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Processo n.º 419/98 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. J..., no decurso da audiência de julgamento, a que foi submetido na 10ª Vara Criminal da comarca de Lisboa, em 8 de Abril de 1997, arguiu a nulidade que, em seu entender, fora cometida quando não se expediram duas cartas rogatórias para Espanha, tal como tinha pedido na contestação. E requereu que se ordenasse tal expedição. Tendo o pedido de expedição de cartas rogatórias sido indeferido por despacho ditado para a acta, deste e 'da [decisão] que não apreciou a existência da invocada nulidade', interpôs o arguido recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que foi logo admitido 'nos precisos termos em que foi [interposto], a subir [...] com o que vier a ser interposto da decisão final' - recurso que o arguido motivou oportunamente. Proferido o acórdão da 1ª instância, que o condenou na pena de 13 anos e 6 meses de prisão pela prática de um crime de tráfico agravado de estupefacientes, previsto e punível pelos artigos 21º, n.º 1, e 24º, alínea c), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, dele recorreu também o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 4 de Dezembro de 1997, negou provimento a este último recurso (scilicet, ao recurso interposto do decisão condenatória), mas não se pronunciou sobre o que havia sido interposto na acta de julgamento da 1ª instância. Arguiu, então, o recorrente a irregularidade que, em sua opinião, o Supremo Tribunal de Justiça cometera quando 'ignorou' o recurso por último referido. Pediu, na oportunidade, que se anulasse o acórdão de 4 de Dezembro de 1997,
'devendo, em conferência, antecedendo o julgamento do recurso da decisão final, lavrar-se acórdão sobre o referido recurso ditado para a acta'. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 26 de Fevereiro de 1998, indeferiu a reclamação assim apresentada, com fundamento em que se não verifica 'qualquer irregularidade ou omissão'
2. O arguido interpôs, então, recurso para este Tribunal, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade das seguintes normas:
(a). a do artigo 31º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 15 de Janeiro, interpretada no sentido de que 'a sua aplicação pressupõe uma análise da culpa e da personalidade do agente';
(b). a dos artigos 54º, n.º 3, do citado Decreto-Lei n.º 15/93 e 215º, n.º 3, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que 'não releva para efeitos de contagem dos prazos de prisão preventiva o tempo de detenção à ordem de um processo de extradição, requerido nos autos em que o arguido veio a ser condenado a uma pena de prisão';
(c). a do artigo 71º do Código Penal, interpretada no sentido de que 'a decisão condenatória não tem que determinar a medida exacta da pena que o arguido tem de efectivamente cumprir, efectuados os descontos impostos pelos artigos 80º e 82º do Código Penal';
(d). a do artigo 433º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que 'está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça a apreciação de um recurso interlocutório que tem por objecto a arguição de uma nulidade, tendo sido interposto recurso da decisão final para este tribunal'. Nas alegações apresentadas neste Tribunal, formulou o recorrente as seguintes conclusões:
1. Quanto à norma do artigo 31º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 15 de Janeiro:
(a). O acórdão do tribunal colectivo face às diversas informações recolhidas durante o inquérito considerou provado que o arguido colaborou na descoberta e captura de outros responsáveis, o que nos termos do artigo 31º do Decreto-Lei n.º 15/93 permite a atenuação especial da pena;
(b). A aplicação da atenuante especial prevista naquele diploma não pressupõe a análise da culpa e da responsabilidade moral do agente;
(c). A interpretação restritiva de uma norma que estipula uma atenuação especial da pena equivale a um inadmissível alargamento do espaço incriminador da norma penal;
(d). A norma do artigo 31º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, é inconstitucional no entendimento que lhe foi dado pelos acórdãos recorridos de que a sua aplicação pressupõe uma análise da culpa e da personalidade do agente, o que contraria o princípio da legalidade previsto no artigo 29º da Constituição da República Portuguesa.
