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Processo n.º 638/10
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
(Conselheiro Gil Galvão)
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. O Ministério Público interpôs recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 de 25 de novembro (LTC), do despacho proferido no 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Gondomar que desaplicou, por serem materialmente inconstitucionais, as normas constantes do n.º 1 do artigo 1817º do Código Civil e da alínea b) do n.º 3 do mesmo artigo, na redação dada pela Lei n.º 14/2009 de 1 de abril, nas quais se prevêem prazos de caducidade para o direito de investigar a paternidade.
2. Recebido o recurso, o Ministério Público alegou e concluiu que deveria “confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade adotado na decisão recorrida”.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II – Fundamentação
3. A primeira questão de inconstitucionalidade foi já objeto de análise do Plenário do Tribunal, que, chamado a pronunciar-se nos termos previstos no n.º 1 do artigo 79º-A da LTC, decidiu, no Acórdão n.º 401/2011 (Diário da República, 2ª Série, de 3 de novembro de 2011), “não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817º n.º 1 do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009 de 1 de abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante”.
É esta solução que se adopta no presente caso, em aplicação da citada jurisprudência.
4. Já a inconstitucionalidade da atual redação da alínea b) do n.º 3 do artigo 1817º do Código Civil, aplicável às ações de investigação de paternidade por força da norma remissiva constante do artigo 1873º daquele Código, não foi ainda objeto de decisão deste Tribunal, embora o tenha sido a norma resultante das redações anteriores à que foi introduzida pela Lei n.º 14/2009 de 1 de abril. É a seguinte a redação atual do preceito (Lei n.º 14/2009):
“[...] A ação pode ainda ser proposta nos três anos posteriores à ocorrência de algum dos seguintes factos: [...]
b) Quando o investigante tenha tido conhecimento, após o decurso do prazo previsto no n.º 1, de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação, designadamente quando cesse o tratamento como filho pela pretensa mãe;[...].”
Nas já referidas versões anteriores à citada Lei n.º 14/2009, o prazo de caducidade fundado em idênticas circunstâncias encontrava-se estatuído no n.º 4 do artigo 1817º e era de apenas um ano. Assim, de acordo com a redação do Decreto-Lei n.º 496/77 de 25 de novembro, o aludido n.º 4 estatuía que “Se o investigante for tratado como filho pela pretensa mãe, a ação pode ser proposta dentro do prazo de um ano, a contar da data em que cessar aquele tratamento”. Esta redação viria a ser alterada pelo Decreto-Lei n.º 21/98, de 12 de maio, passando a constar do mesmo número que “Se o investigante for tratado como filho pela pretensa mãe, sem que tenha cessado voluntariamente esse tratamento, a ação pode ser proposta até um ano posterior à data da morte daquela; tendo cessado voluntariamente o tratamento como filho, a ação pode ser proposta dentro do prazo de um ano a contar da data em que o tratamento tiver cessado”.
5. Nos acórdãos n.ºs 99/88 e 370/91 o Tribunal pronunciou-se pela não inconstitucionalidade dos prazos previstos nos n.ºs 3 e 4 do artigo 1817º do Código Civil. Afirmou-se no primeiro dos citados arestos:
“O problema está em saber se, aceite o postulado de que a Constituição consagra um direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da paternidade, ele há de necessariamente traduzir-se, ao nível do sistema legal, no imperativo «absoluto» referido pelo autor, entendido o qualificativo nos estritos termos pressupostos na transcrição feita - ou seja, como excluindo toda e qualquer regulamentação que, não apenas restrinja, mas simplesmente condicione o exercício do direito em causa, e possa vir a traduzir-se, assim, num obstáculo concreto à sua completa fruição.
Ora, tal como ocorre com outros direitos fundamentais, não há por que ser tão radical, e não há por que sê-lo, muito menos, num domínio (como é o do estabelecimento da paternidade de filhos nascidos fora do casamento) onde uma «regulamentação» legislativa, dispondo sobre as condições e os modos do estabelecimento dessa paternidade, é afinal imprescindível para «introduzir e acomodar na vida jurídica» (como diz Vieira de Andrade, ob. cit., p. 217) o direito em questão, ou seja, é condição necessária da sua mesma e real efetividade.
