Imprimir acórdão
Proc. nº 960/98
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. H..., identificada nos autos, intentou no Tribunal de Competência Genérica de Macau acção declarativa com processo comum ordinário contra o Ministério Público e interessados incertos, pedindo seja 'declarada única e legítima proprietária do domínio útil' de certos prédios sitos na Povoação do Campo, Calçada do Quartel, nºs 8 e 15, em Coloane.
Contestou o Ministério Público, concluindo que não são susceptíveis de usucapião os prédios cujo domínio útil se pretende adquirir, ou, pelo menos, que a acção deve ser julgada improcedente por falta de prova dos factos alegados pela autora, ou, no limite, que o tribunal apenas pode reconhecer a titularidade da posse por mais de 20 anos, mas não a propriedade do domínio útil sobre os prédios em causa.
Por requerimento posteriormente apresentado, a autora excluiu do pedido uma parcela de terreno, com a área de 124 m2, exclusão que o Juiz aceitou.
O Tribunal de Competência Genérica de Macau julgou a acção parcialmente procedente, absolvendo os réus do pedido quanto ao prédio identificado com o nº 8 e declarando a autora proprietária do domínio útil do prédio identificado com o nº 15, a que foi atribuída a área coberta de 336 m2 e a área descoberta de 17 m2.
2. O representante do Ministério Público interpôs recurso desta decisão, invocando a Lei das Terras de Macau (Lei nº 2/94/M, de 4 de Julho), segundo a qual, em seu entender, o particular que detenha a posse de um prédio urbano, por mais de vinte anos, só pode adquirir a qualidade de foreiro do Território se a
área da parte edificada for de, pelo menos, 90% da área total do prédio. Acrescentou que não é legalmente possível, com base na redução do pedido para conformação com a exigência da lei em matéria de superfície, desdobrar por sentença o domínio útil do prédio urbano pertencente ao Território. E concluiu que a sentença recorrida violou o artigo 2º, nº 2, da referida Lei nº 2/94/M, já que o prédio em causa tem uma área de logradouro que excede, em muito, a limitação imposta naquele preceito.
A apelada, H..., concluiu assim as suas alegações:
'1- Mostram-se preenchidos os requisitos de aquisição originária, por usucapião do domínio útil por parte da apelada, dado que,
2- a apelada e os seus antecessores se encontram na posse do prédio urbano nº 15 da Calçada do Quartel, há muito mais de vinte anos e a exercem de uma forma pública, contínua, pacífica e de boa-fé.
3- A norma do artº 2 nº 1 da Lei nº 2/94/M de 4 de Julho é um simples limite quantitativo excluindo a usucapião da extensão das terras que vá para além de
10% da área dos edifícios respectivos.
4- Mostram-se preenchidos, no caso em apreço, os requisitos de viabilidade do pedido formulado, não constituindo obstáculo o facto da área do edifício incorporado no prédio ser inferior a 90% da área global do prédio, por tal circunstância apenas implicar a redução quantitativa da área usucapível, o que
5- a apelada em tempo efectuou abdicando da parcela 'C3' e requerendo apenas ser considerada titular do domínio útil das parcelas 'A', 'C1', 'C4' e 'C5', do prédio nº 15 da Calçada do Quartel, em Coloane.'
O Tribunal Superior de Justiça de Macau censurou a decisão recorrida, afirmando que, para julgar a acção procedente, o Juiz a quo utilizou um expediente que lhe estava vedado, 'qual seja o de pura e simplesmente excluir do imóvel a usucapir uma sua parte integrante – nada menos que a parcela C3, com a área de 124m2 –, para assim o poder conformar com as exigências contidas nas disposições dos artºs 5º, nº 4, da Lei nº 6/80/M, de 05 de Julho e 2º, nº 1, da Lei nº 2/94/M, de 04 de Julho, segundo as quais a área descoberta não pode exceder em 10% a
área ocupada pelos edifícios nela incorporados'.
Considerando que a solução adoptada na 1ª instância constitui um desdobramento do domínio útil por via judicial, e vendo na exigência legal de que a área descoberta do prédio não integre mais de 10% da área coberta um requisito essencial da presunção legal de aforamento, sem a qual não é possível a aquisição por usucapião, o Tribunal Superior de Justiça de Macau, por acórdão de 17 de Junho de 1998, concluiu que o prédio no seu conjunto não respeita os limites de superfície legalmente exigidos e concedeu provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, revogando a decisão da 1ª instância e absolvendo os réus do pedido.
3. Inconformada, H... pretendeu interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, para apreciação da constitucionalidade da norma do nº 1 do artigo 2º da Lei nº
2/94/M, de 4 de Julho.
No Tribunal Superior de Justiça de Macau, o Relator do processo convidou a requerente, nos termos do artigo 75º-A, nº 5, da Lei do Tribunal Constitucional, a completar o requerimento de interposição de recurso, indicando a peça processual em que suscitou a questão de inconstitucionalidade e concretizando o sentido da norma que considera inconstitucional.
H... respondeu que:
'[...] a questão da inconstitucionalidade foi suscitada pela ora recorrente nas suas alegações para esse Venerando Tribunal (pág. 7 das mesmas in fine). A recorrente considera que a norma do artº 2 nº 1 da Lei nº 2/94/M de 4 de Julho, foi aplicada num sentido inconstitucional e ainda que houve violação dos princípios constitucionais constantes dos artigos 13 e 62 nº 1 da C.R.P. A norma do artigo 2 nº 1 da Lei nº 2/94/M de 4 de Julho foi aplicada por esse Venerando Tribunal no sentido de que a exigência da Lei de que a área descoberta do prédio não corresponda a mais do que 10% da área ocupada pelos edifícios nele incorporados, é um requisito para que possa funcionar a presunção legal do aforamento pelo Território, permissiva da possibilidade de aquisição por usucapião. Ao invés, a recorrente considera que essa exigência da lei corresponde a um mero
«limite quantitativo da tolerância consentida ao particular possuidor, seja qual for a superfície real do terreno que ele tenha ocupado até então».'
O Relator, no Tribunal Superior de Justiça de Macau, não admitiu o recurso, com o seguinte fundamento:
'Como o recorrente reconhece no texto que antecede, «a questão da inconstitucionalidade foi suscitada ... nas suas alegações» para este Tribunal Superior. Assim, não se pode considerar que tal questão tenha sido levantada no decurso do processo, nos termos em que a expressão é tida pelo artº 70º, nº 1, al. b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção das Leis nºs. 85/89, 07 de Setembro, e 13-A/98, de 26 de Fevereiro, e nem se verifica qualquer das situações anómalas ou excepcionais em que o recorrente tenha sido surpreendido por uma interpretação normativa imprevista, já que é jurisprudência constante deste T.S.J. o entendimento que no acórdão invocado foi dado ao artº 2º, nº 1, da Lei nº 2/94/M, de 04 de Julho e que é sobejamente conhecido no foro de Macau. Por isso não recebo o recurso.'
4. H... reclamou do despacho que não admitiu o recurso, nos termos do artigo 76º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional.
Por acórdão de 7 de Outubro de 1998, o Tribunal Superior de Justiça de Macau confirmou o despacho reclamado.
5. No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer, pronunciando-se no sentido do indeferimento da presente reclamação.
II
6. O fundamento invocado para a rejeição do recurso foi a 'não suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo', considerando que a referência a tal questão apenas surgiu nas contra-alegações produzidas pela interessada em recurso de apelação interposto pelo Ministério Público.
Ora, há que reconhecer que as contra-alegações produzidas em recurso de apelação constituem momento adequado para suscitar uma questão de constitucionalidade normativa, dado que o tribunal de recurso tem ainda oportunidade de se pronunciar sobre tal questão. Aliás, no caso dos autos, tendo a ora reclamante obtido ganho de causa em 1ª instância, só no âmbito do recurso de apelação poderia de modo pertinente colocar o problema, a propósito da interpretação sustentada pelo Ministério Público nas suas alegações.
Não procede portanto a razão invocada pelo Tribunal Superior de Justiça de Macau para a rejeição do recurso de constitucionalidade interposto por H....
7. Todavia, a ora reclamante não suscitou de modo idóneo e adequado uma questão de constitucionalidade normativa nas contra-alegações que produziu em recurso de apelação.
Como este Tribunal tem afirmado repetidamente, a questão de constitucionalidade tem de ser suscitada 'de forma clara e perceptível' (cfr. acórdão nº 560/94, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 29º vol., p. 97 ss), isto é, em termos de o tribunal recorrido ficar a saber que tem essa questão para decidir (cfr. acórdão nº 269/94, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27º vol., p. 1165 ss).
No caso dos autos, a então apelada limitou-se a afirmar, no final da página 7 das suas contra-alegações (fls. 41, in fine): 'ora seria [...] de todo irrazoável e corresponderia a uma denegação de justiça, para além de uma violação de um direito consagrado constitucionalmente, que pudesse entender-se que, provado que a área do prédio excede em mais de 10% a área do edifício incorporado, e tendo a apelada abdicado da parcela que excede os referidos 10%, os tribunais pudessem não reconhecer, pura e simplesmente, a existência de qualquer tutela jurídica à interessada'.
A referência ao problema de constitucionalidade nem sequer foi levada pela apelada às conclusões das contra-alegações (acima transcritas). Não foi objecto de qualquer menção por parte do Tribunal Superior de Justiça de Macau, o que se compreende perante a abordagem difusa e infundamentada utilizada pela ora reclamante.
8. Conclui-se assim que, embora por fundamento diferente do invocado pelo Tribunal Superior de Justiça de Macau, o recurso não deve ser admitido.
III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta.
Lisboa, 9 de Fevereiro de 1999- Maria Helena Brito Vitor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida