não se tratar de uma questão simples.
4. - Notificados para alegarem, oportunamente o fizeram, recorrente e recorrido, aquele propugnando o provimento do recurso e remetendo, essencialmente, para as considerações tecidas na reclamação para a conferência e este último defendendo o julgamento da improcedência do recurso, em conformidade com a orientação jurisprudencial que o acórdão nº 322/93 deste Tribunal corporiza.
Cumpre, agora, apreciar e decidir.
II
1.- A convocada problemática de inconstitucionalidade tem dado origem a numerosos arestos que - maioritariamente embora - não a têm considerado procedente. A mero título exemplificativo, citem-se os acórdãos nºs. 399/94,
358/95 e 705/97, entre os que se mantêm inéditos, ou os nºs. 322/93, 170/94,
171/94 e 1164/96, estes já publicados, no Diário da República, II Série, de 29 de Outubro de 1993, 6 e 19 de Julho de 1994 e 14 de Março de 1997, respectivamente, sustentando a não inconstitucionalidade das normas em referência mediante uma linha argumentativa comum, não se vendo razão para, neste momento, dela nos afastarmos.
Decorre dos impugnados preceitos que o STJ, enquanto tribunal de recurso, só conhece, em regra, matéria de direito, restringindo-se os seus poderes de cognição em matéria de facto a verificar, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, se há suficiência, ou não, da matéria de facto, para a decisão, se existe contradição insanável de fundamentação ou se foi cometido erro notório na apreciação da prova, acrescendo, ainda, no elenco dos fundamentos de recurso, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.
Deste modo, o recurso penal interposto para o STJ do acórdão final do tribunal colectivo configura-se como recurso de revista ampliada, em que o Supremo é chamado a reapreciar a decisão da 1ª instância, por via de regra, apenas no respeitante à matéria de direito, se bem que, quanto à de facto, possa intervir nos casos contemplados nos nºs. 2 e 3 do artigo 410º.
2. - Escreveu-se, a este propósito, na decisão sumária proferida nos autos:
'1.- Diz-nos o texto constitucional - nº 1 do seu artigo 32º - que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
Será essa exigência da 'constituição processual criminal' respeitada pela norma do artigo 433º, conjugada com os dos nºs. 2 e 3 do artigo 410º?
No acórdão mais recente que se elencou - nº 1164/96 - ponderou-se, a dado passo, em termos que interessa, aqui, transcrever e assumir:
'[...] o Tribunal Constitucional tem entendido, firmemente, que uma das garantias de defesa a que o nº 1 do artigo 32º se refere é, justamente, o direito ao recurso contra sentenças penais condenatórias, valendo, em regra, no processo criminal, como princípio, o direito a um duplo grau de jurisdição.
No domínio da matéria de facto há, porém, razões de practibilidade e outras, decorrentes da exigência da imediação da prova, justificativas de não poder o recurso penal assumir aí o mesmo âmbito e a mesma dimensão que em matéria de direito, bastando pensar que, nesse capítulo, uma identidade de regime conduziria, no limite, a ter de consentir-se sempre a possibilidade de uma repetição integral do julgamento perante o tribunal colectivo.
No acórdão nº 401/91 deste Tribunal (publicado no Diário da República, 1ª Série-A, de 8 de Janeiro de 1992), ao declarar-se a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 665º do CPP de 1929, na interpretação que lhe foi dada pelo assento do STJ de 29 de Junho de 1934, teve-se em conta essa ponderação ao consignar-se expressamente que a inconstitucionalização desse regime não podia ser entendida 'como significando que outra solução que não seja a repetição da prova em audiência perante as Relações está em conflito com a Constituição'. E acrescentou-se: 'É que, entre o sistema em questão [...], e o que ordenasse a repetição da prova em audiência perante o tribunal de recurso, outros há certamente [...] que não porão em causa as garantias de defesa que o processo criminal deve assegurar, por força do citado preceito constitucional'.
Ora, o sistema de revista ampliada, instituído pelo CPP de 1987, deve considerar-se como um desses sistemas constitucionalmente compatíveis, pois que protege o arguido dos perigos de um erro de julgamento (designadamente, de erro grosseiro na decisão da matéria de facto), assim o defendendo do risco de uma sentença injusta.
Estando em causa o recurso para o STJ dos acórdãos finais dos tribunais colectivos, há-de, desde logo, assinalar-se que o tribunal colectivo, tendo em conta as regras do seu próprio funcionamento e as que presidem à audiência de julgamento, constitui, ele próprio, uma primeira garantia no julgamento da matéria de facto.'
E, mais adiante, após se registar a efectiva colegialidade do tribunal colectivo, a garantia do contraditório e a obtenção da imediação, tanto quanto possível, no regime vigente, reconheceu-se existir protecção constitucionalmente adequada, defendendo os cidadãos, tanto quanto é legítimo extrair dos princípios, da prolação de sentenças injustas, fazendo-se notar que a previsão de um mecanismo de reapreciação dos factos não deve ser encarada senão como válvula de segurança (cfr. J.N.Cunha Rodrigues, 'Recursos' in - Jornadas de Direito Penal - O Novo Código de Processo Penal, Coimbra, 1992, pág.
393), sem esquecer que, por outro lado, o STJ poderá decretar a anulação da decisão recorrida ou determinar o reenvio do processo para novo julgamento quando apure a existência de insuficiência da matéria de facto, contradição insanável da fundamentação, ou erro notório na apreciação da prova (cfr., quanto ao reenvio, o disposto nos artigos 426º e 436º do CPP).
Entende-se, a esta luz, ser constitucionalmente suficiente o regime de reexame da matéria de facto que as normas sindicandas prevêm.
Diferentemente do regime do anterior Código - de 1929 - considera-se que, no actual, se abre via idónea para controlo de reapreciação de todo o processo silogístico em que a decisão se baseou, seja através dos dados constantes do processo, de pertinência assumida pela peça acusatória, seja mediante a fiabilidade das regras ou máximas de experiência que o julgador, na sequência natural da sua formação profissional como intérprete-aplicador, tomará em consideração, nos limites da sua irredutível margem de apreciação. Como se observou no citado acórdão nº 171/94 (para onde igualmente se remete no tocante
à diferenciada perspectiva ontológica dos regimes dos Códigos de 1929 e 1987) esta intervenção é muito mais relevante do que, à primeira vista, poderia entender-se: 'o juiz utiliza para a fixação dos factos e, bem assim, para a aplicação da lei aos factos fixados, os juízos que foi obtendo através da geral experiência da vida ou das regras da ciência, arte ou técnica por si adquiridas, o que se compatibiliza com o âmbito do recurso de revista alargada em causa'.
2.- A questão de constitucionalidade a que os autos respeitam foi apreciada e objecto de decisão no recente acórdão nº 573/98, tirado em plenário, no dia 13 de Outubro do ano em curso, ao abrigo do disposto no artigo
79º-D da Lei do Tribunal Constitucional, onde se decidiu não julgar inconstitucionais as normas resultantes da conjugação do artigo 433º do Código de Processo Penal com o corpo do nº 2 do artigo 410º do mesmo diploma legal, na medida em que limitam os fundamentos do recurso a que 'o único resulta do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum', o qual já foi reiterado no acórdão, igualmente tirado em plenário, nº 640/98, de
10 do corrente.
III
Assim sendo, em aplicação da jurisprudência firmada naquele acórdão nº 573/98, cuja fundamentação se reitera em globo, decide-se negar provimento ao recurso. Lisboa, 11 de Novembro de 1998 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida