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Procº nº: 19/2002.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
1. Em 14 de Janeiro de 2002 o relator exarou nos autos a seguinte decisão sumária:-
“1. Tendo, pelo Tribunal Administrativo de Círculo do Porto, interposto M... recurso contencioso de anulação do acto de licenciamento de obras particulares incidente sobre determinado prédio proferido pela Câmara Municipal de Barcelos, veio tal recurso, por sentença proferida em 10 de Novembro de 2000, a ser rejeitado liminarmente por extemporaneidade.
Do assim decidido recorreu o impugnante para a 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo que, por acórdão de 30 de Outubro de 2001, negou provimento ao recurso jurisdicional.
Foi a seguinte a fundamentação carreada àquele nesse aresto:-
‘.................................................................................................................................................................................................................................
Passando-se, agora, à análise dos fundamentos da decisão recorrida, vemos que o senhor juiz, considerando ser o acto lesivo a considerar, o acto de licenciamento de 31-12-96, considerando que o mesmo foi notificado em 31-1-97 e que a petição só deu entrada em juízo em 26-1-00, considerou extemporânea a interposição, do recurso, por ultrapassado o prazo de dois meses de que dispunha, nos termos da al. a) do n.º 1 do art. 28º da LPTA.
Adiantamos que não vemos quaisquer motivos para dissentir do decidido.
Não obstante parecer que o licenciamento de obras só adquire eficácia após a emissão do respectivo alvará, no sentido de só após a emissão de tal documento é exercitável a respectiva licença, será, como defende o recorrente, que a impugnação contenciosa do acto de licenciamento, pelo respectivo destinatário deva fazer-se só após a emissão do alvará?
Confrontando as normas dos arts. 19º a 23º do DL 445/91 de 20-11, diploma a que se reportarão as demais disposições legais sem outra especial menção de origem, com o teor do art. 25. n.º 1 da LPTA, interpretado, por necessidade de raciocínio, ainda, à luz da redacção do então art. 268º/3 da CRP anterior à Lei 1/89, em que se proclama a garantia do recurso contencioso contra actos administrativos definitivos e executórios, independentemente da sua forma, diremos, abreviando caminhos, que, em relação ao destinatário directo, ao seu beneficiário, o acto de licenciamento de construção, é o acto definitivo, o que lhe atribui o direito de construir, de modificar a coisa de sua propriedade, de sobre ela exercer, nos termos da lei e do licenciado, o seu jus abutendi.
O alvará, cuja emissão depende de requerimento, em certo tempo, sob pena de caducidade (art. 20º) e de satisfação de formalidades posteriores (art.
21º) será, de acordo com a lição de Marcello Caetano um acto de execução de licença, porque praticado em consequência necessária de definição das situações jurídicas constantes do acto de licenciamento.
Tenha o acto de emissão do alvará esta natureza ou a de acto complementar, definido por Freitas do Amaral, como acto que a lei manda praticar depois do acto definitivo, ainda na fase declarativa, com vista a assegurar o conhecimento ou a plena eficácia do acto definitivo, em qualquer das perspectivas, o alvará, em princípio, nada acrescenta, modifica, em relação ao acto (definitivo) de licenciamento.
Mas e de certo modo, haverá de reconhecer-se que, não obstante a definitividade do acto de licenciamento, as deliberações só ganham eficácia, após a emissão do alvará, o que pode sugerir, como defende o recorrente, um eventual desvio das regras gerais sobre a interposição de recurso, mormente sobre o início da contagem dos prazos.
No que toca ao requerente do licenciamento de obras, esta questão carece de sentido, pois, para ele, é evidente que o processo está ordenado de modo a que possa reagir ao receber as notificações das deliberações. Se elas são desfavoráveis, ainda que parcialmente, o requerente deve recorrer de imediato.
Admitindo-se, mesmo que tal deliberação possa estar sujeita a condição
(não interessando se de natureza resolutiva ou suspensiva), na medida em que o licenciamento caduca se não for requerido em certo prazo o respectivo alvará, e satisfeitos certos ónus não será de alterar a resposta a esta questão.
Nos casos em que a lei, genericamente, para todos os actos da mesma espécie, estabelece uma condição, um encargo ou um termo como fazendo parte da natureza do acto estamos perante aspectos do próprio tipo legal de acto, estaremos em face de uma condictio juris, ou seja de uma condição imprópria (em confronto com a condição voluntária) que não influi no carácter definitivo e executório do acto para efeitos de impugnação contenciosa.
Sérvulo Correia coloca o problema, escrevendo significativamente:
‘quanto aos actos cujo conteúdo encerra uma condição suspensiva, um termo inicial ou uma exigência modal com efeitos suspensivos, pensamos que eles produzem desde logo e por si só o efeito de direito de inscrever na esfera jurídica dos destinatários uma obrigação ou um direito com tal elemento acessório.
É por isso que serão desde logo impugnáveis, se bem que possam não ser desde logo exequíveis pela Administração no que toca aos efeitos sustidos por tais cláusulas».
