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Processo nº 194/97
2ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por decisão do Tribunal de Círculo de Penafiel, confirmada por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Fevereiro de 1994, entretanto transitada em julgado, foram os recorrentes, A. M. e Ab. Mg., condenados no cumprimento de uma pena unitária de 12 anos, pela prática, em co-autoria, e em concurso real, de um crime de sequestro, previsto e punido pelo artigo 160º, nºs 1 e 2, alínea g), e de quatro crimes de violação, previstos e punidos pelo artigo 201º, nº 1, do Código Penal, sempre na redacção então vigente. Entrada em vigor em 1 de Outubro de 1995 a Reforma do Código Penal de 1982 (nos termos do artigo 13º do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março), apresentaram os recorrentes um requerimento no Tribunal de Círculo de Penafiel no qual pediram que fosse declarado extinto o procedimento criminal relativo aos crimes de violação. Fundamentaram o seu pedido, basicamente, na circunstância de o crime de violação, quando cometido por intermédio de um crime público (no caso, o sequestro), ter deixado de ser qualificado, ele próprio, como crime público na versão revista do Código Penal, devendo consequentemente atribuir-se eficácia extintiva à declaração de desistência proferida pela ofendida antes do julgamento em primeira instância, a fls. 209 dos autos. Na sequência de parecer, no mesmo sentido, do Ministério Público, o juiz a fls.
216, 'atendendo a que os factos que consubstanciam os crimes de violação imputados aos AA ‘foram cometidos por meio de outro crime – crime de sequestro – que não depende de acusação ou queixa’ não tem a declaração da ofendida, e a subsequente aceitação dos AA, a virtualidade de desencadear a extinção do procedimento criminal'. Diferentemente, julgou 'válida a desistência do pedido de indemnização'. O requerimento terminava do seguinte modo:
'Daqui que se conclui que:
reconhecida a natureza mais favorável do regime do artigo 178º do Código
Penal, na redacção ora em vigor, face ao anterior regime do artigo 211º, nº 2,
do C. Penal, (...)
reconhecida, pois, a aplicabilidade do mesmo à situação dos requerentes, por
permitir, face à declaração feita, em devido tempo, pela ofendida, sem
oposição dos requerentes, uma 'descriminalização de facto', pela extinção do
procedimento, (...),
por inconstitucionalidade material da restrição constante da parte final do nº
4 do artigo 2º do C. Penal, (...) se deve declarar extinto o procedimento pelo crime de violação e, consequentemente, subsistente tão somente a condenação dos requerentes pelo crime de sequestro, com a legal consequência quanto à redução da pena a cumprir.' O Ministério Público, representado pelo competente Procurador da República, pronunciou-se no sentido do provimento do requerido. O Tribunal de Círculo de Penafiel, porém, por decisão de 17 de Maio de 1996, não atendeu à pretensão dos condenados, invocando a inexistência de descriminalização, e entendendo que não existe inconstitucionalidade 'da restrição (caso julgado) vertida na parte final do nº 4 do artigo 2º do C. Penal'. Interposto recurso para o Tribunal da Relação do Porto, veio o representante do Ministério Público junto deste Tribunal concordar também com os recorrentes, afirmando parecer 'incontroverso que uma lei que permite a desistência se mostra sem dúvida mais favorável que uma outra que, relativamente ao mesmo facto criminal a impede', e concluindo que não há razões de segurança nem critérios de interpretação restritiva do artigo 29º, nº 4 da Constituição que se oponham à prevalência do 'direito à lei mais favorável (princípio constitucional)' relativamente ao 'caso julgado (princípio constitucional)', 'sendo a própria Constituição a fornecer o critério de opção no seu artigo 282º, nº3'. O Tribunal da Relação do Porto, porém, declarou-se incompetente para o conhecimento do objecto do recurso, ordenando a remessa do processo ao Supremo Tribunal de Justiça por entender ser a este Tribunal que o recurso se dirigia. Confirmando a decisão recorrida, o Supremo Tribunal veio considerar que a pretensão dos recorrentes de verem declarado extinto o procedimento quanto aos crimes de violação conduziria 'a uma impossibilidade jurídica', porque 'a extinção desse procedimento teve lugar em 1994', 'com o trânsito em julgado do acórdão condenatório'. Quanto ao problema colocado relativamente à constitucionalidade da ressalva do caso julgado, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que 'a excepção consagrada na parte final do citado nº 4, do artigo 2º, estabelecendo a intangibilidade do caso julgado em matéria penal, resulta do princípio constitucional previsto no nº 5 do artigo 29º, da Constituição, pelo que essa excepção da última parte do nº 4, do 2º, do Código Penal, não enferma de qualquer inconstitucionalidade'. E lembrou que, com excepção do Conselheiro Sousa Brito, que não tomou posição sobre este ponto, os membros da Comissão de Revisão do Código Penal (em 1990) aceitaram a constitucionalidade do segmento final da referida norma.
É este último acórdão, de 19 de Fevereiro de 1997, que é agora impugnado pelos recorrentes perante o Tribunal Constitucional, em recurso para fiscalização concreta da constitucionalidade, pelos seguintes fundamentos:
'1. – Suscitou duas questões:
– a descriminalização indirecta pode ser decretada com base em factos
extintivos da responsabilidade, desde que ocorridos antes do trânsito em
julgado?
– o regime da descriminalização é mais favorável e, por isso, não pode ser
cerceado pela relevância do caso julgado, sob pena de inconstituciojnalidade
da norma do artigo 2º, nº 4 do C. Penal, por violador do regime dos artigos
29º, nº 4 e 282º, nº 4, da C. R., na redacção de 1989, este último em
confronto até com a redacção do artigo 281º, nº 2, in fine, na redacção de
1976?
2. – Estas questões mereceram um entendimento negativo no douto acórdão.
3.– Não se valorou a declaração de desistência, inoperante à data da douta decisão, mas que passou a ser agora e
4. – a sê-lo na data em que foi emitida seria extintiva,
5. – só porque 'uma das causas de extinção do procedimento criminal...consiste numa decisão do feito, mediante sentença com trânsito em julgado' (sic).
6. – Isto quando, exactamente se pretendia indagar se tal declaração não teria o mesmo efeito extintivo, só que ...em benefício do arguido e
7. – da ideia de necessidade que é a essência da 'criminalização'...!!! Isto teria levado a interpretar correctivamente – e o que se nos afigura possível e legítimo, por não prejudicar a posição do arguido – o nº 2 do artigo
2º do C.Penal, para aí considerar subsumida a hipótese, o que se não fez.
