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Proc. nº 169/97
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. M... deduziu embargos de terceiro na acção de despejo em que foi demandada como ré.
O Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, por despacho de 19 de Julho de 1993, julgou procedente a excepção de ilegitimidade absolvendo a embargada do pedido.
2. M... interpôs recurso da decisão de 19 de Julho de 1993 para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Nas alegações de recurso apresentadas, a recorrente sustentou a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 1037º, nº 2, do Código de Processo Civil, e 60º, nº 2, do Regime do Arrendamento Urbano, quando interpretados no sentido de não abrangerem na noção de terceiro a ré que não foi
'ouvida ou convencida' na acção de despejo, por violação do princípio do contraditório (artigo 20º da Constituição).
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 28 de Novembro de
1996, julgou improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida. Nesse aresto considerou- se que a recorrente, na qualidade de ré (de parte) na acção de despejo, poderia reagir contra a alegada nulidade da citação por via do recurso de revisão, não tendo, porém, legitimidade para a dedução de embargos de terceiro.
A recorrente requereu a aclaração do acórdão de 28 de Novembro de
1996, aclaração que foi indeferida por acórdão de 30 de Janeiro de 1997.
3. M... interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão de 28 de Novembro de
1996, ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da confirmidade à Constituição das normas contidas nos artigos 1037º, nº 2, do Código de Processo Civil, e 60º, nº 2, do Regime do Arrendamento Urbano.
Junto do Tribunal Constitucional, a recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
1ª - De acordo com o disposto nos arts. 1037/2 do C.P.C. e 601/2 do R.A.U., a posição de terceiro para efeitos da dedução de embargos deve ser recortada em termos substanciais, e não por recurso ao conceito formal de parte; Ou seja,
2ª - É terceiro todo aquele que não tenha intervindo processualmente ou não tenha sido ouvido e convencido na acção de despejo, sob pena de se frustar o princípio do contraditório e que se encontra, aliás, garantido no direito fundamental à tutela jurisdicional efectiva previsto no art. 20º/1 da Constituição; Acresce que,
3ª - A efectividade da tutela jurisdicional que se pretende garantir naquele preceito constitucional pressupõe o reconhecimento da existência de um princípio pro actione, ou princípio da interpretação mais favorável ao acesso à justiça e aos tribunais, do qual resulta que os requisitos formais de admissibilidade das acções e recursos se instituem para assegurar a correcção das decisões jurisdicionais e a sua conformidade com a justiça, e nunca como obstáculos que tenham que ser superados para se alcançar a realização da mesma. Pelo que,
4ª - Uma interpretação dos arts. 1037º/2 do CPC e 60º/2 do RAU em conformidade com o art. 20º/1 da Constituição impõe que, sempre que possível, o juiz deve optar pela solução menos rigorosa para o interessado, que permita que seja efectivo o seu direito de embargar a execução de uma sentença que, embora transitada em julgado, lesa os seus direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos. Assim,
5ª - Os arts. 1037º/2 do C.P.C. e 60º/2 do R.A.U. são inconstitucionais, por violação do referido art. 20º/1 da Constituição, quando interpretados no sentido de que não é terceiro uma parte que não foi ouvida e convencido na acção principal por deficiência ou falta da sua citação.
Por seu turno, a recorrida contra- alegou, tendo tirado as seguintes conclusões: A) A recorrente é parte nos autos que vieram a concluir pelo despejo do locado, e de cuja decisão a recorrente embargou; B) É parte porque foi citada na acção, contra ela a acção correu seus termos e nela veio a ser proferida decisão transitada em julgado que decretou o despejo e a condenou a ela recorrente a fazer entrega do locado; C) Como parte, não tem legitimidade para pedir os embargos de terceiro, na medida em que este procedimento pressupõe a qualidade de terceiro, que a mesma, por ser parte, não detém; D) O conceito legal de parte é recortado na lei por oposição a demandada no processo, a condenada na acção, o que acontece precisamente com a recorrente; E) Sendo a recorrente parte na acção de despejo, então é em sede de recurso de revisão que a mesma pode ver discutida a questão da irregularidade da citação/ofensa da sua posse. E, por essa via, garantir o direito constitucionalmente garantido, de tutela jurisdicional do seu direito. F) O princípio constitucional da protecção jurídica, na sua vertente de acesso aos tribunais e de acesso ao direito, pretende garantir i. o direito de acção, isto é, o direito que um particular tem de ver uma sua pretensão apreciada e decidida por um Tribunal. ii. o direito a um processo justo, isto é, o direito que o mesmo particular tem de ver regulamentado o seu exercício do direito de acção por regras equitativas que não precludam ou limitem o acesso ao direito. G) A lei processual não nega à recorrente qualquer acesso à tutela jurisdicional do seu direito. É que, por ter sido parte na acção, garante a lei processual o acesso à tutela jurisdicional do direito da recorrente por via do recurso de revisão e não pela via dos embargos de terceiro. H) Por via do recurso de revisão pode a recorrente fazer valer integralmente os seus pontos de vista e defender o direito que invoca pois a lei processual (art.
771º do CPC) prevê precisamente que a recorrente possa aí arguir a nulidade/falta de citação e, por essa via, se o tribunal entender ter razão, ver o seu direito acautelado. Quer dizer, portanto, que a lei processual contempla adequadamente a tutela jurisdicional do direito invocado, mas por outro instituto que não o putativamente viciado. I) Se existem mecanismos processuais próprios, paralelos ao instituto dos embargos de terceiro, que garantem à recorrente a tutela jurisdiconal do seu direito, então a recorrente tem efectiva tutela do seu direito ... se usar e deitar mão desses outros procedimentos. Pelo que o disposto no artigo 1037º/2 do CPC, na interpretação que lhe foi dada pelo douto Acórdão recorrido, não viola a CRP, antes constitui um meio processual próprio para fazer valer direitos de pessoas que não foram partes na acção. De onde inexiste qualquer inconstitucionalidade. J) Ao invés de uma questão de constitucionalidade existe, apenas e só, ... um inadequado uso de meios processuais pela recorrente. L) O recurso de revisão garante adequadamente a tutela jurisdicional do direito da recorrente, com regras que não limitam ou precludem a defesa do mesmo. Nessa sede a lei garante a possibilidade à recorrente de intepor o recurso no prazo de
30 dias desde que conheceu os factos e de carrear provas, requerer e sugerir diligências e, o que não é pouco, garante-lhe o direito de recorrer de eventual improcedência do seu pedido para um Tribunal Superior (cfr. art. 772º do CPC). M) Não impõe a CRP ao intérprete que opte, ou opte sempre, no possível alcance e sentido das normas, pelo sentido que mais proteja uma das partes em litígio, exactamente porque neste caso ambas estão em posição de igualdade e qualquer das partes tem à sua disposição meios processuais próprios para tutelar jurisdicionalmente os seus direitos. N) Igualmente não impõe a CRP, crê-se, uma intepretação abrogante das normas processuais de modo a permitir nova e diferente tutela jurisdicional de direitos quando essa tutela já está garantida por outros institutos. O) Do mesmo modo, o disposto no artigo 60º do RAU não está ferido de inconstitucionalidade. P) Esta norma tem por escopo precisamente impedir que, quem não tiver sido parte na acção do despejo, possa ser despejado sem ter sido ouvido ou convencido na acção. Q) Porém a recorrente foi citada, foi parte, e sobre ela existe sentença de condenação transitada. Daí que, longe de qualquer inconstitucionalidade, apenas se esteja ante uma interpretação absolutamente não consentida pela lei. R) Esta norma não preclude o direito de acção pois, como parte no processo de despejo, a recorrente tem o processo de revisão para fazer sobrestar o despejo e, por essa via, encontra-se suficientemente acautelada a garantia constitucional estatuída. S) A vingar a tese da recorrente, qualquer inquilino que pretendesse furtar-se ao despejo, teria por esta via uma forma expedita de nunca ser despejado. T) A interpretação desta norma feita pela recorrente é que seria inconstitucional pois impediria ao senhorio fazer valer jurisdicionalmente o seu direito ao despejo decretado pelo Tribunal. E, então, sim, existiria violação do disposto no art. 20º da CRP. U) A tutela jurisdicional garantida pela CRP não impõe que se façam verdadeiras acrobacias interpretativas da lei que tenham como consequência ... verdadeiros absurdos lógicos.
4. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
5. A recorrente sustenta que a interpretação das normas contidas nos artigos
1037º, nº 2, do Código de Processo Civil e 60º, nº 2, do Regime do Arrendamento Urbano, no sentido de não abrangerem na noção de terceiro a ré de uma acção de despejo irregularmente citada (e que nessa medida não interveio na acção), é inconstitucional, por violação do princípio do contraditório (artigo 20º da Constituição).
O Tribunal da Relação considerou que o meio processual para reagir contra a execução do despacho, com fundamento na nulidade da citação, é o recurso de revisão [artigo 771º, alínea f), do Código de Processo Civil] e não os embargos de terceiro.
Por outro lado, a ora recorrente afirma no cabeçalho da petição inicial de embargos de terceiro que interpôs recurso de revisão na mesma data em que deduziu embargos.
Como parte na acção principal (qualidade que não contesta), a recorrente tem à sua disposição mecanismos processuais para reagir contra as irregularidades que tenham sido cometidas ao longo do processo. Tais mecanismos asseguram o contraditório, na medida em que facultam a intervenção da parte de modo a influenciar a decisão definitiva do processo.
O princípio do contraditório garante às partes a possibilidade de serem ouvidas acerca das questões que, de algum modo, afectem os seus interesses. Porém, não exige a duplicação de mecanismos processuais de reacção contra uma dada irregularidade ou a existência de meios subsidiários de exercício do contraditório.
A recorrente interpôs recurso de revisão e, concomitantemente, deduziu embargos de executado. Admite-se que o tenha feito, por uma questão de
'segurança'. No entanto, não se pode afirmar que a decisão que julgou procedente a excepção de ilegitimidade nos embargos de terceiro fez aplicação das normas contidas nos artigos 1037º, nº 2, do Código de Processo Civil, e 60º, nº 2, do Regime do Arrendamento Urbano, num sentido inconstitucional, dado que, não obstante ter considerado improcedentes os embargos, subsiste um meio normativamente próprio para satisfazer o interesse processual da recorrente (o recurso de revisão).
Conclui- se, assim, que as normas impugnadas não violam o princípio do contraditório.
III Decisão
6. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso, confirmando, consequentemente, a decisão recorrida. Lisboa, 15 de Dezembro de 1998 Maria Fernanda Palma Vitor Nunes de Almeida Artur Maurício Maria Helena Brito Mota Paulo Pinto José Manuel Cardoso da Costa