2. Quanto à norma dos artigos 54º, n.º 3, do dito Decreto-Lei n.º 15/93 e 215º, n.º 3, do Código de Processo Penal:
(a). A detenção para extradição é tal como a prisão preventiva, uma situação de restrição da liberdade do indivíduo sem qualquer sentença judicial condenatória, pelo que também está sujeita aos prazos máximos de duração fixados no artigo
215º do Código de Processo Penal;
(b). É inconstitucional a norma constante do artigo 54º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e do artigo 215º, n.º 3, do Código de Processo Penal na interpretação dada pelos acórdãos recorridos de que não releva para efeitos de contagem dos prazos de prisão preventiva o tempo de detenção à ordem de um processo de extradição, requerido nos autos em que o arguido veio a ser condenado em pena de prisão, violando-se assim o disposto nos artigos 27º, n.º
1, 28º, n.º 4, e 30º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
3. Quanto à norma do artigo 71º do Código Penal:
(a). O acórdão do tribunal colectivo não determinou, como lhe competia, qual o tempo de prisão que o arguido tem efectivamente de cumprir;
(b). Com efeito, o acórdão condenatório determinou que se descontasse na pena a cumprir pelo arguido o tempo que este esteve a aguardar extradição de Espanha, quando não existem nos autos quaisquer elementos com base nos quais se possa determinar com exactidão aquele período;
(c). Os acórdãos em recurso interpretaram o artigo 71º do Código Penal como se o disposto no artigo 30º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa não fosse um dos limites à determinação da pena que o arguido tem de cumprir;
(d). É inconstitucional a norma do artigo 71º do Código Penal na interpretação que lhe foi dada pelos acórdãos recorridos, segundo a qual a decisão condenatória não tem que determinar a medida exacta da pena que o arguido tem de efectivamente cumprir, efectuados os descontos impostos pelos artigos 80º e 82º do Código Penal, ficando indefinida a duração da pena, contrariando-se, assim, o disposto no artigo 30º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
4. Quanto à norma do artigo 433º do Código de Processo Penal:
(a). Em audiência de julgamento realizada perante a 10ª Vara Criminal de Lisboa foi arguida [...] a nulidade resultante da omissão de duas diligências de prova, requeridas pelo arguido na sua contestação e admitidas por despacho judicial
[...];
(b). Tendo aquele tribunal proferido despacho que considerou improcedente a arguida nulidade, foi interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, a subir nos próprios autos com o que viesse a ser interposto da decisão final, invocando-se a nulidade desse despacho, sendo o mesmo admitido;
(c). O Supremo Tribunal de Justiça proferiu acórdão em que apreciou o recurso da decisão final, não se pronunciando sobre o recurso interlocutório, que tinha por objecto a arguição de nulidades;
(d). Em virtude desta omissão de pronúncia o referido acórdão foi objecto de reclamação, tendo sido proferido novo acórdão em que o Supremo Tribunal de Justiça manteve a posição de não apreciação do referido recurso, considerando que a arguição de nulidades constituía matéria de produção de prova na 1ª instância, que se encontra vedada do seu poder cognitivo, nos termos dos artigos
410º e 433º do Código de Processo Penal;
(e). É inconstitucional a norma do artigo 433º do Código de Processo Penal quando interpretada no sentido de que está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça a apreciação de um recurso interlocutório que tem por objecto a arguição de uma nulidade, tendo sido interposto recurso da decisão final para este tribunal, contrariando o disposto no artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. O Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal concluiu assim a sua alegação:
1º. O acórdão recorrido não interpretou e aplicou, no caso dos autos, a norma constante do artigo 71º do Código Penal com o sentido inconstitucional pretendido pelo recorrente - traduzido em cominar ao arguido uma condenação em pena indeterminada - pelo que se não deve, nesta medida, conhecer do recurso interposto.
2º. Não tendo ainda decorrido - mesmo que se englobasse na prisão preventiva o tempo de detenção sofrido pelo arguido no âmbito do processo de extradição que correu termos perante a justiça espanhola - os prazos máximos de prisão preventiva, decorrentes do preceituado nos artigos 54º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 15/93 e 215º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, não há qualquer utilidade em, neste momento processual, apreciar a questão suscitada quanto a tais normas, já que, em nenhuma circunstância, seria de considerar extinta a medida coactiva que o arguido presentemente sofre.
3º. Na verdade, se o Tribunal julgar improcedente o recurso interposto, relativamente às demais questões de constitucionalidade suscitadas, tal determinará o trânsito em julgado do acórdão condenatório proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, num momento em que o recorrente apenas cumpriu - mesmo incluída toda a detenção sofrida em Espanha - menos de 3 anos de prisão preventiva, o que inutiliza a apreciação da questão jurídico-constitucional suscitada, com exclusiva relevância para uma eventual aplicação do estatuído no artigo 217º do Código de Processo Penal.
4º. Fundando-se a decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, na parte relativa ao não conhecimento do recurso interlocutório interposto no decurso da audiência final - e em que se invocava o cometimento de uma nulidade de processo
- na invocação de uma norma - a do artigo 784º do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente no processo penal - cuja inconstitucionalidade não foi suscitada pelo recorrente e cuja invocação e aplicação é suficiente para determinar a preclusão do referido recurso, não há utilidade no conhecimento da questão de constitucionalidade, exclusivamente reportada à norma do artigo 433º do Código de Processo Penal e à delimitação dos poderes cognitivos do Supremo tribunal de Justiça.
5º. O carácter instrumental dos recursos de constitucionalidade determina que se não deve conhecer das duas questões antecedentemente referenciadas.
6º. Não é inconstitucional a interpretação da norma do artigo 31º do Decreto-Lei n.º 15/93, em termos de considerar ínsita a valoração da culpa e da personalidade do agente na apreciação do relevo que a atenuação - emergente dos factos ali previstos - pode merecer, pelo que, nesta medida, deve o recurso ser julgado improcedente. Ouvido o recorrente sobre a questão prévia do não conhecimento, em parte, do objecto do recurso, veio ele dizer, em síntese, o seguinte:
1 - A utilidade do recurso no que respeita à apreciação da inconstitucionalidade das normas dos artsº. 54º nº 3, do D.L 15/93 e 215º nº 3 do C.P.P. está dependente da procedência das outras questões suscitadas, as quais necessariamente impedirão o trânsito em julgado do acórdão condenatório.
2 - É manifesto que dos acórdãos recorridos não consta a medida exacta da pena de prisão - efectuados os descontos impostos pelos artºs 80º e 82º do C. Penal - que o arguido tem que cumprir, o que resulta de uma interpretação inconstitucional da norma do art. 71º do C. Penal, segundo a qual o arguido pode se4r sujeito a uma pena de prisão de duração indefenida ou a calcular posteriormente, já na execução da pena.
3 - É na incompetência funcional do S.T.J., resultante da interpretação inconstitucional do art. 433º do C.P.P., que se alicerça a decisão de não apreciação do recurso interlocutório. Todos os outros argumentos constantes do acórdão recorrido, entre os quais se inclui o disposto nos nºs 1 e 2 do art.
748º do C.P.Civil, são indissociáveis da ideia de que o S.T.J. é funcionalmente incompetente para apreciar o recurso em causa, por via do disposto no art. 433º do C.P.P..
4- Procedendo este recurso, considerando-se inconstitucional a interpretação da norma do art. 433º do C.P.P., segundo a qual não cabe nos poderes do S.T.J. a apreciação de recurso interlocutório baseado na violação da lei de processo, terá aquele Alto Tribunal que reformular a sua posição, considerando-se competente para apreciar o objecto do recurso interlocutório em causa, e como tal o relator competente desencadeará o mecanismo previsto no nº 2 do art. 748º do C.P.Civil, caso entenda que tal disposição é subsidiariamente aplicável ao Processo Penal, pelo que, o recurso interposto mantém toda a utilidade, preenchendo todos os pressupostos de admissibilidade, não procedendo as questões prévias suscitadas pelo M.P..
3. Cumpre decidir. II. Fundamentos:
4. Nota introdutória: Trata-se de referir que, no discurso do recorrente, parece aflorar a ideia de que o acórdão da 1ª instância também aqui está sob recurso. Tal não sucede, porém. O acórdão condenatório proferido na 1ª instância foi, de facto, substituído pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (de 4 de Dezembro de 1997), que negou provimento ao recurso que daquele foi interposto. Não subsistindo na ordem jurídica, não pode a decisão da 1ª instância ser impugnada perante este Tribunal.
5. A questão prévia do não conhecimento de parte do objecto do recurso:
5. 1. Quanto aos artigos 54º, n.º 3, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, e 215º, n.º 3, do Código de Processo Penal: Sustenta o recorrente que o acórdão recorrido interpretou os artigo 54º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e 215º, n.º 3, do Código de Processo Penal, em termos de entender que 'não releva para efeitos de contagem dos prazos de prisão preventiva o tempo de detenção à ordem de um processo de extradição, requerido nos autos em que o arguido veio a ser condenado em pena de prisão'. Ora - diz -, essa interpretação viola o disposto nos artigos 27º, n.º 1, 28º, n.º 4, e 30º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. O acórdão recorrido interpretou, de facto, os referidos normativos nos termos indicados. Efectivamente, ele decidiu que 'o tempo de prisão preventiva sofrida pelo arguido em Espanha à ordem do processo de extradição e regido pela lei espanhola, embora tenha de ser descontado no cômputo da sua pena, não deve sê-lo para o cálculo da prisão preventiva, a determinar segundo as leis processuais portuguesas'; e concluiu que uma tal interpretação não é inconstitucional. Entende, porém, o Ministério Público que não deve tomar-se conhecimento do recurso, na parte em que ele tem por objecto a questão de constitucionalidade destas normas.
É que, o arguido esteve detido em Espanha, num primeiro momento, de 23 de Março a 5 de Abril de 1995 (13 dias) e, num segundo momento, de 14 de Agosto de 1995 até 3 de Janeiro de 1997, data em que foi extraditado; e, de então para cá, encontra-se preso preventivamente à ordem deste processo. Por isso, mesmo que as referidas normas devam ser interpretadas em termos de dever contar-se como prisão preventiva todo o tempo de detenção que o arguido sofreu em Espanha no âmbito do processo de extradição, se o Tribunal julgar improcedentes as outras questões de constitucionalidade que constituem objecto do recurso (ou delas não tomar conhecimento), a decisão condenatória transitará em julgado antes de decorrerem os prazos máximos de prisão preventiva, que, devido à interposição do presente recurso, atingem, no caso, um total de 4 anos, acrescidos de 6 meses. Ou seja: o trânsito em julgado do acórdão condenatório proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça ocorrerá 'num momento em que o recorrente apenas cumpriu - mesmo incluída toda a detenção sofrida em Espanha - menos de 3 anos de prisão preventiva'. Sendo isto assim, é claro que ao Supremo Tribunal de Justiça não se colocou a questão de saber se deveria considerar-se extinta a prisão preventiva do arguido. Essa questão continua a não se colocar, agora. E também não se vê que venha a colocar-se no processo. Decorre daqui que o julgamento de constitucionalidade feito no acórdão recorrido, tendo por objecto os mencionados artigos 54º, n.º 3, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, e 215º, n.º 3, do Código de Processo Penal, respeita a uma questão que, no caso, se não colocava - a questão da extinção da prisão preventiva, que impusesse a restituição do arguido à liberdade (cf. o citado artigo 217º do citado Código). Tal julgamento surge, assim, nesse aresto, como um obiter dictum, insusceptível, por isso, de abrir a via do recurso de constitucionalidade. Mas, se assim se não entender, haverá, ao menos, de reconhecer-se que, decidir a mencionada questão de constitucionalidade, significaria - como sublinha o Ministério Público - ir julgar uma pura questão académica, pois o julgamento que o Tribunal viesse a proferir, ainda que fosse no sentido da inconstitucionalidade, não produziria qualquer efeito útil no processo. Ora, os recursos de constitucionalidade - tem-no o Tribunal dito repetidamente - desempenham uma função instrumental, não se justificando, que deles se conheça, se a decisão a proferir não puder projectar-se utilmente sobre o julgamento do caso de que emerge o recurso. Há, assim, que atender, nesta parte, a questão prévia do não conhecimento do recurso, suscitada pelo Ministério Público.
5.2. Quanto ao artigo 71º do Código Penal: Pretende o recorrente que o acórdão recorrido interpretou este artigo 71º, como se a decisão condenatória não tivesse que 'determinar a medida exacta da pena que o arguido tem de efectivamente cumprir, efectuados os descontos impostos pelos artigos 80º e 82º do Código Penal'. E acrescenta que, ao permitir que fique 'indefinida a duração da pena', tal preceito legal contraria o disposto no artigo 30º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. Pois bem: quanto a esta norma, é, desde logo, duvidoso que o recorrente tenha suscitado, em termos processualmente adequados, a sua inconstitucionalidade, antes de proferido o acórdão sob recurso. De facto, na motivação do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o que ele disse foi que o tribunal de 1ª instância fez 'o que não é permitido pelo artigo
30º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa' (cf. conclusão 21ª). E fê-lo, porque - disse -, 'ao remeter para os documentos de folhas 1957 e1967 - os quais são ambíguos e confusos' -, esse tribunal, cujo acórdão 'não refere expressamente qual o dia e o mês a partir do qual o arguido foi detido em Espanha e ficou à ordem do processo de extradição', 'condenou o arguido a uma pena de duração ilimitada'.
Significa isto que, segundo tudo indica, o recorrente imputou à própria decisão da 1ª instância - e não ao artigo 71º do Código Penal - a violação do artigo
30º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. No fundo, do que, em verdade, se queixa é de a sentença não ter concretizado o tempo que se considera ter ele estado detido em Espanha a aguardar a extradição, para o efeito de ser descontado na pena de prisão em que foi condenado. E isso porque, à falta de tal concretização, a sentença acaba, em seu entender, por não cumprir o disposto no artigo 375º, nº 1, do Código de Processo Penal, que manda especificar a duração da pena aplicada, quando conjugado com o artigo 80º do Código Penal, que manda descontar nessa pena todo o tempo de detenção e de prisão preventiva sofrido.
O facto de o recorrente ter colocado a questão nos termos apontados explicará, de resto, que o Supremo Tribunal de Justiça, ao decidir a questão da prisão preventiva que ele sofreu em Espanha, não faça a mínima referência a uma qualquer questão de constitucionalidade, tendo por objecto o mencionado artigo
71º do Código Penal.
Suposto, porém, que o recorrente suscitou, durante o processo, uma questão de inconstitucionalidade normativa e que, ao fazê-lo, visou o artigo 71º, nº 1, do Código Penal, a verdade é que - como diz o Ministério Público - 'o acórdão recorrido não interpretou e aplicou, no caso dos autos, a norma constante do artigo 71º do Código Penal com o sentido inconstitucional pretendido pelo recorrente' - a saber: com um sentido 'traduzido em cominar ao arguido uma condenação em pena indeterminada'. De facto, a sentença da 1ª instância, que o acórdão recorrido confirmou, ao remeter-se para os documentos de folhas 1957 e 1967, condenou o arguido numa pena de duração certa e limitada (13 anos e 6 meses de prisão) e mandou descontar nela - para além de toda a prisão preventiva - a prisão que o arguido sofreu em Espanha enquanto esteve a aguardar a extradição. Pena certa, determinada - escreveu-se no acórdão n.º 43/86 e repetiu-se no acórdão n.º 549/94 (publicados no Diário da República; II série, de 15 de Maio de 1986 e de 20 de Dezembro de 1994) - 'é a pena legal, a pena prevista pelo legislador, pois esse é o modo por que se elimina o arbítrio do julgador'. Ora, a sentença fixou uma pena que, contendo-se na moldura sancionatória definida pela lei, é de duração bem definida.
Não há, pois, qualquer dúvida relativamente ao quantum da punição que foi aplicada. E também não se vê que possam gerar-se incertezas relativamente ao modo de execução dessa punição. Mas, se, na fase do cumprimento da pena, 'surgirem dúvidas efectivas e reais quanto à interpretação de tal segmento da decisão condenatória, cumprirá - como sublinha o Ministério Público - resolvê-las no âmbito do processo',
'esclarecendo e ultrapassando as que se mostrem pertinentes' (cf. artigo 474º do Código de Processo Penal). E mais: 'no caso de dúvida inultrapassável sobre se o arguido esteve preso preventivamente à ordem de processo de natureza criminal que haja decorrido perante a Justiça espanhola, haverá que imputar todo o tempo de prisão ou detenção sofrida no âmbito da extradição à condenação sofrida pelos tribunais portugueses'. E, 'se o arguido entende efectivamente que esteve sempre detido à ordem dos presentes autos - não tendo sido sujeito de nenhum processo criminal que tenha corrido perante a Justiça espanhola - deverá naturalmente requerê-lo explícita e fundadamente no processo e reagir contra a decisão que, porventura, lhe seja desfavorável'. Assim, seja porque se entenda que o recorrente não suscitou perante o Supremo Tribunal de Justiça qualquer questão de inconstitucionalidade, tendo por objecto o mencionado artigo 71º do Código Penal; seja porque, a tê-lo feito, este normativo não foi aplicado pelo acórdão recorrido com o sentido inconstitucional apontado; não se verificam os pressupostos do recurso, na parte em que ele tem por objecto tal preceito legal. Como os recursos para este Tribunal só podem ter por objecto a constitucionalidade das normas jurídicas que as decisões judiciais tenham desaplicado, com fundamento na sua inconstitucionalidade, ou que hajam aplicado, não obstante a sua inconstitucionalidade ter sido suscitada durante o processo - e não a inconstitucionalidade dessas decisões consideradas em si mesmas -, não pode conhecer-se do recurso interposto, na parte em que ele tem por objecto o mencionado artigo 71º. Há, assim, que atender, também nesta parte, a questão prévia suscitada pelo Ministério Público.
5.3. Quanto ao artigo 433º do Código de Processo Penal: O recorrente sustenta que é inconstitucional 'a norma do artigo 433º do Código de Processo Penal quando interpretada no sentido de que está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça a apreciação de um recurso interlocutório que tem por objecto a arguição de uma nulidade, tendo sido interposto recurso da decisão final para este tribunal'. Entende o Ministério Público que também não pode conhecer-se do recurso, nesta parte. Vejamos: o recorrente, na motivação do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, não suscitou a inconstitucionalidade do artigo 433º do Código de Processo Penal, na interpretação feita por esse Tribunal. Tal, porém, não constituiria obstáculo ao conhecimento do presente recurso, enquanto nele se discute essa questão de constitucionalidade.
É que, o recorrente, mal verificou que o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 4 de Dezembro de 1997, se não tinha pronunciado sobre o recurso interlocutório - é dizer: o recurso que interpusera do despacho que, na audiência de julgamento da 1ª instância, lhe indeferiu o pedido de expedição de cartas rogatórias para Espanha -, logo suscitou a inconstitucionalidade dos artigos 407º, n.º 3, e 419º, n.º 4, alínea c), do Código de Processo Penal, no pressuposto, que, no entanto, se veio a revelar infundado, de que tinham sido estes preceitos legais que tinham conduzido o Supremo Tribunal de Justiça a não emitir tal pronúncia. O Supremo Tribunal de Justiça, então, confrontado com essa arguição de nulidade, veio esclarecer, no acórdão de 26 de Fevereiro de 1998 - que julgou a reclamação apresentada pelo recorrente contra o acórdão de 4 de Dezembro de 1997 -, que essa falta de pronúncia se ficara, antes, a dever ao facto de o referido recurso
'respeitar a matéria de produção de prova na 1ª instância que se encontra vedada ao seu poder cognitivo, nos termos dos artigos 410º e 433º do Código de Processo Penal'; e que, por essa razão, esse recurso tinha sido 'interposto e admitido para tribunal que o não podia nem pode apreciar, pois o seu conhecimento é da competência da respectiva Relação'. Ao que acresce - escreveu-se ainda no acórdão acabado de citar - que o recorrente 'não indicou, no recurso da decisão final, que o recurso interlocutório continuava a ter interesse para si, como o impõe o artigo 748º do Código de Processo Civil, aplicável como legislação subsidiária ao Processo Penal, o que, por outro lado, nem sequer permitia que, neste Supremo, pudesse ser desencadeado o mecanismo do n.º 2 daquele artigo, por força da incompetência funcional do Supremo para conhecer do respectivo objecto'. Ora, neste quadro de coisas, não era exigível ao recorrente que cumprisse o ónus de suscitar, durante o processo, a inconstitucionalidade daquela norma, na interpretação adoptada; e, por isso, tem de ser dispensado do mesmo. Simplesmente, existe, segundo o Ministério Público, um motivo que retira toda a utilidade à decisão dessa questão de constitucionalidade.
É que, o Supremo Tribunal de Justiça, para concluir que era à Relação (e não a si) que cumpria conhecer do recurso interlocutório que o recorrente tinha interposto - e, assim, para justificar o não conhecimento de tal recurso - não se limitou a fazer apelo aos artigos 410º e 433º do Código de Processo Penal. Acrescentou que, por força do disposto no artigo 748º do Código de Processo Civil, aplicável como legislação subsidiária no processo penal, o recorrente tinha o ónus de, no recurso da decisão final, indicar que 'o recurso interlocutório continuava a ter interesse para si'. Assim sendo, se este Tribunal fosse conhecer da questão de constitucionalidade que tem por objecto o artigo 433º do Código de Processo Penal, e, acaso, concluísse que tal norma, na interpretação do acórdão recorrido, era inconstitucional, como o recorrente restringiu a essa norma o objecto do recurso, deixando de fora a norma do artigo 748º do Código de Processo Civil, sempre aquele acórdão - diz o Ministério Público - se haveria de manter na parte que ora importa, que é a atinente ao não conhecimento do recurso interlocutório. Em palavras do próprio Ministério Público: 'limitando o âmbito do recurso à apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 433º do Código de Processo Penal (com a referida interpretação de que não cabe nos poderes cognitivos do Supremo Tribunal de Justiça a apreciação da referida e pretensa violação da lei de processo, cometida no decurso da audiência final), o recorrente privou-o de qualquer utilidade: é que, como é óbvio, a imposição ao recorrente do ónus, resultante da aplicação subsidiária do disposto no artigo 748º do Código de Processo Civil, sempre conduziria - em termos de plena autonomia relativamente à questão suscitada quanto ao artigo 433º - ao não conhecimento do recurso interposto'. Só que - como diz o recorrente - se este Tribunal vier a julgar inconstitucional a mencionada interpretação do artigo 433º do Código de Processo Penal, terá o Supremo Tribunal de Justiça que 'reformular a sua posição, considerando-se competente para apreciar o objecto do recurso interlocutório em causa, e como tal o relator competente desencadeará o mecanismo previsto no nº 2 do artigo
748º do Código de Processo Civil, caso entenda que tal disposição é subsidiariamente aplicável no processo penal'. Ou seja: o relator convidará, então, o recorrente a dizer, no prazo de cinco dias , sob cominação de, não o fazendo, se entender que desiste do recurso interlocutório, se mantém interesse no conhecimento do mesmo. Mas, então, existe interesse processual no conhecimento do recurso, nesta parte.
Nesta parte, pois, não pode atender-se a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, antes tem que se conhecer do recurso, enquanto ele tem por objecto a mencionada interpretação do artigo 433º do Código de Processo Penal.
5.4. Concluindo este ponto: restam, assim, as questões da constitucionalidade do artigo 31º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na interpretação atrás apontada, e do artigo 433º do Código de Processo Penal, na interpretação que se indicou.
6. A questão da constitucionalidade do artigo 31º do Decreto-Lei n.º 15/93, de
22 de Janeiro: Pretende o recorrente que este artigo 31º é inconstitucional, interpretado no sentido de que 'a sua
aplicação pressupõe uma análise da culpa e da personalidade do agente'. Um tal entendimento - diz - 'contraria o princípio da legalidade previsto no artigo 29º da Constituição da República Portuguesa'. O Ministério Público, ao invés, pronuncia-se no sentido de que esta tese é
'claramente improcedente', relevando de 'uma interpretação puramente automática e mecanicista da factualidade nele [no artigo 31º] prevista, como fundamento da especial atenuação da pena'. E acrescenta que, constituindo o princípio da culpa, por imposição constitucional, o 'pano de fundo de todo o direito sancionatório - e, muito em particular, do direito penal', 'o que seria flagrantemente inconstitucional seria a interpretação e aplicação da norma questionada sem que se atentasse na culpa e na personalidade do agente, realizando uma aplicação puramente automática da fattispecie que integra tal previsão normativa'. O princípio da legalidade penal implica que os crimes e as penas sejam definidas por lei: nullum crimen, nulla poena sine lege. E reclama que a lei especifique com suficiente precisão e clareza os factos que constituem os tipos legais de crime e as penas que lhes correspondem (princípio da tipicidade), as quais não podem ser de duração indefinida ou ilimitada (princípio da proibição de sanções de duração ilimitada ou indefinida, consagrado no artigo 30º, n.º 1, da Constituição). No princípio da legalidade penal vai, pois, implicada uma ideia de determinabilidade dos tipos legais de crime, chamados como estão a cumprir uma específica função de garantia dos direitos das pessoas (maxime, do direito à liberdade e à segurança).
Os tipos legais de crime hão-de, assim, fornecer ao julgador um quadro completo
(acabado) das infracções penais e das penas que, correspondentemente, lhes são aplicáveis, a fim de que, como reclama a própria ideia de Estado de Direito, as pessoas possam ficar ao abrigo do arbítrio e da insegurança. E, desse modo, eles cumprirão também a função de estabelecer uma separação clara entre os poderes de quem legisla e os daqueles a quem cabe aplicar a lei - juiz incluído [Sobre o princípio da legalidade penal, cf., entre outros, os acórdãos nºs. 39/88, 272/92 e 574/95 (publicados, os dois primeiros, respectivamente, no Diário da República, I série, de 3 de Março de 1988, e II série, de 12 de Setembro de
1992; e o último, por publicar]. O direito penal de um Estado de Direito não se basta, porém, com o princípio da legalidade. Ele assenta também no princípio da culpa, que deriva da essencial dignidade da pessoa humana. Como se escreveu no acórdão n.º 83/95 (publicado no Diário da República, II série, de 16 de Junho de 1995), o direito penal de um Estado de Direito 'tem de edificar-se sobre o homem como ser pessoal e livre para se decidir pelo direito ou contra o direito - de um homem, por isso mesmo, responsável pelos próprios actos e responsável para estar com os outros. Há-de ser, assim, um direito penal todo ele ancorado na dignidade da pessoa humana, tendo a culpa como fundamento, limite ou legitimidade das penas (princípio da culpa) - o que, obviamente, não significa que desdenhe os fins de prevenção (geral ou especial) destas' O princípio da culpa é, assim, no Estado de Direito, co-natural à própria ideia de responsabilidade penal: não é admissível a aplicação de qualquer pena sem culpa, nem pode punir-se em medida superior à da culpa. [Sobre o princípio da culpa em matéria penal, cf. também o acórdão n.º 426/91 (publicado no Diário da República, II série, de 2 de Abril de 1998). E sobre as suas relações com o princípio da legalidade penal, cf. o citado acórdão n.º 574/95]. Expostos estas ideias, não se vê que a circunstância de o tribunal tomar em consideração a culpa do agente e a sua personalidade, para decidir se deve atenuar especialmente a pena nos termos do artigo 31º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, possa colidir com o princípio da legalidade penal: desde logo, o tribunal, para determinar a medida da pena, tem, entre o mais, que ponderar
'as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele' (cf.artigo 72º, n.º 2, do Código Penal). O mencionado artigo 31º, na interpretação atrás apontada, não é, pois, inconstitucional.
7. A questão da constitucionalidade do artigo 433º do Código de Processo Penal: Pretende o recorrente que este normativo, quando interpretado 'no sentido de que está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça a apreciação de um recurso interlocutório que tem por objecto a arguição de uma nulidade, tendo sido interposto recurso da decisão final para este tribunal', é inconstitucional, porquanto - diz - viola o artigo 32º nº 1, da Constituição, já que lhe nega 'as mais elementares garantias de defesa, incluindo o direito ao recurso'.
O recorrente não tem razão.
De facto, e desde logo, o Supremo Tribunal de Justiça não decidiu que o despacho impugnado no recurso interlocutório (scilicet, o despacho do juiz da 1ª instância que não apreciou a nulidade - que, no entender do recorrente, se terá cometido quando se não expediram as requeridas rogatórias para a Espanha - e que indeferiu o pedido, renovado, da sua expedição) era irrecorrível. Decidiu, isso sim, que, respeitando tal recurso 'a matéria de produção de prova na 1ª instância que se encontra vedado ao seu poder cognitivo', 'o seu conhecimento é da competência da respectiva Relação'. Depois - e decisivamente -, nem todas as decisões proferidas no processo penal, só porque são desfavoráveis ao arguido, têm que admitir recurso. Este - o recurso - garante-o seguramente a Constituição contra a sentença penal condenatória e contra as decisões judiciais que afectem a liberdade e os direitos do arguido no processo [cf. entre outros, os acórdãos nºs 31/87 (Diário da República, II série, de 1 de Abril de 1987), nº 259/88
(Diário da República, II série, de 11 de Fevereiro de 1989) e nº 353/91 (Diário da República, II série, de 20 de Dezembro de 1991).
Assim, escreveu-se, designadamente, no acórdão nº 31/87: Ora, a salvaguarda desse direito de defesa impõe seguramente que se consagre a faculdade de recorrer da sentença condenatória [...], como imporá, também, que a lei preveja o recurso dos actos judiciais que, durante o processo, tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais do arguido. Mas já não impõe que se possibilite o recurso de todo e qualquer acto do juiz.
O artigo 433º do Código de Processo Penal, na interpretação apontada, não é, pois, inconstitucional.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). não conhecer do recurso, na parte em que ele tem por objecto as normas dos artigos 54º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e 215º, n.º 3, do Código de Processo Penal; e 71º do Código Penal - todos nas interpretações indicadas;
(b). no mais, negar provimento ao recurso; Lisboa, 29 de Julho de 1998 Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Bravo Serra Maria dos Prazeres Beleza Luis Nunes de Almeida