Assente isto, uma distinção básica deverá logo ter-se aqui em conta, dentro das intervenções legislativas ou das normas legais respeitantes a direitos fundamentais (cf, por todos, autor e lugar citados): a que decorre justamente entre as normas restritivas desses direitos (normas que encurtam ou estreitam o seu conteúdo e alcance) e as meramente condicionadoras do respetivo exercício (normas que não visam aquele objetivo da redução das faculdades ou potencialidades integradoras do direito em causa e se limitam a definir pressupostos ou condições do seu exercício). Com efeito, enquanto as primeiras, para se legitimarem constitucionalmente, haverão de responder ao conjunto de exigências e cautelas a esse respeito consignadas no artigo 18º, nos 2 e 3, da lei fundamental, já tais exigências e cautelas não se põem, por definição, quanto às segundas, as quais, assim, desde logo e designadamente, não necessitam de uma credencial ou previsão constitucional ou previsão constitucional expressa, autorizando ao legislador a sua emissão. Pois bem: nas normas ora em apreço - e ao contrário do que a recorrente alega - devem ver-se, não propriamente «restrições» ao direito fundamental em causa, mas antes, simplesmente, «condicionamentos» a que tem de obedecer o respetivo exercício. E justamente logo por aí haverá de excluir-se que as mesmas normas violem esse direito.
[...]
12 - Dir-se-á, porém, que, como é oportunamente advertido por Vieira de Andrade (ok cit., p. 228, nº 27), «a distinção entre condicionamento e restrição é fundamentalmente prática, já que não é possível definir, com exatidão, em abstrato os contornos das duas figuras», pelo que «muitas vezes é apenas um problema de grau ou de quantidade». E que, sendo assim, não bastará considerar as coisas na perspetiva «estrutural», antes adotada, para se concluir pela não inconstitucionalidade das normas em apreço, e sempre será preciso aferir da justeza dessa conclusão à luz de um ponto de vista «material» ou «substantivo». Ponto de vista que, ao fim e ao cabo, há de reconduzir-se ainda (tal qual sucede com as «restrições» de direitos) a um critério de adequação e proporcionalidade. Simplesmente, mesmo de um tal ponto de vista, não há fundamento para se chegar a um resultado diverso do apurado. Tudo está em que, face ao direito do filho ao reconhecimento da paternidade, se perfilam outros direitos ou interesses, igualmente merecedores de tutela jurídica: em primeiro lugar, e antes de mais, o interesse do pretenso progenitor em não ver indefinida ou excessivamente protelada uma situação de incerteza quanto à sua paternidade, e em não ter de contestar a respetiva ação quando a prova se haja tornado mais aleatória; depois, um interesse da mesma ordem por parte dos herdeiros do investigado, e com redobrada justificação no tocante à álea da prova e às eventuais dificuldades de contraprova com que podem vir a confrontar-se; além disso, porventura, o próprio interesse, sendo o caso, da paz e da harmonia da família conjugal constituída pelo pretenso pai. É o equilíbrio entre o direito do filho e este conjunto de interesses que normas como as dos n.ºs 3 e 4 do artigo 1817º do Código Civil visam assegurar, sem que se possa dizer que o façam de modo desproporcionado (isto é, com excessivo sacrifício daquele direito), quer considerado o estabelecimento, em si, de prazos de caducidade, quer considerada a duração de tais prazos. E como todos os interesses em presença não deixam igualmente de encontrar ressonância constitucional - seja ainda nos artigos 25º, nº 1 (integridade moral), e 26º, nº 1 (direito à reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar), seja no artigo 67º (proteção da família), seja só no valor da segurança e certeza do direito, já que a tal valor objetivo, que intimamente se conexiona com o direito à proteção jurídica (artigo 20º), não pode negar-se semelhante dignidade num Estado justamente «de direito» -, eis como não pode ver-se excluída pela Constituição a solução consagrada pelo legislador nos preceitos questionados.[...]”
No Acórdão n.º 370/91, o Tribunal seguiu a mesma linha, mas, debruçando-se sobre uma interpretação conforme à Constituição quanto à “cessação do tratamento como filho”, entendeu “não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 1873º, com referência ao n.º 4 do artigo 1817º, ambos do Código Civil, desde que interpretada no sentido de que a cessação do tratamento como filho só ocorre quando, continuando a ser possível esse mesmo tratamento, o pretenso pai lhe ponha voluntariamente termo” (nos autos estava em causa uma interpretação segundo a qual a impossibilidade de continuação do tratamento como filho derivada de doença do pretenso pai correspondia a «cessação do tratamento como filho» para efeitos do disposto no então n.º 4 artigo 1817º do Código Civil).
6. Todavia, no Acórdão n.º 65/2010 foi julgada “inconstitucional, por violação dos artigos 26.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição, a segunda parte da norma constante do n.º 4 do artigo 1817.º do Código Civil (na redação da Lei n.º 21/98, de 12 de maio), aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a proposição da ação de investigação de paternidade, o prazo de um ano a contar da data em que tiver cessado voluntariamente o tratamento como filho”.
Considerou então o Tribunal:
“Está totalmente afastado o risco de “envelhecimento” das provas. Contrariamente ao que acontecia ao tempo da Reforma de 1977, em que só se dispunham em Portugal de meios de prova que excluíam a paternidade (ou a maternidade), os meios de prova técnico-científicos hoje disponíveis permitem, mesmo após a morte, estabelecer uma percentagem de probabilidade de se ser o pai biológico (ou a mãe biológica) superior a 99,5 %, o que, de acordo com as perícias médico-legais, corresponde a uma “paternidade praticamente provada” [...]. Assim, a justificação relativa à prova perdeu todo o seu valor, atenta a atual eficácia e generalização das provas científicas. [...] Independentemente de saber se a previsão de um prazo de caducidade continua ao serviço da tutela de direitos ou interesses constitucionalmente relevantes [...] ou de se saber se é medida necessária (ou seja, conforme ao princípio da exigibilidade, incluído no princípio da proporcionalidade, em sentido amplo) à tutela dos interesses que se contrapõem ao do investigante, o certo é que o prazo aqui concretamente em questão (prazo de 1 ano, consagrado no n.º 4 do artigo 1817.º, na redação anterior à Lei n.º 14/2009) não passa o teste da proporcionalidade (em sentido estrito).[…]
Na economia do artigo 1817.º, o prazo de 1 ano previsto no n.º 4, in fine, constitui um alargamento do prazo-regra fixado no n.º 1. As razões subjacentes são as resultantes da “compreensão das realidades práticas da vida”, assim resumidas por ANTUNES VARELA (em PIRES DE LIMA/ ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, V, cit., 84/85): «Se o filho, nascido fora do casamento, for todavia tratado como tal pelo seu verdadeiro progenitor, embora este não figure no assento de nascimento nessa qualidade ou nem sequer haja no registo assento do seu nascimento, parece evidente que não existe, na esfera das suas recíprocas relações, nenhuma necessidade prática de determinação da relação de filiação, nem sequer ambiente propicio para a instauração da ação judicial. Um tal ambiente e a correlativa necessidade só surgem normalmente a partir do momento em que cessa o tratamento prestado ao investigante pelo seu pretenso progenitor. E daí que a lei, muito judiciosamente, para não fomentar a guerra em ambiente que era de paz familiar, só a partir do momento de rutura inicie a contagem do prazo dentro do qual a ação deve ser proposta, sob pena de caducidade.» Ora, precisamente pelas razões que fundamentaram a previsão de um prazo “mais alargado” para as situações em que o investigante beneficiava do tratamento como filho, se tem de concluir que o prazo de 1 ano a contar da cessação voluntária desse tratamento é, à luz dos critérios de proporcionalidade e adequação exigidos pelo artigo 18º, n.º 2, da Constituição, manifestamente insuficiente e desadequado.”
[...]
“A este argumento – o de que o “impedimento moral” (que fundamenta a previsão de um prazo de caducidade mais longo que o prazo-regra) se mantém presente após a cessação voluntária do tratamento como filho e permanece durante um longo período de tempo ou mesmo, em certos casos facilmente conjeturáveis, durante toda a vida do investigado – há ainda que acrescentar uma outra razão demonstrativa da limitação excessiva de tal prazo e respeitante ao termo inicial do mesmo.
O prazo de 1 ano em questão começa a contar da “cessação voluntária do tratamento como filho” pelo pretenso pai. É sabido que o tratamento de alguém como filho se traduz numa série de atos e atitudes do pretenso pai, destinados a prestar a investigante um mínimo de assistência material, afetiva e moral [...]. A cessação de tal tratamento consubstanciar-se-á também numa sucessão de atos ou atitudes – ou, muitas vezes, de meras omissões – demonstrativas, não só de que o investigado já não beneficia de tal assistência (cessação do tratamento como filho), mas também de que o investigante teve intenção de fazer cessar essa assistência (cessação voluntária). Daqui se extrai sem esforço a dificuldade em demonstrar o momento exato em que cessou o tratamento voluntário como filho. Embora a prova do esgotamento do prazo de caducidade incumba ao investigado (artigo 1817.º, n.º 6, do Código Civil, na redação da Lei n.º 21/98), o certo é que estas circunstâncias agravam a exiguidade do prazo em questão. Em rigor, obrigam o investigado a, por cautela, agir judicialmente ao primeiro sinal de cessação voluntária do tratamento como filho, sob pena de deixar esgotar o curto prazo de 1 ano. Ou seja, nas palavras do citado voto de vencido, «obriga-se o investigante a tentar obter por via de um litígio o que ele, muito humanamente procurará obter por via de um ato voluntário, tanto mais quanto já beneficiou do tratamento como filho por parte do investigado». Em suma, a norma constante do n.º 4 do artigo 1817.º do Código Civil (na redação da Lei n.º 21/98, de 12 de maio), aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a proposição da ação de investigação de paternidade, o prazo de um ano a contar da data em que tiver cessado voluntariamente o tratamento como filho, traduz uma restrição desproporcionada ao direito fundamental à identidade pessoal, em violação do disposto nos artigos 26.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição”.
7. Já anteriormente, no Acórdão n.º 626/2009, o Tribunal julgara inconstitucional, “por violação do disposto nos artigos 26.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição, a norma constante do n.º 3, do artigo 1817.º, do Código Civil, na redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de novembro, quando interpretado no sentido de estabelecer um limite temporal de 6 meses após a data em que o autor conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito no qual o pretenso pai reconhece a paternidade, para o exercício do direito de investigação da paternidade”. Em causa estava o prazo legalmente fixado para instauração de ação de investigação de paternidade então previsto no n.º 3 do artigo 1817º do Código Civil e que encontra agora previsão na alínea a) do atual n.º 3 do mesmo artigo, introduzida pela Lei n.º 14/2009, de 1 de abril. Escreveu-se no referido Acórdão que “O estabelecimento de um prazo de caducidade para o exercício do direito à investigação de paternidade nestes casos, revela-se, em abstrato, uma limitação adequada, necessária e proporcional deste direito, para satisfação do interesse da segurança jurídica, como elemento essencial de Estado de Direito (artigo 2.º, da C.R.P.). Contudo, para além do modo como se processa a contagem desse prazo, importa também saber se este permite, em concreto, o exercício do direito em tempo útil, ou se, pelo contrário, é de tal modo exíguo que inviabiliza ou dificulta gravemente esse exercício, tornando-se numa verdadeira restrição ao conteúdo daquele direito fundamental [...]. O prazo de caducidade de 6 meses em apreço, ainda que estabelecido relativamente à existência de um documento escrito no qual o pretenso pai reconhece inequivocamente a sua paternidade, apresenta-se objetivamente exíguo para efeito de serena avaliação e ponderação de todos os fatores que podem condicionar a difícil tomada de decisão de investigar a paternidade por parte de quem até então não tinha quaisquer razões, ou pelo menos razões sérias, que justificassem a propositura de uma ação de investigação da paternidade contra uma determinada pessoa na qualidade de pretenso pai.[...]”.
8. Por fim, no Acórdão n.º 401/2011, o Plenário do Tribunal não julgou inconstitucional a norma do artigo 1817º n.º 1 do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009 de 1 de abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante. O Tribunal Constitucional considerou que o referido prazo de dez anos, compreendido numa ponderação integrada do conjunto de prazos de caducidade estabelecidos nos diversos números do artigo 1817º do Código Civil, se revelava “suficiente para assegurar que não opera qualquer prazo de caducidade para a instauração pelo filho duma ação de investigação da paternidade, durante a fase da vida deste em que ele poderá ainda não ter a maturidade, a experiência de vida e a autonomia suficientes para sobre esse assunto tomar uma decisão suficientemente consolidada”.