8. – Igualmente se considerou o relevo dessa desistência como se se buscasse a comparação entre dois regimes igualmente criminalizadores, recorrendo-se ao nº 4 do artigo 2º do C. Penal,
9. – quando o que se pretendia que o S.T. J. dissesse era se, porque demonstrativa de desnecessidade de tutela penal, a desistência era oponível, por se traduzir num regime mais favorável,
10. – sob pena de, neste caso, a interpretação a fazer com base no artigo 2º, nº
4 do Código Penal, violar o regime do artigo 29º, nº 4 da C.Rep., sabendo-se que, em matéria penal, o caso julgado não é imune à declaração de inconstitucionalidade – artigo 282º, nº 4 da C. Rep. Entendemos, pois, que, independentemente de se nos afigurar que houve erro na interpretação do artigo 2º, nºs 2 e 4 do C. Penal, em qualquer caso, ao considerar-se a irrelevância de um caso julgado penal face a uma situação juridicamente nova em sede de necessidade, se violou o regime do artigo 29º, nº
4, da C. Rep. Assim, porque em tempo, por quem tem legitimidade, porque a questão se subsume no regime da al. b) do artigo 70º da Lei Orgânica do Trib. Constitucional, vem requerer se considere admissível o recurso para o Tribunal Constitucional'. Nas alegações apresentadas, os recorrentes concluem do seguinte modo:
'Pelas razões teleológicas e intenções político-criminais que informam os
pressupostos processuais designados como condições de procedibilidade, estão
estes ligados à efectivação da punição.
Atento o regime do artigo 18 da C. Rep., e porque condicionando a 'legalidade
da repressão', os pressupostos exigem a consideração do seu tratamento como
elementos definidores do 'regime que concretamente se mostre mais favorável ao
agente'.
O caso julgado é um instituto criado para garantir a segurança jurídica, cuja
força processual não pode suplantar a 'estrita necessidade' da compressão de
direitos fundamentais. Daí as derrogações do legislador ordinário:
quer nas medidas de clemência;
quer quando discriminaliza;
quer, quando, em qualquer jurisdição, admite o recurso extraordinário, sendo
certo que, no campo penal, visa com este remediar situações em que ocorreu
perigo de lesão do princípio da 'legalidade da repressão'.
1. O legislador constitucional expressamente derroga a força do caso julgado sempre que daí resulte uma situação mais desfavorável para o arguido penal – artigo 282, nº 3 -, preocupação que ressalta da evolução do preceito do nº2, in fine, do artigo 281 do texto de 1976, para os subsequentes textos do artigo 282, nº 3.
2. O artigo 29, nº 4 da C. Rep. Ao exigir a aplicação retroactiva da lei penal de conteúdo mais favorável não distingue entre situações transitadas e não transitadas em julgado.
3. Se uma lei nova descriminaliza uma conduta, há lei expressa – artigo 2, nº 2 do C. Penal – a fazer extrair consequências;
• se a lei nova, não descriminaliza, e só adequa a moldura penal, a punição decretada, porque com base no critério de 'repressão' vigente ao tempo, pode manter-se estável, sem prejuízo de adequação na execução da mesma. Para esta situação vigorará o regime do nº 4 do referido artigo 2º do C. Penal.
4. Sob pena de violação do normativo dos artigos 29, nº4 e 18, nºs 1 a 3 da Const. Rep., não pode interpretar-se o nº 4 do artigo 2º do C. Penal, no sentido de ser inatendível a ultra-actividade de declaração relevante para efeitos de
'efectivação da punição', que o não era num dado momento, quando daí, por subsequente alteração da 'política criminal' resulte 'descriminalização 'de facto', só porque, entretanto, houvera um caso julgado, sobretudo penal.
5. Porque de decisão proferida pelo S.T.J. e relativamente a interpretação de uma norma, de que resulta uma decisão que afronta norma constitucional, violando o seu espírito, é legítimo o recurso para o Tribunal Constitucional.
'A violação de norma constitucional sempre pode ser apreciada quando, embora não seja essa a directamente questionada a sua aplicação é feita sob invocação de outro preceito jurídico' – Artigo 79º-C da Lei 28/82, de 15.11 e Ac. T.C. 41/94, de 12.07, in B.M.J. 439 (127).
8.1 - 'Afirmar que determinada interpretação, dada pelo Tribunal recorrido, não podia ter sido querida pelo legislador, sob pena inconstitucionalidade, vale por arguição de inconstitucionalidade da norma em causa. Afirmar que uma norma, na interpretação que lhe foi dada por qualquer Tribunal, afronta a lei fundamental, vale como arguição de inconstitucionalidade' – Breviário de Direito Processual Constitucional, nota 34, pag. 40. Termos em que, declarando a violação dos normativos dos artigos 29, nº 4 e 18 da C. Rep. pela interpretação feita no douto acordão, Far-se-á Justiça' Por seu turno, contra-alegou o Ministério Público, através do Senhor Procurador-Geral Adjunto em exercício junto do Tribunal Constitucional. Começou por suscitar a questão prévia da falta de requisitos de admissibilidade do recurso, nos seguintes termos:
'1.2. O requerimento de interposição do recurso de fls. 723 não satisfaz as exigências impostas pelo artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional (não se indica a norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada, nem a peça processual em que os recorrentes suscitaram a questão da inconstitucionalidade). Nas subsequentes alegações que apresentaram, também aí formulam o pedido sem especificarem qual a norma infra-constitucional que, na sua óptica, violaria o disposto na Constituição. Assim, bem vistas as coisas, o que questionam é a própria decisão – esta é que afronta norma constitucional (ver conclusão nº 8). Ora, como é sabido, objecto do recurso de constitucionalidade no âmbito da fiscalização concreta só podem ser as normas jurídicas (ou uma qualquer interpretação que delas se faça) e não quaisquer outros actos jurídicos, nomeadamente as decisões judiciais, enquanto tais. Não deve, pois, conhecer-se do recurso.
1.3. Aliás, sempre suscitaria fortes dúvidas a cognoscibilidade do presente recurso. No acima aludido requerimento de fls. 636 e segs., os ora recorrentes deduziram a sua pretensão visando a extinção do procedimento criminal pelo crime de violação por que haviam sido condenados por decisão já transitada (o acórdão de
17 de Junho de 1993, da 1ª Instância, confirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça). Daí que tenham sustentado a inconstitucionalidade da parte final do nº
4 do artigo 2º do Código Penal, tese que, porém, não veio a ter acolhimento, quer na 1ª Instância, quer no Supremo, e que por isso renovam perante o Tribunal Constitucional. Acontece que a desistência da queixa foi apresentada em 11 de Fevereiro de 1992
(vd. fls. 209), ou seja, antes do julgamento na 1ª Instância, tendo sido considerada ineficaz por despacho de fls. 216, decisão que se mantém, por ter transitado em julgado, sem que jamais tenha sido posta em causa. Mantendo-se de pé tal despacho , não se vê como a referida declaração de desistência, que nunca foi objecto de apreciação pelo Tribunal Colectivo, possa ser agora considerada operante e extintiva por decisão desse mesmo Tribunal Colectivo, como pretendem os recorrentes. A verdade, porém, é que tendo esse tribunal conhecido da questão de constitucionalidade – como o Supremo Tribunal de Justiça também conheceu – parece ser de concluir que reconheceu implicitamente que o poderia fazer. Mas as dúvidas quanto ao interesse processual no conhecimento do objecto do recurso manifestam-se também noutro plano. Ouvida a propósito da 'confissão' de fls. 350, a ofendida disse – o que ficou consignado em acta (vd. Fls. 363) – que não queria desistir do processo da violação. Considerado o contexto em que tal afirmação teve lugar e a credibilidade de quem a produziu, expressamente reconhecida no acórdão condenatório, é legítimo perguntar se o tribunal, suposta a sua competência para tal, viria a considerar válida, sem mais, a desistência da queixa. E, sendo assim, se o Tribunal Constitucional, conhecendo do recurso, não estará a decidir uma pura questão académica, sabido como é, que o julgamento da questão de constitucionalidade desempenha sempre uma função instrumental, apenas se justificando que a ele se proceda se o mesmo tiver utilidade para a decisão da questão de fundo. Para a hipótese de não merecer acolhimento a questão prévia suscitada, passa-se
à apreciação do mérito do recurso.' Pronunciando-se, seguidamente, sobre a questão de fundo, concluiu assim as suas alegações:
'Conclusão
Por os recorrentes não imputarem a inconstitucionalidade a qualquer norma,
mas à própria decisão, não deve conhecer-se do recurso.
Aliás, sempre suscitaria fortes dúvidas a cognoscibilidade do presente
recurso, uma vez que o julgamento da questão de constitucionalidade
desempenha sempre uma função instrumental, apenas se justificando que a ele
se proceda se o mesmo tiver utilidade para a decisão da questão de fundo, o
que, in casu, não é seguro que venha a ter.
A alteração legislativa operada no Código Penal revisto no sentido da
necessidade, nos casos especificados na lei, de o procedimento criminal
depender de queixa, justificou-se pela 'salvaguarda de outros bens de
natureza institucional, v.g., a família', podendo compreender-se também como
parte de um movimento de discriminalização. Ou seja, com tal alteração
visou-se proteger a vítima, mas dela também pode beneficiar o arguido, se
aquela não exercer o direito de queixa ou, exercendo-o, venha depois a
desistir da queixa.
Assim sendo, por ser inegável que a lei que permite a desistência da queixa
é mais favorável ao arguido do que aquela que não a permite, e porque o
princípio da aplicação retrospectiva da lei penal de conteúdo mais favorável
garante valores constitucionais superiores aos que os que são acautelados
pelo princípio da intangibilidade do caso julgado, deve aquele princípio
prevalecer sobre este.
Termos em que, a conhecer-se do recurso, deverá o mesmo ser julgado
procedente.'
2. Importa antes de mais apreciar se estão reunidas as condições de admissibilidade do recurso. De acordo com o disposto no nº 1 do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, incumbe ao recorrente o ónus de indicar, no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, qual a norma cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada. Ora, no seu requerimento, os recorrentes aludem directa e claramente à violação do nº 4 do artigo 29º da Constituição pelo nº 4 do artigo 2º do Código Penal.
É certo que a indicação aparece formulada, não isoladamente, mas como consequência de não ter sido aceite pelo acórdão recorrido a aplicação do disposto no nº 2 do artigo 2º do Código Penal, como pretendiam. Mas não é menos certo que no mesmo requerimento se encontra claramente identificada a norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada: o nº 4 do artigo 2º do Código Penal, na parte em que limita a aplicação da lei mais favorável em função do caso julgado. Também de acordo com o nº 1 do citado artigo 75º-A, cabe-lhes igualmente o ónus de, sempre nesse requerimento, indicar qual a peça processual em que suscitaram a questão da inconstitucionalidade, o que não fizeram. A verdade, porém, é que essa falta poderia ter sido suprida se, como prevê o nº 5 do mesmo artigo 75º-A, aplicável na redacção então em vigor, tivessem sido convidados a saná-la. Não se tratando, de qualquer forma, de uma irregularidade que possa comprometer, nem o exame, nem a decisão da causa, considera-se irrelevante (nº 1 do artigo 201º do Código de Processo Civil, aplicável nos termos do disposto no artigo 69º da referida Lei nº 28/82).