Não se vêm razões para que se não possa aceitar tal entendimento que, aliás, até saiu reforçado, actualmente, pois, como é entendimento pacífico da nossa jurisprudência, que, na íntegra subscrevemos e de que se citará, por mero exemplo, o ac. de 18-2-99 - rec. 43.207., ‘I - o núcleo da alteração introduzida no art. 268º/4 da CRP, pela Lei Constitucional 1/89, consistiu em fazer recair a recorribilidade não na circunstância de o acto ser definitivo e executório, mas na sua efectiva lesividade, assim se pretendendo consagrar uma garantia de accionabilidade em relação aos actos que lesem direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares.
II - O preceituado no n.º 1 do art. 25º da LPTA terá, por isso de ser interpretado à luz do regime do n.º 4 do art. 268º da CRP’.
Ora e na parte impugnada foi o acto de 31-12-96 que definiu a situação individual e concreta do ora recorrente, foi tal acto o potencialmente lesivo dos seus direitos e interesses, pelo que dele haveria de ter sido interposto o recurso, no prazo de dois meses subsequentes à respectiva notificação, em
31-1-97.
Nos termos do art. 20º. a emissão do alvará já não vem definir inovadoramente qualquer situação jurídica, dependendo apenas dos pagamentos e formalidades ali previstas.
Desta forma nenhum agravo produziu a decisão recorrida que, assim, merecerá a nossa confirmação.
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Do aresto de que a ampla transcrição se deixou efectuada recorreu para o Tribunal Constitucional M..., o que fez estribando-se na alínea a) do nº
1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pois que, disse:-
‘- pretende ver-se apreciada a inconstitucionalidade da interpretação
(aparentemente) correctiva ou ab-rogatória - adoptada pelo douto Acórdão recorrido a partir do (no parecer do recorrente) incorrecto entendimento da garantia de recurso contra actos administrativos lesivos consagrada no n.º 4 do art.º 268º da CRP - da norma do n.º 1 do art.º 25.º da LPTA (que circunscreve a admissibilidade de recurso contencioso aos ‘actos definitivos e executórios’), nos termos da qual, e em regra, o momento a partir do qual se começa a contar o prazo de recurso contencioso já não é o do eficácia ( ou ‘executoriedade’, na conceptuologia jusadministrativa tradicional acolhida na LPTA), como reza o n.º
1 do art.º 25.º, deixando esta (do mesmo passo) de constituir (em regra) um pressuposto do recurso contencioso, mas o momento (e pressuposto) da lesividade ou definitividade material (?);
- A ora contestada interpretação ‘integrada’ dos citados preceitos constitucionais e legais, em vez de ampliar ou antecipar o direito de impugnação contenciosa de actos administrativos consagrado nos artigos 20.5 e 268.4 da CRP
(e que constitui um corolário do direito fundamental - de natureza análoga - dos particulares a uma tutela jurisdicional efectiva), como foi intenção do constituinte nas sucessivas revisões constitucionais, pelo contrário, conduz a uma (perversa) restrição do mesmo direito’.
O recurso veio a ser admitido por despacho prolatado em 30 de Novembro de 2001 pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal Administrativo.
2. Não obstante tal despacho, porque o mesmo não vincula este Tribunal (cfr. nº 3 do artº 76º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro), e porque se entende que o recurso não deveria ter sido admitido, elabora-se, ex vi do nº 1 do artº 78-A, ainda da mesma Lei, a vertente decisão sumária, por intermédio da qual se não toma conhecimento do objecto da presente impugnação.
Na verdade, como inquestionavelmente deflui da transcrição da totalidade da fundamentação que conduziu ao decidido no acórdão ora intentado recorrer, em passo algum do mesmo foi recusada a aplicação de qualquer normativo constante do ordenamento jurídico ordinário, por padecer ele do vício de desconformidade com a Lei Fundamental.
O passo do aresto onde foram aventadas considerações sobre a influência que a Revisão Constitucional de 1989 teria no dispositivo constante do nº 1 do artº 25º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos aprovada pelo Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, não conduziu, como resulta sem qualquer dúvida da simples leitura daquela peça processual, a qualquer recusa de aplicação de norma jurídica ou a uma qualquer interpretação correctiva ou abrogativa daquele preceito, por forma a ter repercussão na decisão do caso submetido à apreciação do Supremo Tribunal Administrativo.
O que ali se sustentou foi, por um lado, que o que era recorrível era o acto proferido sobre o pedido de licenciamento, pois que esse acto definia a situação jurídica do respectivo requerente e, se porventura lhe causasse qualquer lesividade, o mesmo seria contenciosamente impugnável (ainda que fosse defendido que seria a emissão de alvará que produzia a exequibilidade para a Administração); por outro, que o acto consubstanciador da emissão de alvará mais não era do que uma consequência necessária da definição da situação jurídica decorrente do licenciamento ou a de um acto complementar ou condicional que nada acrescentava ou modificava reportadamento àquele acto de licenciamento.
Deste posicionamento se infere que, ainda que se não tomasse em conta a alteração ao nº 4 do artigo 268º do Diploma Básico operada pela Revisão Constitucional de 1989, então sempre a solução seria a mesma, justamente porque se perspectivaria o acto de licenciamento como o acto definitivo e executório contenciosamente impugnável, não podendo assumir essa natureza o acto de emissão ao alvará.
Em face do exposto, e porque, repete-se, nenhuma recusa de aplicação normativa ocorreu no acórdão querido impugnar, não se toma conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo impugnante, fixando-se a taxa de justiça em cinco unidades de conta”.
2. Da transcrita decisão sumária e nos termos do nº 3 do artº 78º-A da Lei nº 28/82 reclamou para a conferência M....
Em síntese, sustentou:-
- o aresto pretendido recorrer, ao perfilhar o entendimento de que o licenciamento da obra só adquire eficácia após a emissão do respectivo alvará, deu por assente, embora não o afirmasse expressamente, que só havia lugar à interposição de recurso contencioso quando o acto em questão adquirisse eficácia, pelo que foi aquele licenciamento que constituiu o acto potencialmente lesivo dos direitos e interesses do recorrente;
- o dito acórdão, ao dizer que o nº 1 do artº 25º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos tinha que ser interpretado à luz do nº
4 do artº 268º da Constituição, razão pela qual o recurso haveria que ser interposto no prazo de dois meses subsequentes à notificação do acto de licenciamento, recusou, de facto, a aplicação daquele normativo da lei ordinária, ainda que numa determinada interpretação.
Ouvida a Câmara Municipal de Barcelos, não se pronunciou a mesma sobre a reclamação sub iudicio.
Cumpre decidir.
3. É por demais óbvia a improcedência da vertente reclamação.
Na realidade, como deflui da transcrição da fundamentação levada a efeito da decisão judicial desejado impugnar, no mesmo não se recusou a aplicação de qualquer normativo vertido no ordenamento jurídico infra-constitucional, designadamente o que se insere no nº 1 do artº 25º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos.
De facto, no acórdão em crise começou-se por indicar que o acto consistente na emissão do alvará poderia parecer ser um acto que, reportadamente ao acto de licenciamento da obra, seria o que a este último conferia eficácia, adiantando-se, seguidamente, todavia, que a emissão de alvará poderia ser considerada como um acto consequencial necessário ou um acto complementar do acto de licenciamento. Mas, independentemente da caracterização do acto que consubstanciava a emissão de alvará, a verdade era que era o acto de licenciamento de obra que constituía o acto definitivo que atribuía o direito de construir ou de modificar a coisa. E, assim, era o licenciamento que deveria ser perspectivado como o acto potencialmente lesivo dos direitos ou interesses do particular recorrente, ainda que os respectivos efeitos só fossem exequíveis pela Administração após a emissão do alvará, o qual não vinha a definir inovatoriamente a situação jurídica.
Como se sublinhou na decisão sumária em reclamação, quer se atendesse ao preceituado, qua tale, no nº 1 do artº 25º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (que exige, como condição da sua impugnabilidade contenciosa, a definitividade e eficácia dos actos administrativos), quer se atendesse a um entendimento dessa norma de acordo com o qual não eram exigidas aquelas definitividade e executoriedade, mas sim, e só, a lesividade de direitos ou interesses advinda do acto, a solução a conferir ao pleito pelo acórdão intentado recorrer sempre seria a mesma.
E isso porque, por um lado, para o destinatário (ora recorrente) do acto de licenciamento este já se havia de caracterizar como um acto definitivo regulador da situação jurídica e que era passível de produzir imediatos efeitos, motivo pelo qual, tendo por referência a literalidade da norma ínsita no nº 1 do artº 25º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, ele era imediatamente impugnável contenciosamente; por outro, mesmo para quem sustentasse o entendimento de que a exigência da definitividade e executoriedade dos actos administrativos, como pressuposto do seu recurso contencioso, deverá agora ser lida como a da efectiva lesividade do acto, também o acto de licenciamento seria imediatamente recorrível contenciosamente, já que dele resultaria a lesividade de direitos ou interesses legalmente protegidos.
Consequentemente, de concluir é que, para a solução conferida pelo acórdão querido recorrer, não se serviu o mesmo, como ratio decidendi, de qualquer recusa de aplicação do normativo constante do nº 1 do artº 25º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos.
E daí não ser cabido o recurso alicerçado na alínea a) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82. As considerações efectuadas no aresto em apreço sobre a interpretação daquela norma «à luz» do nº 4 do artigo 268º da Constituição constituem, verdadeiramente, um obter dictum que não constituiu, repete-se, a razão de decidir.
Termos em que se indefere a reclamação, condenando-se o impugnante nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 26 de Fevereiro de 2002- Bravo Serra Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa