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Proc. nº 207/98
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. C..., identificada nos autos, intentou, no Tribunal Judicial da Comarca de Alcobaça, contra Companhia S..., S. A., e contra V..., acção com processo sumaríssimo, em que pedia a condenação dos réus, solidariamente, ao pagamento da importância de 129 000$00 – acrescida de juros a contar da citação, custas e demais encargos legais –, correspondente às comissões de seguros que considerava serem-lhe devidas pela actividade de mediação de seguros exercida pela autora, por conta da primeira ré, durante os meses de Maio a Junho de 1994.
O Tribunal considerou que, sendo a acção baseada na violação de um contrato, partes legítimas na acção seriam apenas as partes no contrato e não também a pessoa a quem alegadamente teria sido indevidamente efectuado o pagamento das prestações em dívida; julgou, por isso, o segundo réu (marido da autora, de quem aquela se encontrava separada de facto e em processo de divórcio litigioso) parte ilegítima na acção, absolvendo-o da instância.
Na contestação, a Companhia S..., S. A., deduziu o incidente de chamamento à autoria contra V.... Não tendo este feito qualquer declaração nos termos do disposto no artigo 328º, nº 1, do Código de Processo Civil, a causa seguiu contra ele e contra a primitiva ré.
Foi designada a data para a audiência de discussão e julgamento e notificados os mandatários das partes.
A ré não se fez representar na audiência. A Juíza da Comarca de Alcobaça entendeu que as circunstâncias invocadas pela ré na contestação 'apenas poderiam levar a concluir que a obrigação foi paga a terceira pessoa, terceira pessoa essa que na petição inicial foi considerada réu mas que foi considerada parte ilegítima' e concluiu que 'ré nesta acção é apenas a Companhia S..., S. A., que na audiência de hoje não se encontra presente nem representada'. Perante o fax enviado pelo mandatário da ré pedindo o adiamento da audiência, decidiu que tal adiamento em processo sumaríssimo não é possível, nos termos do artigo
796º, nº 1, do Código de Processo Civil, e que a impossibilidade de comparência do mandatário não prova a impossibilidade de junção de substabelecimento ou a comparência da ré através de um representante. Por isso, aplicando esta norma do Código de Processo Civil, julgou procedente a acção e condenou a ré a pagar à autora a quantia de 129 000$00, acrescida de juros legais a contar da citação da ré.
A Companhia S...., S. A., arguiu a nulidade da sentença, tendo invocado a inconstitucionalidade da norma do artigo 796º, nº 1, do Código de Processo Civil. A reclamação foi indeferida.
2. Inconformada, veio então a Companhia S...., S. A., interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pedindo a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 796º, nº 1, do Código de Processo Civil, na versão anterior ao Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 83.
Nas suas alegações, a recorrente concluiu que o artigo 796º, nº 1, do Código de Processo Civil era inconstitucional por violar o princípio do contraditório e atentar contra o artigo 20º, nºs 1, 4 e 5 da Constituição da República Portuguesa.
A recorrida não alegou.
II
3. O presente recurso tem por objecto a apreciação da constitucionalidade da norma constante do artigo 796º, nº 1, do Código de Processo Civil, na versão anterior ao Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, cujo teor era o seguinte:
'1. Se o réu, tendo contestado, não comparecer na audiência de julgamento nem se fizer representar, será condenado no pedido, a não ser que justifique a falta ou tenha provado, por documento suficiente, que a obrigação não existe'.
4. A norma em causa, que trata das consequências resultantes da não comparência do réu na audiência de discussão e julgamento em acção declarativa com processo sumaríssimo, foi já objecto de apreciação por este Tribunal.