É que, logo no requerimento dirigido ao Tribunal de Círculo de Penafiel, em 12 de Outubro de 1995, os recorrentes suscitaram a questão da inconstitucionalidade, tendo voltado a levantá-la no recurso da decisão do Tribunal de Círculo que indeferiu aquele requerimento. Ainda no domínio dos requisitos de admissibilidade do recurso, deve colocar-se o problema de saber se o seu eventual provimento teria relevância para a situação concreta dos arguidos, de modo a justificar o correspondente interesse processual. Recorde-se que os recorrentes foram condenados, por decisão transitada em julgado, numa pena de prisão actualmente em execução. Cabe, portanto, apurar se a eventual aplicação retroactiva da norma que transforma em crime semi-público o crime de violação cometido através de um crime público tem ou não consequências na definição da situação concreta dos recorrentes. Poderia pensar-se que não, na esteira do que entende o Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal, na medida em que 'a desistência da queixa foi apresentada (...) antes do julgamento na 1ª Instância, tendo sido considerada ineficaz por despacho de fls. 216, decisão que se mantém, por ter transitado em julgado, sem que jamais tenha sido posta em causa'. Todavia, o que está em causa
é, justamente, saber se a eventual aplicação retroactiva da nova lei não deve ocasionar a necessidade de apreciar a declaração de desistência, mesmo contra o trânsito em julgado do despacho que, com base no direito ao tempo vigente, a considerou ineficaz. Ora, se for constitucionalmente imposta a aplicação retroactiva da nova lei que atribui relevância à desistência da queixa, torna-se obrigatória a reapreciação da desistência. Interroga-se, ainda, o Procurador-Geral Adjunto sobre 'se o tribunal, suposta a sua competência para tal, viria a considerar válida, sem mais, a desistência da queixa', tendo em conta determinadas declarações proferidas durante o processo pela ofendida, o que poderia retirar utilidade ao recurso quanto à decisão da questão de fundo. Ora a verdade é que essa utilidade se revela, precisamente, na necessidade de proceder à referida apreciação da declaração de desistência, podendo esta vir a ser considerada ou não como operante. Finalmente, seria ainda possível questionar a existência de interesse processual neste recurso para o Tribunal Constitucional, na medida em que, restringindo o princípio da aplicação retroactiva da lei mais favorável às leis penais substantivas, a declaração de inconstitucionalidade da norma impugnada em nada relevaria para o caso concreto, atenta a natureza processual da lei que transforma um crime de público em semi-público. Não parece, todavia, metodologicamente correcta esta forma de colocar o problema. Com efeito, não pode extrair-se da natureza jurídica que se atribua à nova lei uma decisão quanto à necessidade constitucional da sua aplicação retroactiva. Esta decisão há-de resultar do sentido e alcance da garantia constitucional em causa, bem como da virtualidade revelada pelas normas que se sucedem no tempo para afectar a situação concreta dos arguidos ou condenados. Ora a nova lei é de tal modo relevante para a situação concreta dos agentes, no caso sub iudice, que a sua aplicação levaria à não punição.
3. É nos seus artigos 1º e 2º que o Código Penal estabelece as regras relativas
à aplicação no tempo das normas penais. A par do princípio 'tempus regit actum', consagrado no nº 1 do artigo 2º (cfr. a primeira parte do nº 4 do art. 29º da Constituição), cuja dimensão mais importante se concretiza na irretroactividade da lei penal incriminadora (nº 1 do artigo 1º do Código Penal e nº 3 do artigo
29º da Constituição), prescreve este diploma um outro princípio, complementar do anterior, nos números 2 e 4 do seu artigo 2º: o da retroactividade da lei mais favorável. Distingue o Código Penal, quanto a este último ponto, duas hipóteses: a de o facto, punível segundo a lei vigente no momento da sua prática, deixar de o ser, porque a nova lei o eliminou do número das infracções (nº 2 do artigo 2º); e a de 'as disposições penais vigentes no momento da prática do facto' serem
'diferentes das estabelecidas em leis posteriores' (nº 4 do mesmo artigo 2º). Incluem-se, assim, na primeira as situações em que é eliminada a punibilidade de um facto concreto, independentemente da via técnica através da qual se alcançou tal resultado (eliminação da norma incriminadora, alteração da descrição do facto típico, aditamento de uma nova causa de justificação ou de exculpação, ou alargamento do âmbito de aplicação das já existentes...). Diferentemente, na segunda contemplam-se os casos em que o facto, que era punível com base na lei antiga, continua a ser punível à luz da lei nova, mas agora com diferente regime penal (é alterada a pena que concretamente deve ser aplicada, são alteradas as condições da suspensão da execução da pena, os casos ou os prazos em que pode ser concedida a liberdade condicional, por exemplo). A esta distinção vem a corresponder uma diferente estatuição. Assim, por força do nº 2 do artigo 2º, a aplicação da lei mais favorável, que elimina a incriminabilidade do facto concreto praticado, acarreta uma não punição do agente, e, em consequência, a cessação da execução da pena e dos efeitos penais decorrentes de uma eventual condenação, ainda que transitada em julgado. Ao invés, a aplicação da lei nova mais favorável, quando não afasta a incriminabilidade do facto, está legalmente condicionada à não formação anterior de caso julgado da sentença condenatória, nos termos do nº 4 do artigo 2º. Substancialmente, a diferença de regimes explicar-se-ia pela circunstância de neste último caso não haver 'uma nova avaliação quanto à natureza criminal do facto, que permanece punível', apenas se entendendo 'que bastará para o reprimir uma sanção mais leve ou que comporte efeitos penais menos graves' (MANUEL ANTÓNIO LOPES ROCHA, 'Aplicação da lei criminal no tempo e no espaço', Jornadas de Direito Criminal – o Novo Código Penal e Legislação Complementar, Lisboa,
1993, pág. 99). O problema de constitucionalidade suscitado reside em saber se é ou não conforme com a Lei Fundamental a norma do nº 4 do artigo 2º do Código Penal de 1982, na parte em que veda a aplicação da lei penal nova que transforma em crime semi-público um crime público, quando tenha havido desistência da queixa apresentada e trânsito em julgado da sentença condenatória. Não cabe, portanto, questionar aqui o eventual acerto da escolha feita por este preceito, e não pelo nº 2 do mesmo artigo (cfr., sobre a delimitação do campo de aplicação dos nºs 2 e 4 do artigo 4º do Código Penal, MIGUEL PEDROSA MACHADO, 'A entrada em vigor das incriminações de abuso de informação e de manipulação do mercado do Código do Mercado de Valores Mobiliários: chamada de atenção para mais um erro de técnica legislativa, Temas de Direito Penal Especial, Lisboa, pág. 105), uma vez que foi a parte final do nº 4 do artigo 2º do Código Penal a norma efectivamente aplicada na decisão recorrida.
