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Processo nº 401/97
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A. R., J. T., J. S., V. M., J. O., F. A., A. E., A. Rs., R. M., A. A., L. M., J. P., V. V. e J. C., todos com os sinais identificadores dos autos, árbitros de futebol da Federação Portuguesa de Futebol, de diferentes categorias, vieram apresentar reclamação perante este Tribunal Constitucional,
'para os efeitos do artigo 76º nº 4 da Lei nº 28/82, de 16 de Novembro', do acórdão do Conselho de Justiça da Federação Portuguesa de Futebol, de 10 de Setembro de 1996, que não admitiu o recurso de constitucionalidade por eles interposto com o seguinte fundamento:
'De acordo com o estabelecido no nº 2 do mesmo preceito (artigo 70º da citada Lei nº 28/82), o recurso só será admissível se a decisão recorrida não admitir recurso ordinário ou por já haverem sido esgotados todos os que no caso couberem. Assim sendo, não há recurso para o Tribunal Constitucional. Antes do mais, porque o recurso só é admissível relativamente a decisões dos Tribunais - nº 1 do referido artigo 70º. Depois, porque se se considerar o acórdão recorrido como uma decisão jurisdicional, dela cabe recurso para os tribunais públicos (artigo 25º da Lei de Bases do Sistema Desportivo). Ou seja, não foram ainda esgotados os recursos legalmente previstos'
2. No requerimento de reclamação invocam os recorrentes, no essencial, que 'nos termos desses Estatutos da Federação Portuguesa de Futebol
(FPF), o Conselho de Justiça dessa mesma Federação decide, em última instância, os processos disciplinares instaurados no seio dessa Federação desportiva e apreciados, em 1ª instância, pelo Conselho de Disciplina da mesma FPF', entendendo que, no caso concreto, 'não é passível de recurso para o Tribunal Administrativo as decisões desse órgão federativo, já que as questões em causa em processo como os dos autos em epígrafe (punições desportivas a árbitros de futebol derivadas do não cumprimento dos seus deveres relacionados com a execução das suas funções de juízes em campos desportivos) são puramente desportivas'.
E alongam-se nas seguintes considerações nucleares:
'De acordo com o artigo 25º nºs 1 e 2 da Lei de Bases do Sistema Desportivo (Lei nº 1/90 de 13.1.90),
'1. Sem prejuízo do disposto no número seguinte, as decisões e deliberações definitivas das entidades que integram o associativismo desportivo são impugnáveis, nos termos gerais de direito.
2. As decisões e deliberações sobre questões estritamente desportivas que tenham por fundamento a violação de normas de natureza técnica ou de carácter disciplinar não são impugnáveis nem susceptíveis de recurso fora das instâncias competentes na ordem desportiva'. Deste modo,
13 das decisões da FPF, proferidas pelo seu órgão disciplinar máximo - que é o Conselho de Justiça - não é possível recorrer em relação à
'questão de fundo' que esteja em causa, visto que
14 desde o dia 1.9.1995 a FPF goza do estatuto de UPD (utilidade pública administrativa), já que, através do Despacho 56/95, de 1.9.95, do Primeiro-Ministro (Diário da República II Série, nº 213, de 14.9.95), tal estatuto lhe foi concedido e, assim, a partir de então, a 'justiça desportiva' da FPF ficou sujeita às regras do artigo 25º da referida Lei de Bases; e de modo tal que
15 As normas do Regulamento Disciplinar da FPF são normas 'públicas', tal como lapidarmente foi concluído e decidido pelo douto Acórdão do Tribunal Constitucional (Acórdão nº 730/95, de 14.12.95, publicado no Diário da República, II Série, de 6.2.96, pág. 1854 a 1864); e,
16 por essa razão, (e tal como do mesmo Acórdão resulta) são directamente impugnáveis, em sede de apreciação da sua constitucionalidade e, por via disso,
é directamente apreciável a constitucionalidade - designadamente pela via do recurso - de certa e determinada norma de Estatutos e regulamentos da FPF.
17 E assim sendo, não importa que a FPF - ou qualquer dos seus órgãos, jurisdicionais ou não - não seja ou não tenha a natureza de um TRIBUNAL, para que se possa concluir que não é passível de recurso para o Tribunal Constitucional a legalidade de certa e determinada norma do Estatuto e Regulamento da Federação Portuguesa de Futebol, que porventura tenha sido erradamente ou erroneamente aplicada.
18 Com efeito, se assim se entendesse, as decisões dos órgãos jurisdicionais da FPF
- e das federações desportivas em geral -, quando tratassem de 'QUESTÕES ESTRITAMENTE DESPORTIVAS' nunca eram passíveis de apreciação em sede de análise da sua constitucionalidade, já que essas decisões nunca poderiam ser apreciadas pelos tribunais propriamente ditos (se o pedido de recurso neles fosse apresentado de imediato seria rejeitado 'in limite')'.
3. No seu visto, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de que parece 'claramente improcedente' a reclamação, 'desde logo por não se mostrarem esgotados os 'recursos ordinários passíveis' - pressuposto essencial ao tipo de recurso de fiscalização concreta interposto'.
E acrescenta-se no Parecer:
'Na verdade - e face ao disposto no nº 1 do artº 25º da Lei nº 1/90, de 13 de Janeiro - a regra é serem impugnáveis, nos termos gerais de direito, as decisões e deliberações definitivasdas entidades que integram o associativismo desportivo. A única excepção, decorrente do preceituado no nº 2 daquele artigo, reporta-se a decisões sobre 'questões estritamente desportivas', reportadas à violação de normas de natureza técnica ou de carácter disciplinar. Ora, é evidente que a questão de inconstitucionalidade suscitada, referente à norma do art. 129º, nº 6, do Regulamento Disciplinar da FPF, interpretada em termos de ser exigível ao arguido, em processo disciplinar, o pagamento de despesas decorrentes da inquirição, na área de outra associação distrital, de testemunhas por ele arroladas, não é subsumível à previsão constante do citado nº 2 do art. 25º. Não está, por um lado, obviamente em causa a apreciação de uma violação de normas de natureza técnico-desportiva; e, por outro lado, embora a referida questão de inconstitucionalidade apareça inserida no âmbito de um processo disciplinar, não constitui - ela mesma - uma decisão de carácter disciplinar, mas uma questão que, aliás na perspectiva do próprio reclamante, tem a ver essencialmente com a problemática do direito de acesso à justiça e das garantias de audiência e defesa do arguido no âmbito do processo disciplinar. Cumpria, pois, ao ora reclamante ter esgotado os recursos ordinários possíveis, nos termos do nº 1 do artigo 25º da citada Lei nº 1/90'.
4. Vistos os autos, cumpre decidir.
Aos recorrentes foram instaurados no âmbito da Federação Portuguesa de Futebol, doravante F.P.F., processos disciplinares relativos à época desportiva de 1995/96 e todos eles vieram interpor recurso para a 1ª secção do Conselho de Justiça daquela Federação da decisão proferida no âmbito do Conselho de Disciplina, segundo a qual teriam de depositar determinada importância em dinheiro para 'custear as despesas prováveis com a deslocação do Instrutor' ou
'a custear 'as respectivas despesas' (em outros casos fala-se em preparo para despesas).
Nesse recurso debateram os recorrentes, entre outras, a 'questão da incompetência material do Conselho de Disciplina' e a questão do pagamento de despesas, suscitando nesta sede 'a inconstitucionalidade do artigo 129º, nº 6,
2ª parte do Regulamento Disciplinar da FPF'.
A dita 1ª Secção do Conselho de Justiça da F.P.F., por acórdão de 26 de Janeiro de 1996, julgou improcedentes todos os recursos dos árbitros, debruçando-se sobre aquela matéria de inconstitucionalidade, e, decidido um requerimento a 'pedir esclarecimento e arguir a nulidade' daquele acórdão, vieram os mesmos recorrentes interpor recurso para o Tribunal Constitucional,
'quanto à questão da CONSTITUCIONALIDADE da referida disposição regulamentar' (o citado artigo 129º, nº 6), dizendo na parte final do respectivo requerimento:
'- o recurso é interposto para efeitos do disposto no artigo 70º nº 1 alínea b) da mesma Lei, ou seja, com fundamento na APLICAÇÃO de normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo, sendo que
- essa inconstitucionalidade foi suscitada no recurso interposto para o Conselho de Justiça da FPF, que na petição inicial quer na arguição de nulidades)
- a norma indevidamente aplicada é o já referido artigo 129º nº 6 do Regulamento Disciplinar da FPF (aprovado pela assembleia geral da FPF, de 18.8.84 com as alterações aprovadas pela assembleia geral de 4.8.90)'
Seguiu-se um despacho do Relator que com dúvidas admitiu esse recurso, 'a subir nos próprios autos com efeito meramente devolutivo', mas, havendo reclamação do despacho, quanto a este efeito, 'para a CONFERÊNCIA DO CONSELHO DE JUSTIÇA', foi então proferido o acórdão ora reclamado e atrás transcrito.
5. Sabido o tipo de recurso de constitucionalidade de que pretendem servir-se os recorrentes e ora reclamantes - fundado na alínea b), do nº 1, do artigo 70º da Lei nº 28/82, correspondendo à alínea b), do nº 1, do artigo 280º da Constituição, versão vigente - e suposto que o acórdão recorrido (da 1ª Secção do Conselho de Justiça da F.P.F.) é uma decisão que se deve incluir nas
'decisões dos tribunais' de que falam aquelas normas da Lei nº 28/82 e da Constituição, questão que não é necessário estar a apreciar, o punctum saliens está em saber se se verifica ou não o requisito específico da prévia exaustão de todos os recursos 'que no caso cabiam' (nº 2 do artigo 70º), pois tanto basta para se encontrar a solução da causa.
Ora, tudo indica que tal requisito não se pode dar como verificado, na esteira da posição assumida pelo Ministério Público no seu Parecer.
Com efeito, se é manifesto que os recorrentes e ora reclamantes suscitaram durante o processo a questão de inconstitucionalidade da citada norma do artigo 129º, nº 6, pois tal questão constitui objecto de recurso por eles interposto para a 1ª Secção do Conselho de Justiça da F.P.F., a verdade é que não se esgotaram previamente in casu todos os recursos le galmente previstos.
Na realidade, em matéria de 'Justiça desportiva', o nº1 do artigo
25º da Lei de Bases do Sistema Desportivo, atrás identificada, estabelece a regra geral: as decisões e deliberações definitivas das entidades que integram o associativismo desportivo são impugnáveis, nos termos gerais de direito. A excepção vem consagrada logo no nº2 do preceito: não são impugnáveis nem susceptíveis de recurso fora das instâncias competentes na ordem desportiva as decisões e deliberações sobre questões estritamente desportivas, isto é as que tenham por fundamento a violação de normas de natureza técnica ou de carácter disciplinar.
No caso, a norma em causa é a do nº6 do artigo 129º do Regulamento Disciplinar da FPF, norma esta que faz depender a audiência de testemunhas arroladas pelo arguido de um processo disciplinar em outro local que não seja a sede da FPF do prévio pagamento pelo arguido das despesas ocasionadas com a deslocação do instrutor.
Ora, é manifesto que, respeitando embora a um processo disciplinar, esta norma não se reporta a qualquer questão 'estritamente desportiva' pois nem visa sancionar qualquer violação de norma de natureza técnica nem tem carácter disciplinar, uma vez que não se assume como «sanção» para o arguido. Com ela apenas se pretende garantir que o arguido tenha mais facilidade em se defender pela audição das testemunhas que lhe interessa indicar na sede distrital das associações de futebol, embora com a contrapartida de ter de suportar, se for ele a requerer tal diligência, os custos da deslocação do instrutor.
Assim, independentemente de se apurar qual o modelo de funcionamento da entidade que proferiu a decisão recorrida (ou só o Pleno ou este e a 1ª e 2ª Secções) - questão que não se torna necessário analisar, neste momento -, é patente que no entendimento do Conselho de Justiça da FPF não está em causa neste recurso uma questão estritamente desportiva, pelo que, à face da Lei de Bases do Sistema Desportivo, da decisão proferida havia recurso, nos termos gerais de direito, não estando assim esgotados os meios de recurso previstos, pelo que, ao recurso de constitucionalidade interposto pelos reclamantes falta a verificação de um dos pressupostos legais da sua admissibilidade.
Tanto bastará para que se não possa tomar conhecimento do recurso interposto, o que significa que a presente reclamação deve ser indeferida, mantendo-se a decisão reclamada.
6. Termos em que, DECIDINDO, indefere-se a presente reclamação e condenam-se os reclamantes nas custas, com a taxa de justiça fixada em dez unidades de conta.
Lisboa, 1 de Julho de 1997 Guilherme da Fonseca Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Maria dos Prazeres Beleza Luis Nunes de Almeida