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Processo n.º 353/98 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. H... interpõe o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão da Relação do Porto, de 11 de Março de 1998, que negou provimento ao recurso que tinha interposto de um despacho do Juiz do 1º Juízo Criminal da comarca do Porto, que indeferira um requerimento seu, de 13 de Janeiro de 1998. Nesse requerimento, o ora recorrente, invocando a nova redacção que o Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro, deu ao artigo 11º do Decreto-Lei n.º
454/91, de 28 de Dezembro (de acordo com o n.º 3 deste artigo, deixou de haver lugar a punição 'quando o cheque seja emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador'), tinha pedido que fosse declarada cessada a execução da pena de sete meses de prisão que, por sentença do mesmo tribunal, de 15 de Julho de 1997, então já transitada em julgado, lhe tinha sido aplicada por um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelo referido artigo 11º, n.º
1, alínea a) - redacção inicial - conjugado com o artigo 217º, n.º 1, do Código Penal. Pretende o recorrente que este Tribunal aprecie a constitucionalidade 'da interpretação que no acórdão recorrido foi dada ao n.º 2 do artigo 2º do Código Penal', bem como 'a inconstitucionalidade (conquanto superveniente) do artigo
11º do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro'. Neste Tribunal, alegou o recorrente, tendo formulado conclusões que, no que tange ao n.º 2 do artigo 2º do Código Penal e ao artigo 11º do Decreto-Lei n.º
454/91, de 28 de Dezembro - que são únicas normas que, no requerimento de interposição do recurso o recorrente indicou como constituindo objecto do mesmo
-, se resumem ao seguinte:
1. Foram assim violados os princípios da verdade material, in dubio pro reo, igualdade e legalidade, tendo, por isso, sido feita uma interpretação inconstitucional do [...] n.º 2 do artigo 2º do Código Penal, o n.º 3 do artigo
11º do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28/12, face ao que dispõem as artigos 1º,
13º,n.º 1, 25º, 29º, 32º, nºs 1 (uma das garantias de defesa do arguido reside na análise cuidada da existência ou não de todos os pressupostos da aplicação da pena e da aplicação efectiva do n.º 2 do artigo 2º do Código Penal) e 2 e 5 da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que por via deste recurso se pretende ver sanada.
2. Logo, ao não revogar a punição s a prisão por um crime que sabemos já não ser, o douto acórdão recorrido violou o artigo 204º, por força do disposto nos artigos 8º, n.º 1, e 27º, nºs 1 e 2, todos da CRP, inconstitucionalidade, também, que fica expressamente invocada.
3. É que ao contrário do que se depreende do douto acórdão recorrido, não é o Decreto-Lei n.º 454/91 na sua nova redacção que se reputa inconstitucional, mas a prisão por emissão de cheque sem provisão enquanto tal, na medida em que o bem jurídico que aquela incriminação visava salvaguardar foi claramente desvalorado pela comunidade jurídica enquanto bem jurídico-criminalmente susceptível daquela protecção. A nova redacção do Decreto-Lei n.º 454/91 apenas veio confirmar esse facto. Nestes termos, deve considerar-se inconstitucional:
(a). a interpretação que no acórdão recorrido se dá ao n.º 2 do artigo 2º do Código Penal, enquanto se entenda que dela decorre a necessidade de o arguido fazer a prova da inexistência de uma condição objectiva de punibilidade que não conste da sentença e que lhe cumpra o ónus de interpor recurso de revisão para o fazer;
(b). bem assim [...] a prisão por emissão de cheque sem provisão, por descriminalização da respectiva conduta. Também o Procurador-Geral Adjunto aqui em exercício produziu alegações, que concluiu como segue:
1º. Não deverá conhecer-se do recurso quanto à interpretação do artigo 2º, n.º
2, do Código Penal, que o recorrente põe em causa por, em seu entender, ser incompatível com a Constituição, porque tal interpretação não foi acolhida pela decisão recorrida.