4. É no capítulo dedicado aos direitos, liberdades e garantias pessoais que a Constituição consagra os princípios básicos relativos à 'aplicação da lei criminal' (artigo 29º). Entre eles, contam-se o princípio da legalidade, o princípio da irretroactividade da lei incriminadora, o princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, o princípio ne bis in idem e o direito
à revisão da sentença e à indemnização em caso de condenação injusta. Na parte que agora nos importa considerar, o nº 4 do artigo 29º determina que se aplicam 'retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido'. Não se afigura difícil encontrar o fundamento substancial para esta regra, que decorre directamente do princípio que a doutrina tem denominado da necessidade das penas (ou da tutela penal) ou da máxima restrição das penas ( Acórdão deste Tribunal nº 290/97, de 12 de Março de 1997, publ. no Diário da República, II, de
15 de Maio de 1997 e FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE, 'Direito Penal – Questões fundamentais – a doutrina geral do crime', em curso de publicação, Coimbra,
1996, págs. 66 e segs.; MARIA FERNANDA PALMA, 'Direito Penal - Parte Geral', Lisboa, 1994, pág. 65 e segs.; TERESA PIZARRO BELEZA, 'Direito Penal', 1º vol.,
2ª ed., Lisboa, 1985, pág. 50 e segs.; JOSÉ SOUSA E BRITO, 'A lei penal na Constituição', Estudos sobre a Constituição, 2º vol., Lisboa, 178, págs. 199 e segs. e 222 e segs.; TAIPA DE CARVALHO, 'Sucessão de Leis Penais', 2ª edição, Coimbra, 1997, págs. 102 e segs.). Resulta deste princípio a asserção de que a legitimidade das penas criminais depende da sua necessidade, adequação e proporcionalidade, em sentido estrito, para a protecção de bens ou interesses constitucionalmente tutelados; e o seu valor assenta na verificação de que 'qualquer criminalização e respectiva punição' (ANABELA MIRANDA RODRIGUES, 'A determinação da medida da pena privativa de liberdade', Coimbra, 1995, pág. 255) determina a restrição de direitos, liberdades e garantias das pessoas (maxime, do direito à liberdade, consagrado no nº 1 do artigo 27º da Constituição). Ora, tal restrição só pode justificar-se, nos termos do nº 2 artigo 18º, quando se mostre necessária para a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Pode afirmar-se, assim, que a garantia da aplicação da lei penal mais favorável se limita a exprimir, ou a traduzir, na matéria dos limites temporais da aplicação da lei penal, o princípio da necessidade das penas. Na verdade, se, em momento posterior à prática do facto, a pena se revela desnecessária, torna-se constitucionalmente ilegítima.
5. Como já se viu, a norma do nº 4 do artigo 2º do Código Penal foi interpretada pelo Supremo Tribunal de Justiça no sentido de não permitir a aplicação retroactiva da lei que transforma em crime semi-público um crime público – lei que é, por isso, mais favorável – e de impedir, consequentemente, a relevância da desistência da queixa apresentada. Apurado o fundamento do nº 4 do artigo 29º da Constituição, impõe-se a conclusão de que se verifica uma contradição formal entre esta disposição e a norma do nº
4 do artigo 2º do Código Penal, com o alcance com que foi aplicada pelo acórdão recorrido (considerando existir tal contradição em todos os casos abrangidos pelo nº 2 do artigo 4º do Código Penal, TERESA PIZARRO BELEZA, op.cit., 1º vol.,
2ª ed., Lisboa, 1985, pág. 455, que sustenta que a parte final do nº 4 do artigo
2º do Código Penal deve 'considerar-se inconstitucional face ao disposto no nº 4 do artigo 29º').
É necessário, no entanto, averiguar se tal contradição é admissível, o que só ocorrerá se constituir uma restrição constitucionalmente permitida de direitos, liberdades e garantias, em razão da sua necessidade, adequação e proporcionalidade relativamente à defesa de outros direitos ou interesses também constitucionalmente protegidos. Com efeito, '... as restrições e os condicionamentos dos direitos fundamentais ... só se justificam quando, para além do mais, se mostrem necessários e adequados à salvaguarda de outros direitos ou valores constitucionais. Por outro lado, têm sempre que ser proporcionados. E, tratando-se de restrições, têm que deixar intocado o conteúdo essencial do respectivo preceito constitucional (cf. artigo 18º da Constituição)
(acórdão nº 392/89 deste Tribunal, publicado no Diário da República, II, de 14 de Setembro de 1989). Pode desde logo invocar-se, precisamente, a tutela constitucional do caso julgado como fundamento da admissibilidade da ressalva constante do nº 4 do artigo 2º do Código Penal . Mas a invocação do caso julgado não é suficiente para, só por si, tornar legítima a restrição ao princípio da aplicação da lei penal mais favorável.
É sabido que o caso julgado serve, fundamentalmente, o valor da segurança jurídica (cfr. JORGE MIRANDA, 'Manual de Direito Constitucional', tomo II, 3ª edição, reimp., Coimbra, 1996, pág. 494); e que, fundando-se a protecção da segurança jurídica relativamente a actos jurisdicionais, em último caso, no princípio do Estado de Direito (GOMES CANOTILHO, 'Direito Constitucional e Teoria da Constituição', Coimbra, 1998, pág. 257), se trata, sem qualquer dúvida, de um valor constitucionalmente protegido. Torna-se, todavia, indispensável demonstrar que o valor constitucional do caso julgado deva prevalecer nestas hipóteses perante o princípio da aplicação retroactiva da lei mais favorável. Afirmou-se no acórdão nº 644/98 deste Tribunal, ainda inédito, haver que averiguar se 'aceite a consagração constitucional do valor ou interesse consistente no respeito pelo caso julgado, e não podendo deixar de perspectivar a regra constante da parte final do nº 4 do artigo 29º como uma garantia constitucional fundamental, ... se, atentos os números 2 e 3 do artigo 18º, a restrição operada pela norma em apreço não ultrapassa o necessário para a salvaguarda desses valor ou interesse e se posterga o alcance mínimo daquela garantia'. Ora, a verdade é que, independentemente de outras considerações, se considera que o respeito pelo núcleo essencial da garantia afirmada no nº 4 do artigo 29º da Constituição implica, pelo menos, que o caso julgado da condenação não afaste a aplicação retroactiva da lei nova descriminalizadora ou que produz efeitos substancialmente análogos. Não estando em causa, neste processo, averiguar da conformidade constitucional da não aplicação retroactiva da lei mais favorável a todos os casos hipoteticamente abrangidos pelo nº 2 do artigo 4º do Código Penal, há que entender que, na parte em que constitui objecto do presente recurso, esta norma não respeita o conteúdo essencial do nº 4 do artigo 29º da Constituição. Com efeito, se a nova lei passa a fazer depender o procedimento de queixa da ofendida, e, consequentemente, a considerar relevante a desistência da queixa, o resultado da sua aplicação é equivalente ao que decorre de uma lei que descriminaliza, em sentido próprio, a conduta do agente. Num caso como no outro, a aplicação da lei nova determinaria a não punição.
6. Não se afigura admissível invocar o nº 5 do artigo 29º da Constituição, que garante que 'ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime', para defender a intangibilidade do caso julgado, como se fez no douto acórdão recorrido (cfr. a invocação do nº 5 do artigo 29º como um dos argumentos para a defesa da não inconstitucionalidade da última parte do nº 4 do artigo 2º do Código Penal, em PEREIRA TEOTÓNIO, 'Interpretação da lei criminal e sua aplicação no tempo', Revista do Ministério Público, ano 3º, vol. 12, 1982, pág.
64). Na verdade, a disposição constitucional invocada, que consagra o princípio ne bis in idem, constitui, sem margem para qualquer dúvida, uma garantia do arguido, não podendo pois ser invocada contra ele, em manifesta violação da sua ratio. Assim, decide-se: a. Julgar materialmente inconstitucional, por violação do princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, consagrado no nº 4 do artigo
29º da Constituição, a norma constante do nº 4 do artigo 2º do Código Penal, na parte em que veda a aplicação da lei penal nova que transforma em crime semi-público um crime público, quando tenha havido desistência da queixa apresentada e trânsito em julgado da sentença condenatória;
conceder provimento ao recurso, a fim de ser reformada a decisão recorrida em
conformidade com o juízo de inconstitucionalidade formulado.
Lisboa, 2 de Dezembro de 1998 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (com declaração de voto) Luís Nunes de Almeida Bravo Serra José de Sousa e Brito (com declaração de voto idêntica no essencial à da Conselheira Relatora) Messias Bento Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa
Declaração de voto Em meu entender, o nº 4 do artigo 2º do Código Penal, na parte que impede a aplicação da lei penal mais favorável se tiver transitado em julgado a sentença condenatória, é inconstitucional em toda a sua extensão, e não apenas na dimensão com que foi aplicado neste processo, violando ainda, para além do princípio da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, consagrado no nº
4 do artigo 29º da Constituição, os princípios da necessidade da pena (nº 2 do artigo 18º) e da igualdade (artigo 13º), fundamentalmente pelas seguintes razões:
1ª) Em primeiro lugar, porque, para além das considerações tecidas no acórdão, o fundamento substancial da regra constitucional da aplicação retroactiva das
'leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido' (nº 4 do artigo 29º) traduz também a consideração de que a pena criminal se deve justificar 'no momento da sua efectiva aplicação e execução perante os sucessivos juízos de valor ou valorações diferentes sucessivamente expressos na lei' (JOSÉ LOBO MOUTINHO, 'A aplicação da lei penal no tempo segundo o Direito português', Direito e Justiça, vol. VIII, t. 2, 1994, pág. 104). A esta afirmação não se pode opor, por exemplo, que, ao utilizar, no nº 4 do artigo 29º, a expressão 'arguido', a Constituição apenas garante a aplicação da lei mais favorável quando ainda exista tecnicamente arguido, por ainda não ter transitado em julgado a sentença condenatória. Estariam, assim, fora do âmbito de protecção deste preceito constitucional as hipóteses em que a condenação já teria transitado em julgado. Impõe-se, sem dúvida, a rejeição desta objecção. Desde logo, porque a própria Constituição emprega o mesmo termo para abranger os que foram condenados por sentença transitada em julgado (cfr. o nº 3 do seu artigo 282º); e, sobretudo, porque o fundamento em que assenta substancialmente a garantia da aplicação da lei mais favorável – o princípio das necessidade das penas – conduz a que esta garantia deva ter aplicação em ambos os casos. De resto, diferente entendimento levaria a considerar, contra o consenso da doutrina, que a garantia constitucional não teria aplicação nos próprios casos de descriminalização quando já houvesse caso julgado da condenação. Finalmente, porque o nº 2 do artigo 27º da Constituição, que autoriza a privação da liberdade 'em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão', não tem naturalmente por efeito legitimar constitucionalmente toda e qualquer privação da liberdade determinada por sentença condenatória, por isso que não se refere às condições em que é constitucionalmente legítima a norma incriminadora ou a sua aplicação e execução. Razão pela qual o nº 2 do artigo 27º em nada afecta a determinação do
âmbito de protecção do nº 4 do artigo 29º.
2ª) Em segundo lugar porque, a meu ver, não é de aceitar o entendimento segundo o qual não cabe à lei constitucional 'regular as condições de aplicação dos seus comandos, antes pelo contrário lhe compete deixar ao legislador ordinário o seu
âmbito próprio de actuação. Devendo limitar-se – como faz expressamente a CRP no artigo 18º, especialmente no nº 2 – a regular os limites deste âmbito, definindo os requisitos a que devem submeter-se as leis restritivas de direitos fundamentais' (FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., pág. 190). Com efeito, se há casos em que a consagração na Constituição de determinados direitos fundamentais é compatível com diversos modos de regulamentação legal, através de normas conformadoras, tendo em conta o carácter vago ou indefinido dos conceitos utilizados (cfr. o nº 6 do artigo 29º, que determina que 'os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos), já no nº 4 do artigo 29º, como em muitos outros preceitos constitucionais (cfr. os artigos 24º, nº 2, 30º, nºs 1 e 3, 33º, nº 1, para dar apenas exemplos relativos
à matéria penal e processual penal) o âmbito de protecção do direito fica desde logo, no essencial, definido directamente pela Constituição. Só pode assim convocar-se o artigo 18º em sede de restrição do direito, como considero correcto, e não em sede de fixação das condições normais do seu exercício. Por último, não altera o que fica dito a objecção formulada por FIGUEIREDO DIAS, ob. e loc. cits., segundo a qual 'também a lei fundamental tem, na sua interpretação, de ser submetida a uma cláusula de razoabilidade – e não seria obviamente razoável pensar que a totalidade das condenações penais cuja execução ou cujos efeitos se mantêm teria de ser reformada todas as vezes que uma lei nova viesse atenuar a responsabilidade penal: isso seria seguramente razão bastante para que nenhum legislador jamais se dispusesse a levar a cabo uma reforma do CP!'. A citada objecção apenas teria valor interpretativo se lograsse demonstrar a impossibilidade de aplicação prática do pensamento claramente vertido no nº 4 do artigo 29º, e não meramente um acréscimo de trabalho dos tribunais, o que não sucede. Em Espanha, desde há muito o caso julgado não restringe a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, o que não impediu a entrada em vigor do recente Código Penal de 1995, que, aliás mantém o mesmo princípio no seu artigo 2º, nº 2
