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Processo n.º 783/97 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A C..., SA, propôs acção ordinária contra o ESTADO PORTUGUÊS, pedindo que seja condenado a pagar-lhe a indemnização devida pela expropriação, em 13 de Dezembro de 1975 (Portaria n.º 740/75), da Herdade dos Machados (prédio misto sito na freguesia de Santo Agostinho, Moura), de que ela era rendeira e promitente compradora; e a pagar-lhe, bem assim, o valor dos prejuízos resultantes do atraso no pagamento daquela indemnização - tudo a liquidar em execução de sentença. Alegou, em síntese, que o ESTADO PORTUGUÊS omitiu a publicação da legislação necessária à determinação das regras a utilizar na fixação das indemnizações a atribuir aos expropriados com as nacionalizações, conforme estava previsto na lei ao abrigo da qual aquela expropriação foi feita - o Decreto-Lei n.º 406/75, de 29 de Julho, e a Lei n.º 80/77, de 26 de Outubro.
Tendo a petição sido liminarmente indeferida, com fundamento em incompetência em razão da matéria; e havendo o despacho de indeferimento liminar sido revogado pela Relação; veio o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 16 de Maio de
1995, a julgar os tribunais judiciais incompetentes, em razão da matéria, para o conhecimento do pleito, o qual - disse - competia ao Tribunal Constitucional. Desse acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16 de Maio de 1995, recorreu a autora para este Tribunal, para apreciação da constitucionalidade da norma constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 129/84, de 29 de Abril. Esse recurso foi decidido neste Tribunal, pelo acórdão n.º 238/97, no sentido de que 'a interpretação dada pelo acórdão [então] recorrido ao questionado artigo
4º, n.º 1, b), do ETAF', ao apontar, 'em sede de competência em razão da matéria, [...] para a competência do Tribunal Constitucional, numa acção cível para efectivação de responsabilidade civil extracontratual do Estado', era inconstitucional, pois que, desse modo, estava 'a derrogar-se o direito de acção' - e, assim, a violar-se 'o artigo 20º, n.º 1, conjugado com os artigos
18º, n.º 3, 205º, m.º 1, e 213º, n.º 1, todos da Constituição'. Em cumprimento do citado acórdão n.º 238/97 deste Tribunal, tirou o Supremo Tribunal de Justiça, em 11de Novembro de 1997, novo acórdão, nele julgando os tribunais comuns (recte, os tribunais judiciais) incompetentes, em razão da matéria, para conhecer do pedido formulado pela Autora. Competentes para conhecer desse pedido - decidiu-se neste aresto -, são os tribunais administrativos.
2. É deste acórdão (de 11de Novembro de 1997) que vem o presente recurso, interposto pela A. ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade da 'alínea h) do n.º 1 do artigo 51º do Decreto-Lei n.º 129/84, de 29 de Abril, em conjugação com a alínea b) do n.º 1 do artigo 4º do mesmo decreto-lei'. Refere a recorrente que suscita a questão de inconstitucionalidade do 'referido conjunto normativo', pela primeira vez, depois de proferido o aresto de que recorre, 'na medida em que apenas agora, inesperadamente, se confronta com tal interpretação'. A recorrente, para o que aqui importa, concluiu do modo que segue as suas alegações:
1. [...] entre 16 de Maio de 1995 (data do 1º acórdão do STJ) e 13 de Novembro de 1997 (data do 2º acórdão do STJ), o Supremo Tribunal de Justiça mudaria radicalmente de opinião, posto que da 'clara e indubitável' inaplicabilidade da alínea h) do artigo 51º do ETAF, passou a achar 'inequivocamente aplicável' o mesmo preceito.
2. Com tal decisão, o Supremo Tribunal de Justiça manteve uma interpretação da alínea b) do nº 1 do artigo 4º do ETAF que o Tribunal Constitucional havia já julgado inconstitucional.
3. Com efeito, é inadmissível, porque inconstitucional, a interpretação literal e redutora do referido preceito veiculada por tão superior instância, tanto mais quando em confronto com o artigo 51º, alínea h), do mesmo ETAF.
4. É que o Supremo Tribunal de Justiça só não reconheceu competência material à jurisdição comum, antes a atribuindo aos tribunais administrativos, por entender que não resulta expressamente do artigo 4º, n.º 1, alínea b), do ETAF a inclusão, no domínio da função legislativa, do 'não exercício' da actividade legislativa.
5. Mas, diga-se em abono da verdade que, no artigo 51º, alínea h), do mesmo Estatuto, também não se contempla expressamente o não exercício da função legislativa, e mesmo assim foi aplicado pelo Supremo Tribunal de Justiça.
6. Em bom rigor, impunha-se uma interpretação ampla do artigo 4º, n.º 1, alínea b), do ETAF, que, respeitando a ratio legis deste preceito, compreendesse
'exercício da função legislativa' na sua dupla dimensão de um facere e de um non facere.
7. Esta interpretação ampla do preceito em apreço resulta, por um lado, directamente do princípio constitucional e legalmente consagrado nos artigos
213º, n.º 1, da CRP, 14º da LOTJ e 66º do CPC, segundo o qual as causas não atribuídas por lei a alguma jurisdição especial são da competência do tribunal judicial.
8. É que é esta interpretação ampla a que melhor se adapta à lógica inerente à delimitação das fronteiras da jurisdição administrativa operada, negativa e positivamente, pelos artigos 4º, n.º 1, alínea b), e 51º, n.º 1, alínea h), do ETAF, respectivamente.
9. Posto que, excluindo-se 'exercício da actividade legislativa' em sede de delimitação negativa da jurisdição dos tribunais administrativos, e não se contemplando expressamente 'não exercício da actividade legislativa' no âmbito da delimitação positiva da mesma jurisdição, outra solução não se impõe senão a de dar cumprimento ao artigo 213º, n.º 1, da CRP, artigo 66º do CPC e artigo 14º da LOTJ.
10. Acresce que, mesmo entendendo-se que uma omissão legislativa configura um acto de gestão pública, sempre se estaria fora da actividade administrativa, porquanto o não exercício da função legislativa é ainda actividade legislativa, consequentemente, actividade não administrativa, e por isso mesmo excluída do artigo 51º do ETAF.
11. Cumpre aqui salientar que a idêntica conclusão se deveria chegar pela consideração do disposto no artigo 83º da CRP, uma vez que aí se faz expressa referência à 'lei que definirá os critérios especiais para a fixação da justa indemnização', a qual não é mais do que o acto legislativo cuja omissão tem vindo a ser alegada pela autora, ora recorrente, como causa imediata dos pedidos que apresentou, e, bem assim, como razão determinante da aplicabilidade da alínea b) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF.
12. Por outro lado, e sobretudo, a interpretação ampla do artigo 4º, n.º 1, alínea b), do ETAF é a que melhor se conforma com a Constituição da República Portuguesa, designadamente o seu artigo 22º, pois aí se reconhece e garante expressamente a responsabilidade civil do Estado por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções, de que resulte, por causa disso, a violação de direitos fundamentais.
13. Ora, interpretando a norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF de uma forma redutora, e recusando a sua devida aplicação no caso sub iudice; entendendo a 'omissão legislativa' como acto de gestão pública, inserida no domínio da actividade administrativa do Estado, o egrégio Supremo Tribunal de Justiça violou os artigos 17º, 18º, 20º, 22º, 62º, 83º, 202º, nºs 1 e 2, 211º, n.º 1, e 212º, n.º 3, todos da Constituição da República Portuguesa.
14. Por um lado, relegando a apreciação e julgamento dos pedidos formulados pela autora, ora recorrente, para os tribunais administrativos, o Supremo tribunal de Justiça continua a denegar-lhe justiça.
15. Directamente, quando julga absolutamente incompetentes os tribunais comuns, ao arrepio da vocação inequívoca da regra do artigo 4º, n.º 1, alínea b), do ETAF e dos princípios que a conformam.
16. Indirectamente, mas consabidamente, quando reconhece competência a uma jurisdição que ele próprio julgou anteriormente ser absolutamente incompetente para tanto.
17. E, relegando novamente o conhecimento da causa correctamente apresentada junto da jurisdição comum, para um tribunal absolutamente incompetente para sobre ela se pronunciar e decidir, o Supremo Tribunal de Justiça reitera a violação do direito fundamental da autora, ora recorrente, de ver o seu pedido apreciado e julgado por um tribunal materialmente competente, e em prazo razoável, tal como se estabelece no artigo 20º da CRP.
18. Por outro lado, ao actuar do modo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça violou também o direito constitucionalmente reconhecido à autora, ora recorrente, de ver-se ressarcida da violação operada ao seu direito de propriedade, posto que lhe está a ser novamente vedada a possibilidade de o ver liquidado e satisfeito, o que contraria o artigo 62º da CRP.
19. Refira-se ainda que a interpretação adoptada pelo Supremo Tribunal de Justiça traduz-se igualmente numa compressão/restrição de direitos fundamentais da autora, operada que foi ao arrepio dos limites fixados pelo artigo 18º da CRP e, também por isso, inconstitucional.
20. Não menos grave foi o desrespeito demonstrado pelo Supremo Tribunal de Justiça às normas constitucionais que definem as atribuições e competências dos
órgãos jurisdicionais em geral e dos tribunais administrativos em especial.
21. O Supremo Tribunal de Justiça revelou-se, por um lado, incapaz de assegurar a defesa dos direitos da autora, ora recorrente, e de dirimir o conflito que lhe foi por esta apresentado, contra o que lhe é imposto pelo artigo 202º, nºs 1 e
2, da CRP;
22. E, sobretudo, fez tábua rasa do princípio consignado no n.º 1 do artigo 211º e n.º 3 do artigo 212º da mesma Lei Fundamental, dando uma solução ao caso sub iudice que se traduz inequivocamente numa aplicação perversa das regras ali enunciadas.
23. Ora, se este Tribunal Constitucional, quando revogou o primeiro acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, reconheceu que a competência para conhecer e decidir o tipo de acção intentada pela autora, ora recorrente, pertence aos tribunais comuns por força do princípio fundamental da competência residual da jurisdição comum, e se julgou inconstitucional a interpretação feita pelo STJ do artigo 4º, n.º 1, alínea b), do ETAF, a reforma do acórdão revogado em conformidade com este juízo de inconstitucionalidade só podia ser concretizada pela aplicação da norma inconstitucionalmente interpretada. Nestes termos, [...] deve considerar-se procedente o presente recurso e declarado inconstitucional o artigo 4º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º
129/84, de 29 de Abril, com a interpretação dada no douto acórdão ora recorrido, devendo este ser consequentemente reformado [...]. O Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal concluiu assim as suas alegações:
1º. A douta decisão do Supremo Tribunal de Justiça, ora recorrida, limitou-se a interpretar as normas constantes dos artigos 51º, n.º 1, alínea h), e 4º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, em termos de considerar que compete aos tribunais administrativos o julgamento das acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, designadamente a apreciação da responsabilidade civil do Estado emergente de danos imputados a uma actividade de gestão pública (activa ou omissiva) claramente inserida no âmbito da função administrativa.
2. Tal interpretação normativa em nada coincide com a especificada pela recorrente, nomeadamente nas conclusões com que encerra a sua alegação, em que continua a pugnar, sem o menor fundamento, pela tese de que teria ocorrido
'omissão no exercício da actividade legislativa' e a questionar a competência dos tribunais administrativos para apreciar as acções em que se pretendesse efectivar a responsabilidade do Estado pelos danos que de tal 'omissão' pretensamente houvessem decorrido.
3. Designadamente, a decisão recorrida nunca entendeu ou qualificou a 'omissão legislativa' como acto de 'gestão pública', nem excluiu o exercício da actividade legislativa do âmbito da delimitação legal da jurisdição administrativa, no confronto da que está cometida aos tribunais judiciais.
4. Assim sendo - e porque a interpretação normativa acolhida na decisão recorrida em nada coincide com a especificada pela recorrente, que continua a assentar toda a sua linha argumentativa na questão do foro competente para apreciar a responsabilidade civil emergente da 'omissão da actividade legislativa' - não deverá conhecer-se do recurso.
5. Ainda que assim, porventura, se não entenda, é manifesto que não viola qualquer preceito ou princípio constitucional - sendo antes solução imposta pelo artigo 212º, n.º 3, da Constituição - o entendimento de que compete aos tribunais administrativos o julgamento das acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas, apreciando as consequências danosas de actos ou omissões praticadas pela Administração no exercício da função administrativa, o que sempre conduziria à manifesta improcedência do recurso.
A recorrente respondeu à questão prévia do não conhecimento do recurso, suscitada pelo Ministério Público, dizendo que deve conhecer-se do mesmo. Para fundamentar esta sua posição, disse, em síntese, que 'a legislação referida pelo recorrido é manifestamente inexequível, está ultrapassada' e 'a legislação posteriormente publicada àquela que o Estado indicou também se apresenta igualmente inoperante'. Por isso, 'mantém-se [...] a omissão legislativa que o Estado Português persiste em perpetuar'. Assim, 'enquanto não estiverem completamente determinadas/discriminadas todas as situações indemnizáveis, bem como a forma/operação para o seu apuramento em concreto, e, deste modo, enquanto não for possível um cálculo rigoroso, correcto, dos montantes das indemnizações devidas (independentemente da sua justeza), haverá uma omissão legislativa ilícita e danosa, inequivocamente imputável ao Estado Português'.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir. E decidir, desde logo, se deve conhecer-se do recurso. II. Fundamentos:
4. Advertências preliminares: A primeira advertência a fazer é a de que - contrariamente ao que sustenta a recorrente na sua alegação (cf. conclusão 23) - este Tribunal, no seu acórdão n.º 238/97, não 'reconheceu que a competência para conhecer e decidir o tipo de acção intentada pela Autora, ora Recorrente, pertence aos tribunais judiciais comuns'. Depois de ponderar que 'em caso algum pode conceber-se caber na competência do Tribunal Constitucional o conhecimento e a decisão - condenatória ou absolutória do réu Estado - numa acção cível', o que o Tribunal decidiu foi tão-só que, 'apontando-se [...] para a competência do Tribunal Constitucional, numa acção cível para efectivação da responsabilidade civil extracontratual do Estado, está a derrogar-se o direito de acção, a correspondência entre o direito de acção que vem assegurada no artigo 2º do Código de Processo Civil, sendo, pois, inconstitucional tal interpretação' do artigo 4º, n.º 1, alínea b), do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril). A segunda advertência é a de que, sendo a apontada interpretação do mencionado artigo 4º, n.º 1, alínea b), do ETAF a única que este Tribunal julgou inconstitucional, não tem qualquer fundamento a afirmação, feita pela recorrente, de que, no acórdão recorrido, 'o Supremo Tribunal de Justiça manteve uma interpretação da alínea b) do artigo 4º do ETAF que o Tribunal Constitucional havia já julgado de inconstitucional' (cf. conclusão 2). De resto, essa asserção, ainda que fosse exacta, seria irrelevante, já que o recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, e um eventual desrespeito pela decisão do Tribunal Constitucional só relevaria, se ele se tivesse abrigado na alínea g) do n.º 1 do dito artigo 70º. A última advertência destina-se a sublinhar que - diferentemente do que diz a recorrente - o acórdão sob recurso não considerou verificada uma 'omissão legislativa' que tenha qualificado como acto de 'gestão pública, inserida no domínio da actividade administrativa do Estado' (cf. conclusão 13). A recorrente
é que continua a insistir em que existe 'omissão no exercício da actividade legislativa' e a questionar a competência dos tribunais administrativos para o conhecimento da acção destinada a efectivar a responsabilidade do Estado pelos danos pretensamente decorrentes dessa 'omissão' (cf., entre outras, as conclusões 4, 5, 9 e 10). O acórdão recorrido, esse, assentou em que não existe qualquer omissão legislativa; qualificou como actividade de gestão pública, inserida no âmbito da função administrativa, a omissão dos actos de fixação e atribuição da indemnização; e concluiu que a competência para apreciar o pedido de responsabilidade civil do Estado pelos danos daí emergentes é dos tribunais administrativos.
5. O objecto do recurso: No requerimento de interposição do recurso, a recorrente indicou a 'alínea h) do n.º 1 do artigo 51º do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, em conjugação com a alínea b) do n.º 1 do artigo 4º do mesmo decreto-lei', como sendo a norma que pretendia ver apreciada sub specie constitutionis. Simplesmente, nas conclusões da alegação, precisando a sua pretensão, disse que deve ser 'declarado inconstitucional o artigo 4º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, com a interpretação dada no douto acórdão ora recorrido'. O objecto deste recurso é, por isso, a norma que se contém no mencionado 'artigo
4º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, com a interpretação dada no douto acórdão ora recorrido'.
É certo que a recorrente não enunciou, como devia, 'a interpretação dada no
[...] acórdão recorrido' ao mencionado artigo 4º, n.º 1, alínea b), do ETAF
(Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril), que ela considera inconstitucional.
É, no entanto, fácil perceber que, segundo ela, o aresto sob recurso interpretou o mencionado artigo 4º, n.º 1, alínea b), do ETAF em termos de julgar competentes os tribunais administrativos - e não os tribunais judiciais - para o conhecimento de uma acção cível de indemnização, em que se pretenda responsabilizar o Estado pelos danos emergentes de uma omissão da actividade legislativa. Ainda segundo a recorrente, o Supremo Tribunal de Justiça qualificou, para tanto, 'a 'omissão legislativa' (scilicet, o 'não exercício' da actividade legislativa') como acto de gestão pública, inserida no domínio da actividade administrativa do Estado', e não 'no domínio da função legislativa'. Já, porém, se disse que o acórdão sob recurso não considerou verificada uma
'omissão legislativa' que tenha qualificado como acto de 'gestão pública, inserida no domínio da actividade administrativa do Estado'. Esse aresto - depois de mencionar a legislação que regula o pagamento da indemnização devida pela expropriação ou nacionalização efectuada ao abrigo da legislação sobre reforma agrária [Lei n.º 80/87, de 26 de Outubro (artigos 80º, alínea b), 37º e
13º, n.º 1); Decreto-Lei n.º 2/79, de 9 de Janeiro (artigo 1º); Decreto-Lei n.º
199/88, de 31 de Maio (artigos 2º, 3º, 7º, n.º 1, 8º, 9º, 10º e 14º)] - o que disse foi que, 'não tendo o Estado fixado e atribuído a indemnização pretendida pela A., verifica-se [...] um incumprimento das suas obrigações, constituindo-se assim no dever de adoptar o comportamento conforme à lei'; e que 'a omissão da prática desses actos não deixa de se enquadrar numa relação jurídica administrativa'. Ou seja: entendeu que o acto omitido é um acto administrativo, que, assim, se inscreve na função administrativa; e que, por isso, os eventuais danos daí decorrentes hão-de ser pedidos na jurisdição administrativa. Dizendo de outro modo: aplicou o mencionado artigo 4º, n.º 1, alínea b), do ETAF com o sentido de que compete aos tribunais administrativos o julgamento das acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, como o são, para esse aresto, as consequências danosas de actos ou omissões praticadas pela Administração no exercício da função administrativa. Significa isto que - como sublinha o Ministério Público - 'a interpretação normativa acolhida na decisão recorrida em nada coincide com a especificada pela recorrente, que continua a assentar toda a sua linha argumentativa na questão do foro competente para apreciar a responsabilidade civil emergente da 'omissão da actividade legislativa'.
6. Os pressupostos do recurso:
6.1. Como é sabido, o recurso da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional tem como pressupostos, entre outros, os seguintes:
(a). a suscitação, durante o processo, da inconstitucionalidade de uma determinada norma jurídica;
(b). a aplicação pela decisão recorrida dessa norma assim acusada de sofrer de inconstitucionalidade. A inconstitucionalidade de uma norma jurídica suscita-se durante o processo, quando tal se faz em termos de o tribunal recorrido saber que tem essa questão de constitucionalidade para decidir e em tempo de o poder fazer. A inconstitucionalidade tem, assim, de se suscitar de forma clara e perceptível
- o que exige que, quando se questiona apenas a compatibilidade de uma determinada interpretação de certa norma jurídica com a Constituição, se enuncie com clareza o sentido com que se entende que essa norma não pode valer, por ser inconstitucional. Além disso - e salvo algum caso excepcional e anómalo, em que o recorrente não teve oportunidade processual de suscitar a questão em momento adequado, por isso que deva ser dispensado de cumprir o respectivo ónus -, a questão de constitucionalidade há-de ser colocada ao tribunal recorrido antes de decidida a questão a que respeita, ou seja, em regra, antes de proferida a sentença. Só desse modo, com efeito, a questão da inconstitucionalidade se suscita 'de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer', como, na redacção introduzida pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, se expressa o artigo 72º, n.º 2, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Quando se suscita a inconstitucionalidade de uma determinada interpretação de certa norma jurídica, necessário é que a decisão recorrida tenha aplicado essa norma com esse sentido que se diz incompatível com a Lei Fundamental.
6.2. Pois bem: no presente caso, a recorrente apenas suscitou a questão da inconstitucionalidade no requerimento de interposição de recurso, o que é um momento processualmente inadequado.
É certo que ela refere que suscitou a questão de inconstitucionalidade do
'referido conjunto normativo', pela primeira vez, depois de proferido o aresto de que recorre, 'na medida em que apenas agora, inesperadamente, se confronta com tal interpretação'. Ou seja: sustenta que, no caso, se verifica uma situação anómala e excepcional capaz de a dispensar do ónus da suscitação atempada da questão de constitucionalidade.
Tudo, no entanto, aponta para que essa situação anómala e excepcional se não verifica no caso. Na verdade, na óptica da recorrente, o que aqui está em causa - recorda-se - é a interpretação da norma do artigo 4º, n.º 1. alínea b), do ETAF, interpretada em termos de julgar competentes os tribunais administrativos - e não os tribunais judiciais - para o conhecimento de uma acção cível de indemnização, em que se pretende responsabilizar o Estado pelos danos emergentes de uma omissão legislativa. Ora, como se escreveu no citado acórdão n.º 238/97, 'como se alcança dos autos, o debate estabelecido entre o Ministério Público e a recorrente, no recurso de agravo para o Supremo Tribunal de Justiça, em torno da norma do artigo 4º, n.º 1, alínea b), cingiu-se à matéria da competência, em razão da matéria, dos tribunais judiciais e dos tribunais administrativos para conhecer da acção declarativa em causa'. Por conseguinte, parece claro que, se a recorrente entendia que a norma constante do artigo 4º, n.º 1, alínea b), do ETAF era inconstitucional, quando interpretada em termos de julgar competentes para a acção por si proposta os tribunais administrativos, em vez dos tribunais judiciais, que ela considerava - e considera - serem os competentes, então, podia - e, por isso, devia - ter suscitado tal inconstitucionalidade
perante o Supremo Tribunal de Justiça no agravo interposto do acórdão a Relação. Certo é que, nesse momento, se discutia a competência para julgar a acção de indemnização por danos resultantes de uma omissão legislativa, e, no acórdão de que agora se recorre, os tribunais administrativos foram julgados competentes para conhecer da acção de indemnização por danos resultantes da omissão de um acto administrativo. Este facto, porém, não invalida aquela conclusão: desde logo, porque - repete-se
- a norma que a recorrente pretende ver apreciada sub specie constitutionis continua a ser a que atribui competência aos tribunais administrativos - e não aos tribunais judiciais - para conhecer do pedido de indemnização por danos emergentes de uma omissão legislativa. Ou seja: é a mesma norma em torno da qual se estabeleceu o debate no agravo para o Supremo Tribunal de Justiça. Poderia, então, dizer-se que, não tendo a questão de constitucionalidade sido suscitada durante o processo e não sendo caso de dispensar a recorrente de cumprir o respectivo ónus, não devia o Tribunal conhecer do recurso.
6.3. Não se torna, porém, necessário assentar em que não é caso de dispensar a recorrente do ónus da suscitação da questão da inconstitucionalidade durante o processo, para aqui se concluir pelo não conhecimento do recurso. Basta, com efeito, recordar que, tal como sustenta o Ministério Público e atrás se mostrou,
'a interpretação normativa acolhida na decisão recorrida em nada coincide com a especificada pela recorrente, que continua a assentar toda a sua linha argumentativa na questão do foro competente para apreciar a responsabilidade civil emergente da 'omissão da actividade legislativa'. De facto, não tendo o acórdão recorrido aplicado a norma constante do artigo 4º, n.º 1, alínea b), do ETAF com o sentido que a recorrente reputa inconstitucional, mas com um outro cuja compatibilidade com a Constituição ela não questiona, não se verifica o pressuposto da aplicação pela decisão recorrida dessa norma com a interpretação que por si foi acusada de padecer de inconstitucionalidade.
6.4. Conclusão: Ainda, pois, que não fosse exigível que a recorrente suscitasse, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma do artigo 4º, n.º 1, alínea b), do ETAF, na interpretação por si questionada sub specie constitutionis, por se verificar uma situação excepcional e anómala, capaz de a dispensar do cumprimento desse ónus - o que, aqui, não é necessário decidir em definitivo; como se não verifica o pressuposto da aplicação pela decisão recorrida de norma cuja inconstitucionalidade a recorrente haja suscitado, uma vez que o acórdão recorrido aplicou essa norma com um diferente sentido; não pode tomar-se conhecimento do recurso. III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se atender a questão prévia suscitada pelo Ministério Público e não conhecer do recurso, condenando-se a recorrente nas custas, com oito unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 15 de Julho de 1998 Messias Bento José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Beleza Luis Nunes de Almeida