2º. Também não deverá conhecer-se da suscitada questão da inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 454/91, por, uma vez que se considerou não haver lugar à sua aplicação, não Ter sido apreciada pela decisão recorrida. Ouvido o recorrente sobre a questão prévia de não conhecimento do recurso suscitada pelo Ministério Público, veio ele dizer, a concluir, o seguinte:
1. Resulta bem evidente, quer do que se diz sob II a V nas alegações, quer das
1ª a 4º conclusões, que a interpretação do nº 2 do Art. 2º do Código Penal que se pretende seja declarada inconstitucional é a seguinte:
'Os factos a ter em linha de conta, para o efeito da aplicação do nº 2 do Art.
2º do Código Penal - isto é, a lei nova, que vem , apenas, os que ficaram assentes na sentença condenatória... 'Assim, o facto de não constar da sentença condenatória uma condição objectiva de punibilidade, face à nova lei, não é suficiente para a aplicação daquele normativo. Defende o recorrente, também com clareza, impor a C.R.P. uma interpretação diversa, no sentido de que a carência, na sentença condenatória, de uma condição objectiva de punibilidade face à nova lei que criminaliza a conduta, deverá ter como efeito, por força do nº 2 do Art. 2º do Código Penal, a imediata cessação da execução e dos efeitos penais de condenação, por se ter de considerar a conduta descriminalizada face à aludida carência.
2. Acontece no entanto que o acórdão recorrido avançou uma solução para o que indubitavelmente poderia ser uma injustiça. O recorrente, sendo certo que à evidência atacou a interpretação referida na precedente conclusão, por a considerar inconstitucional, no pedido, adiantou-se, acabando por transmitir a ideia de que a interpretação que verberava era, não aquela, mas a própria via de solução que em rigor, como bem salienta o Ministério Público, não é uma interpretação da norma, mas a via de solução apontada, em consequência daquela interpretação.
3. Não obstante, aquele pedido demanda tão-só uma interpretação restritiva, pois como se disse na conclusão 1ª desta resposta, é fácil de ver que o mandatário do recorrente, levado por aquele afã de demonstrar a inconstitucionalidade de tudo
, quer da interpretação da norma quer da via de solução apontada ... 'magis dixit quam voluit', tendo acabado por salientar a última ' a via de solução ' em detrimento da primeira ' a interpretação da norma para que, face à justiça a que tende, a Relação não quis deixar de apontar um eventual 'remédio'. Interpretação restritiva do pedido que pelos motivos expostos pode e, salvo melhor e certamente mais douta opinião, deve ser feita.
4. Ainda que assim se não entenda, deveria o Exmo. Conselheiro--Relator, por si ou sugestão de um dos Exmos. Conselheiros-Adjuntos, nos termos do nº 4 do Art.
690º do C.P.C., em relação ao Exmo. Conselheiro-Relator, no âmbito da competência que lhe atribui a al.. b) do Art. 700º do C.P.C., aplicável expressamente por força do disposto no Art. 79º B da Lei 28/82 de 15/11, na redacção da Lei nº 85/89 de 07/09 e de acordo com o argumento 'a maiori ad minus' convidar o recorrente a corrigir e ou esclarecer o pedido, não podendo é, nunca, por aquele motivo, deixar de se conhecer do objecto do recurso.
5. O argumento de que se não aplicou a nova redacção do D.L. nº 454/91 é absolutamente falso, pois em parte alguma se viu a pretensão da manutenção da privação da liberdade de um indivíduo por força de uma lei (ou redacção) que não está em vigor. Foi obviamente aplicada a nova redacção do D.L. nº 454/91, mal, para manter o arguido preso. De qualquer forma, julgávamos totalmente esclarecida esta questão, através do que se disse na conclusão 5, in fine, nas alegações onde se explicita que o que se põe em causa, considerando-a inconstitucional é a incriminação por emissão de cheque sem provisão, face à nova realidade axiológico-normativa, expressa na nova redacção operada pelo D.L. nº 316/97 de
19/11. Ademais, nos termos do nº 1 do Art. 71º e da al. b) do nº 2 do Art. 72º da L.T.C. o que permite trazer as questões a este Alto Tribunal é o facto de a inconstitucionalidade ter sido suscitada nas instâncias e não o de ter sido apreciada. Termos em que devem improceder ambas as questões prévias suscitadas pelo Ministério Público, conhecendo-se do bjecto do recurso como é de direito e justiça.
2. Cumpre decidir. E, desde logo, se deve conhecer-se do recurso. II. Fundamentos:
3. Pressupostos do recurso da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional são, entre outros, que o recorrente tenha suscitado a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica (ou de uma certa interpretação da mesma), durante o processo (é dizer: em regra, antes de julgada a questão a que respeita a inconstitucionalidade suscitada), e que, não obstante essa acusação de ilegitimidade constitucional, a decisão recorrida tenha feito aplicação dessa norma (ou dessa interpretação) no julgamento do caso. Quando se questiona a inconstitucionalidade de uma determinada interpretação de certa norma legal, tem que enunciar-se, com a necessária precisão e clareza, qual o sentido dessa norma que se tem por violador da Constituição.
É, na verdade, necessário que este Tribunal, no caso de vir a julgar inconstitucional uma tal interpretação em recurso de constitucionalidade, possa enunciar, na decisão que proferir, o sentido com que a norma não pode ser aplicada, por ser incompatível com a Lei Fundamental. Vejamos, então, como se passaram as coisas no presente caso.
3.1. Quanto ao artigo 2º, n.º 2, do Código Penal: O recorrente - que, nas alegações para a Relação, não suscitou, sequer, ao menos de forma clara e perceptível, a inconstitucionalidade de uma qualquer interpretação do artigo 2º, n.º 2, do Código Penal - pretende que esse normativo
é inconstitucional, quando interpretado no sentido de que dele 'decorre a necessidade de o arguido fazer a prova da inexistência de uma condição objectiva de punibilidade que não conste da sentença e que lhe cumpra o ónus de interpor recurso de revisão para o fazer'. O mencionado artigo 2º, n.º 2, dispõe: O facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções; neste caso, e se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais. Como sublinha o Ministério Público, o acórdão recorrido não aplicou tal normativo com essa interpretação. O que tal aresto, no fundo, decidiu foi que, no caso, se não podia aplicar o regime previsto nesse normativo às situações de descriminalização posteriores à prolação da sentença condenatória transitada em julgado, em virtude de a matéria de facto dada como provada na sentença - única a que se podia, nesse momento, atender - não permitir sustentar a conclusão de se estar em presença de uma situação dessas. De facto, o dito acórdão disse que o artigo 11º do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na nova redacção do Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro,
'consente que os factos que subjazem à condenação [do arguido] continuem a ser criminalmente puníveis', bastando, para tanto, que 'o cheque em causa tenha sido emitido e entregue na data nele aposta, que o cheque não tenha sido pré-datado', pois que apenas foi descriminalizado o cheque pré-datado. Ora - acrescentou -, a sentença condenatória, já transitada em julgado, não dá resposta à questão de saber se o cheque por que o arguido foi condenado era ou não pré-datado; e, por isso, não podia fazer-se cessar a execução da condenação imposta.
Nesse aresto, acrescentou-se que 'a hipótese de se tratar de um cheque pré-datado é, face à nova lei, um facto novo - que o arguido tem que provar - e que pode fundamentar um recurso extraordinário de revisão, em conformidade com o preceituado no artigo 449º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, esse o caminho a seguir , e não [...] o que [...] seguiu o recorrente'. Com dizer isto, obviamente que o acórdão recorrido não interpretou o artigo 2º, n.º 2, do Código Penal, em termos de nele se impor ao arguido 'o ónus de interpor recurso de revisão' para 'fazer a prova da inexistência de uma condição objectiva de punibilidade que não conste da sentença': desde logo, porque um tal sentido o não comporta o seu teor verbal, e o intérprete não pode considerar 'o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso' (cf. artigo 9º, n.º
2, do Código Civil). O que o acórdão recorrido, a todas as luzes, quis significar foi que essa situação por si hipotizada, a verificar-se, era susceptível de abrir a via do recurso extraordinário de revisão, ao abrigo do disposto no artigo 449º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal.
É, pois, para este preceito de direito processual - e não para o artigo 2º, n.º
2, do Código Penal - que aponta a referida passagem do acórdão recorrido. Dito isto, há que concluir que, não tendo o acórdão recorrido interpretado (e aplicado) o artigo 2º, n.º 2, do Código Penal com o sentido que o recorrente considera inconstitucional, não pode este Tribunal conhecer do recurso interposto, enquanto tem por objecto tal normativo.
3.2. Quanto à norma do artigo 11º do Decreto-Lei n.º454/91, na sua nova redacção
(prisão por emissão de cheque sem provisão): Começa por recordar-se que, nas próprias palavras do recorrente, 'não é o Decreto-Lei n.º 454/91 na sua nova redacção que se reputa inconstitucional, mas a prisão por emissão de cheque sem provisão enquanto tal, na medida em que o bem jurídico que aquela incriminação visava salvaguardar foi claramente desvalorizado pela comunidade jurídica enquanto bem jurídico criminalmente susceptível daquela protecção. A nova redacção do Decreto-Lei n.º 454/91 apenas veio confirmar esse facto'. Algo de semelhante tinha já o recorrente afirmado, quando alegou perante a Relação. Disse, na oportunidade: 'ao manter a punição e a prisão por um crime que sabemos já não ser, o Meritíssimo violou o artigo 204º, por força do disposto nos artigos 8º, n.º 1, e 27º, nºs 1 e 2, todos da CRP, inconstitucionalidade, também, que fica expressamente invocada'. Parece, assim, que, em direitas contas, o recorrente não questionou perante a Relação - nem questiona agora - a constitucionalidade de uma norma legal (no caso, da norma do artigo 11º do Decreto-Lei n.º 454/91), mas sim a constitucionalidade da própria decisão judicial, em si mesma considerada. O que, de resto, está de acordo com o facto de, tanto nas alegações para a Relação, como nas que apresentou neste Tribunal, ter incluído o mencionado artigo 11º no rol das normas violadas. Ora, este Tribunal só tem competência para apreciar a constitucionalidade das normas jurídicas que os restantes tribunais desapliquem com fundamento em inconstitucionalidade, nas suas decisões, ou das que aí apliquem não obstante a sua compatibilidade com a Constituição ter sido questionada pelas partes. A competência para apreciar a constitucionalidade das decisões judiciais, consideradas em si mesmas - que é própria de sistemas que consagram o recurso de amparo - não a detém, entre nós, o Tribunal Constitucional. Por isso, a ser aquele o sentido da arguição de inconstitucionalidade feita pelo recorrente, o Tribunal também não poderia conhecer do recurso, enquanto ele tem por objecto 'a prisão por emissão de cheque sem provisão, por descriminalização da respectiva conduta' (para se usarem as próprias palavras do recorrente). Suposto, porém, que o recorrente suscitou a inconstitucionalidade do artigo 11º do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro, essa suscitação só podia fazer sentido, se reportada ao n.º 1, pois é ele que continua a punir criminalmente a emissão de cheques sem cobertura. Já não faria qualquer sentido, se reportada ao n.º 3, pois que este descriminalizou a emissão de cheques pré-datados. Ora, o acórdão recorrido não aplicou aquele artigo 11º, n.º 1, na sua nova redacção, nem tão-pouco na primitiva. A redacção original apenas foi aplicada pela sentença da 1ª instância. De resto, é o próprio acórdão recorrido que frisou que 'não há lugar à aplicação do Decreto-Lei n.º 454/91, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei
316/97'. E, por isso mesmo, concluiu: 'não tem cabimento a abordagem da suscitada questão da sua eventual inconstitucionalidade'.
O Tribunal não pode, pois, conhecer do recurso, tendo por objecto a norma que se contém neste preceito legal. III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:
(a). não tomar conhecimento do recurso;
(b). em consequência, condenar o recorrente nas custas, com taxa de justiça que se fixa em oito unidades de conta. Lisboa,29 de Julho de 1998 Messias Bento José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Beleza Alberto Tavares da Costa Luis Nunes de Almeida