(cfr. MIGUEL POLAINO NAVARRETE, 'Derecho Penal – parte general', tomo I,
'Fundamentos científicos del Derecho Penal', Barcelona, 1996, pág. 504; GONZALO QUINTERO OLIVARES, com a colaboração de F. MORALES PRATS e M. PRATS CANUT,
'Curso de Derecho Penal – parte general', Barcelona, 1996, págs. 117-118); e também não inibiu 'o legislador penal do Estado vizinho de fazer as amplas reformas penais que, ao longo destes 125 anos, entendeu necessárias (assim, CP de 1928, CP de 1932, CP de 1944, Revisão de 1963, Reforma de 1973, Revisão de
1983 e Revisão de 1989)' (TAIPA DE CARVALHO, ob. cit., pág. 251). Pode ler-se em MIGUEL POLAINO NAVARRETE (ob. cit., págs. 504-505) :
'Poucas disposições na legislação penal se revelam tão adequadas às exigências político-criminais de execução da Justiça penal como a que estabelece o artigo
2º, 2 do Código Penal de 1995 (cujo precedente legislativo esteve constituído pelo artigo 24º do anterior Código). No marco do debate doutrinal em torno da ratio da retroactividade penal favorável, é de assinalar que a mesma representa o único critério congruente com as exigências de Política criminal consideradas prevalecentes no momento da real aplicação efectiva da lei penal. (...) Não podem as disposições legais servir de forma mais autêntica a Justiça penal senão sendo, antes de mais, leais consigo mesmas. E a norma penal, assim como em geral o sistema punitivo do Estado, que não acolham com incessante dinamismo as novas exigências político-criminais, perceptíveis em cada momento como co-determinantes das sanções penais previstas, não respondem à ratio que essencialmente os legitima. Política criminal e Justiça penal material aparecem assim incindivelmente unidas. Os limites da culpabilidade anterior adequam-se às reais exigências da punibilidade, determinantes da necessidade e do merecimento da sanção penal correspondente ao momento histórico de referência'.
3ª) Em terceiro lugar porque, não se questionando, como se disse, que o caso julgado seja constitucionalmente tutelado, não se aceita que essa tutela constitua fundamento da admissibilidade da ressalva constante do nº 4 do artigo
2º do Código Penal (cfr. PAULO OTERO, 'Ensaio sobre o caso julgado inconstitucional', Lisboa, 1993, pág. 51, que defende a existência de uma
'margem de liberdade conferida pela Constituição ao legislador ordinário para este ponderar e escolher, dentro dos limites constitucionais, uma de várias formas de relacionamento entre o princípio da retroactividade da lei mais favorável e o princípio da intangibilidade do caso julgado'). Penso que, no confronto dos dois valores constitucionais, cede o da intangibilidade do caso julgado, tendo em conta os respectivos fundamentos substanciais. Como igualmente se referiu no acórdão, é sabido que o instituto do caso julgado serve fundamentalmente o valor da segurança jurídica, e que a protecção da segurança jurídica relativamente a actos jurisdicionais se funda em último caso, no princípio do Estado de Direito (cfr. citações feitas, a este propósito, no texto do acórdão). Cabe, todavia, distinguir a este propósito uma dimensão objectiva, consubstanciada na ideia de 'estabilidade das instituições' (cfr., quanto ao caso julgado penal, MARIA FERNANDA PALMA, ob. cit., p. 131), e uma dimensão subjectiva, que se projecta na tutela da certeza jurídica das pessoas, ou na estabilidade da definição judicial da sua situação jurídica. Ora, em matéria criminal, a segurança jurídica visada pela protecção do caso julgado é, num plano subjectivo, exclusivamente a do arguido. Num plano objectivo, está em causa quando muito a 'estabilidade das instituições penais cujo valor é necessariamente inferior à igualdade e à necessidade da pena'
(MARIA FERNANDA PALMA, ob. cit., pág. 131. Não podem utilizar-se, no domínio penal, pelo menos em toda a sua extensão, os argumentos esgrimidos no âmbito do Processo Civil para justificar objectivamente a estabilidade da decisão que adquiriu força de caso julgado, consistente na certeza e segurança dos direitos dos outros interessados. 'Consequentemente, para além do aspecto da multiplicação do trabalho envolvido na repetição de decisões, só tem verdadeiramente relevo a segurança ou estabilidade da situação do arguido. Seria, no entanto, absurdo, fazer prevalecer a segurança e a estabilidade da situação do arguido sobre a respectiva justiça, por forma que o arguido devesse ser ou continuar a ser injustamente punido para assegurar a estabilidade da sua situação de injustiçado. É isso que explica as notáveis diferenças existentes entre os casos em que é admitida a revisão de sentenças penais e os casos em que é admitida a revisão de sentenças civis' (JOSÉ LOBO MOUTINHO, op. cit., pág. 108).
'Com mais frequência do que seria desejável, a jurisprudência tem defendido afincadamente a estabilidade de decisões em processo penal, com indevida postergação do interesse concreto da justiça, para salvaguardar o valor daquelas decisões independentemente da sua justificação, como se a manutenção dum valor jurídico se confundisse com o prestígio funcional de órgãos criadores de direito autónomo', escreve CAVALEIRO DE FERREIRA, por seu turno ('Os pressupostos processuais', Obra Dispersa, I, 1933/1959, Lisboa, 1996, pág. 349). De resto, é a própria Constituição que estabelece, a propósito dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral (artigo 282, nº
3), que o caso julgado penal não é intangível, já que cede perante decisão em contrário do Tribunal Constitucional, quando a norma inconstitucional for de conteúdo menos favorável ao arguido. Assim, observam GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, na 'Constituição da República Portuguesa Anotada', 3ª ed., Coimbra,
1993, pág. 193: 'não estabelecendo a Constituição qualquer excepção, a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável (despenalização, penalização menor, etc.) há-de valer, ao menos em princípio, mesmo para os casos julgados, com a consequente reapreciação da questão, devendo notar-se que, quando a Constituição manda respeitar os casos julgados, admite uma excepção exactamente para a lei penal (ou equiparada) mais favorável'; por seu turno, afirma JORGE MIRANDA, em
'Os princípios constitucionais da legalidade e da aplicação da lei mais favorável em matéria criminal', O Direito, ano 121º, 1989, IV, págs. 698-699:
'tão grande realce presta a nossa Constituição à lei penal mais favorável que a antepõe ao respeito do caso julgado; tão preciosas são para a Lei Fundamental as garantias jurídico-criminais dos cidadãos que prevalecem sobre a garantia do caso julgado; entre a liberdade e a segurança individual em concreto ou subjectiva e a segurança objectiva da comunidade dá preferência, numa postura personalista, à primeira'.
'Não deixa de impressionar a segurança inerente à estabilidade e imodificabilidade do caso julgado, a segurança inerente à garantia dada pelo Estado aos cidadãos de que, uma vez dito o direito pelos tribunais, outros
órgãos não irão diminuir a força obrigatória das suas decisões. Não obstante, a segurança não deve ser hipostasiada a ponto de obnubilar exigências de igualdade e de justiça que fluem da própria vida e que requerem uma acção constante desse mesmo Estado. O caso julgado não é um valor em si; a sua protecção tem de se estear em interesses substanciais que mereçam prevalecer, consoante o sentido dominante na ordem jurídica' (Acórdão nº 87 da Comissão Constitucional, publicado no Apêndice ao Diário da República de 3 de Maio de 1978). E não se diga que a possibilidade de o Tribunal Constitucional não ressalvar os casos julgados relativamente a leis inconstitucionais permite a conclusão de que a Constituição faz prevalecer o caso julgado perante a aplicação da lei mais favorável. Se assim fosse, seria logo o nº 2 do artigo 2º do Código Penal que padeceria de inconstitucionalidade, na parte em que determina o desrespeito pelos casos julgados. Ninguém defenderá semelhante consequência, seguramente. Na verdade, mesmo que não se entenda, com alguns autores, que existe uma obrigação e não uma mera faculdade de o Tribunal Constitucional destruir os casos julgados penais (cfr. JORGE MIRANDA, 'Manual de Direito Constitucional', II, cit., págs. 498-499 e RUI PEREIRA, 'A relevância da lei penal inconstitucional de conteúdo mais favorável', Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano I, nº 1, 1991, págs.
71-72), sempre haverá que ter em conta que a segunda parte do nº 3 do artigo
282º abrange também matéria disciplinar e de mera ordenação social, devendo este Tribunal obedecer a critérios não arbitrários, mas conformes com as valorações constitucionais, e acompanhar do mesmo passo 'a diferenciação de regimes a que constitucionalmente estão sujeitos esses domínios' (assim, com argumentação mais desenvolvida, JOSÉ LOBO MOUTINHO, ob. cit., pág. 110). Em qualquer caso, o respeito pelo princípio da unidade da Constituição e das regras da interpretação sistemática leva necessariamente a entender que não existem aqui fundamentos substanciais para uma derrogação do princípio da necessidade das penas e do consequente princípio da aplicação da lei mais favorável, sediados constitucionalmente no âmbito dos direitos, liberdades e garantias, com todas as consequências hermenêuticas que daqui devem decorrer.
4ª) Em quarto lugar, porque não poderia também proceder uma possível chamada à colação, para admitir a ressalva do caso julgado, do carácter obrigatório das decisões judiciais (artigo 205º, nº 2), ou do princípio da separação de poderes
(artigo 111º, nº 1). Antes de mais, porque, a admitir-se a relevância destes princípios para a resolução do problema sub judicio, haveria logicamente de considerar-se inconstitucional a destruição dos casos julgados nos termos do nº
2 do artigo 2º do Código Penal. Acresce em qualquer caso que não é posta em causa a obrigatoriedade das decisões judiciais, pois do que se trata é de não permitir a continuação para o futuro da execução de uma pena ou de uma pena mais grave fixada em lei anterior, tendo em conta a nova lei. A aplicação retroactiva da nova lei não determina a invalidade da sentença judicial anterior, mas tão só a cessação (ou alteração) da produção dos seus efeitos, sem questionar os seus pressupostos. Diga-se, ainda, que se é admissível que actos de diversa natureza (nova lei que despenaliza; amnistia; perdão; indulto), ulteriores ao caso julgado, venham fazer cessar o cumprimento da pena, por maioria de razão terá de aceitar-se a aplicação à parte da pena que falta executar de uma lei nova que tenha por efeito tão-só uma atenuação da responsabilidade penal. Deve ainda atender-se à circunstância de que a lei penal mais favorável tem as características da generalidade e abstracção, pelo que não afecta o princípio da separação de poderes. Pode assim reafirmar-se que o valor constitucional do caso julgado não constitui fundamento para restringir a garantia da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável. Na verdade, os fundamentos em que assenta uma possível tutela constitucional do caso julgado penal de nenhum modo conduzem à restrição do princípio consagrado no nº 4 do artigo 29º.
5ª) Por último, porque a não aplicação da lei mais favorável às penas em execução por força de decisão transitada em julgado lesaria ainda o princípio da igualdade (neste sentido, MARIA FERNANDA PALMA, ob. cit., págs. 130 e segs.; GERMANO MARQUES DA SILVA, 'Direito Penal Português', I, Lisboa, 1997, pág. 270; RODRIGUES MAXIMIANO, 'Aplicação da lei penal no tempo e caso julgado', Revista do Ministério Público, ano 4º, vol. 13, 1983, pág. 29; RUI PEREIRA, ob. cit., pág. 59, nota 13; TAIPA DE CARVALHO, ob. cit., págs. 234 e segs.). Na verdade, se a sucessão de leis no tempo cria sempre desigualdade (cf. CAVALEIRO DE FERREIRA, 'Direito Penal Português', I, Lisboa, 1991, pág. 119), algumas das quais inevitáveis, o princípio da igualdade obriga a que não subsistam as desigualdades que ainda podem ser eliminadas ('se é impossível afastar inteiramente a desigualdade e se ela é irremediável em certos casos ou quando a pena já foi completamente executada, é preferível que se atenuem os rigores das penas na medida do possível a que se renuncie a obter esse resultado com a aplicação da lei nova só para respeitar uma igualdade ilusória'). A aplicação da lei mais favorável, sem o limite dos casos julgados, vem precisamente afastar a desigualdade que resultaria da solução contrária: a execução da pena, ou da pena mais grave, dependeria da circunstância, meramente fortuita, de o trânsito em julgado da decisão condenatória ocorrer antes ou depois da entrada em vigor da lei mais favorável. Maria dos Prazeres Pizarro Beleza