No acórdão nº 271/95 (publicado no Diário da República, II Série, nº
167, de 21 de Julho de 1995, p. 8370 ss), em que se suscitava a questão da conformidade à Constituição do artigo 796º, nº 1, do Código de Processo Civil, este Tribunal caracterizou assim o direito de acesso ao direito e aos tribunais:
'Como é sabido, a Constituição não enuncia expressamente, como acontece no domínio do processo penal, quaisquer princípios ou garantias a que deva subordinar-se o processo judicial em geral, salvo o consignado nos artigos 209º e 210º. É, todavia, inquestionável que as regras do processo, em geral, não podem ser indiferentes ao texto constitucional de que decorrem implicitamente, quanto à sua conformação e organização, determinadas exigências impreteríveis, que são directo colorário da ideia de Estado de direito democrático – bem se sabe, com efeito, como um dos elementos estruturantes deste modelo de Estado é a observância de um due process of law na resolução dos litígios que no seu âmbito deva ter lugar. E neste domínio é particularmente significativo o direito à protecção jurídica consagrado no artigo 20º da Constituição, no qual se consagra o acesso ao direito e aos tribunais que, para além de instrumentos da defesa dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos, é também elemento integrante do princípio material da igualdade e do próprio princípio democrático, pois que este não pode deixar de exigir a democratização do direito. Para além do direito de acção, que se materializa através do processo, compreendem-se no direito de acesso aos tribunais, nomeadamente: (a) o direito a prazos razoáveis de acção ou de recurso; (b) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas; (c) o direito a um processo justo, baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas; (d) o direito a um processo de execução, ou seja, o direito a que, através do órgão jurisdicional se desenvolva e efective toda a actividade dirigida à execução da sentença proferida pelo tribunal. Há-de ainda assinalar-se como parte daquele conteúdo conceitual «a proibição da indefesa», que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais junto dos quais se discutem questões que lhes dizem respeito. A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 163 e 164, e Fundamentos da Constituição, Coimbra, 1991, p. 82 e 83). Entendimento similar tem vindo a ser definido pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, que tem caracterizado o direito de acesso aos tribunais como sendo entre o mais um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras (cfr. os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 404/87, 86/88 e 222/90, Diário da República, II Série, de, respectivamente, 21 de Dezembro de 1987, 22 de Agosto de 1988 e 17 de Setembro de 1990).'
O Tribunal Constitucional teve também oportunidade de se pronunciar sobre a norma do artigo 796º, nº 1, do Código de Processo Civil de 1939, na fundamentação de decisões que tinham como objecto a norma constante do artigo
89º, nº 3, do Código de Processo de Trabalho, cuja fonte é aquela norma do Código de Processo Civil. Fê-lo nos acórdãos nºs 264/94 e 223/95
(respectivamente, no Diário da República, II Série, nº 165, de 19.7.1994, p.
7237 ss, e nº 146, de 27.6.1995, p. 7090 ss) e no acórdão nº 1193/96 (ainda inédito). Cite-se igualmente o acórdão nº 499/98 (Diário da República, II Série, nº 237, de 14.10.1998, p. 14430 ss), que apreciou expressamente a norma do artigo 796º, nº 1, do Código de Processo Civil de 1939.
Em todas estas decisões se concluiu que, à luz do sentido genérico atribuído ao direito fundamental de acesso aos tribunais, que leva implicada a proibição da indefesa, a norma questionada pela recorrente não sofre de qualquer vício de inconstitucionalidade. A esta jurisprudência se adere inteiramente.
Acrescenta-se apenas que, tratando-se de um processo sumaríssimo, em que a presença das partes assume especial importância na audiência de discussão e julgamento, é igualmente relevante a preocupação da brevidade ou celeridade processual. Os preceitos do Código de Processo Civil que regulam esta forma de processo estabelecem prazos curtos para a citação, para a contestação e para a marcação da audiência de discussão e julgamento, competindo às partes acautelar a sua comparência em tal audiência. Mas com isto não é violado o princípio do contraditório. Sublinhe-se de resto que é pressuposto de aplicação da norma questionada que o réu tenha contestado a acção – o que o réu fez no presente processo, expondo as suas razões e contraditando as da autora.
Não se mostram assim violados os princípios do contraditório e do acesso ao direito. III
5. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo
796º, nº 1, do Código de Processo Civil, na versão anterior ao Decreto-Lei nº
329-A/95, de 12 de Dezembro;
b) negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de constitucionalidade.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta. Lisboa, 9 de Fevereiro de 1999- Maria Helena Brito Vitor Nunes de Almeida Artur Maurício Luís Nunes de Almeida