9. Tendo a decisão recorrida aderido à jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que sustenta a imprescritibilidade das ações de investigação de paternidade (por todos, Acórdão STJ n.º 23/2006), e considerando ainda a jurisprudência do Tribunal Constitucional que afastou aquela imprescritibilidade (Acórdão n.º 401/2011), vejamos se o atual prazo para propositura daquela ação, quando assente em posse de estado – três anos contados a partir da cessação desta –, é conforme à Constituição.
10. No decurso da evolução jurisprudencial já exposta, o Tribunal tem, no entanto, mantido a linha central de fundamentação das suas decisões. Essa linha assenta na consideração de que a fixação de prazos de caducidade para as ações de investigação da filiação não é, em si, inconstitucional. A jurisprudência do Tribunal tem divergido, não no que toca à conformidade constitucional da fixação de prazos para as ações de investigação da filiação, mas em relação à proporcionalidade dos prazos concretamente fixados.
O juízo de inconstitucionalidade depende, na verdade, da ponderação de direitos ou interesses contrapostos. A admissibilidade da sujeição das ações de investigação da filiação a prazos prende-se com o reconhecimento de que os valores que as referidas ações visam salvaguardar não são valores absolutos; o Tribunal tem aceitado que o legislador opte por salvaguardar outros valores, merecedores de proteção, que, em concreto, se podem revelar conflituantes com o direito à identidade pessoal. Assim o diz o Acórdão n.º 446/2010:
“Deve salientar-se, todavia, que este movimento de reforço da tutela do interesse do filho em conhecer as suas origens genéticas e sociais, se consolidou o princípio de verdade biológica como “estruturante de todo o regime legal”, de forma alguma lhe atribuiu autónoma dignidade constitucional (cfr. Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, Curso de direito de família, II, tomo I, Coimbra, pág. 52). A verdade biológica “não pode fundamentar, por si só, um juízo de inconstitucionalidade”, como salientou, relativamente à norma que fixa um prazo de propositura da ação de impugnação da paternidade, o Acórdão n.º 589/2007. Muito menos foi alguma vez aceite que esse princípio seja dotado de valor absoluto, que o leve a sobrepor-se a todos os demais. A verdade biológica impõe-se na medida em que tal seja exigido por outros princípios e não contrariado por princípios contrapostos eventualmente prevalecentes”.
Deverá, por isso, continuar a entender-se que o legislador ordinário goza de liberdade para determinar, desde que acautelado o conteúdo essencial dos direitos fundamentais em causa, se pretende submeter as ações de investigação da paternidade a um prazo preclusivo ou não, cabendo-lhe ainda fixar, dentro dos limites constitucionais admitidos pelo respeito pelo princípio da proporcionalidade, o concreto limite temporal de duração desse prazo.
É a esta luz que importa analisar se a norma objeto do presente recurso, na medida em que estabelece um prazo de três anos para a propositura da ação de investigação da paternidade / maternidade após a cessação do tratamento como filho pelo pretenso progenitor, respeita a Constituição.
11. Em primeiro lugar, importa afirmar que são diversas as razões que subjazem aos regimes previstos nos n.ºs 1 e 3, alínea b), do artigo 1817º do Código Civil. Assim, enquanto o n.º 1 prevê o prazo geral durante o qual o investigante pode propor a ação de investigação de paternidade (10 anos após a maioridade), já o n.º 3 do mesmo artigo prevê situações que, pela sua particularidade, autorizam que aquele prazo geral seja ultrapassado. No caso presente, a consideração pelo legislador das situações da vida em que o filho nascido fora do casamento é tratado como filho pelo progenitor, levou à conclusão de que a existência daquele “impedimento moral” (nas palavras do Acórdão n.º 65/2010) justificava o alargamento do prazo, possibilitando que o filho instaure a ação de investigação a partir do momento em que cesse aquela posse de estado – cessação essa que ocorrerá, necessariamente, com a morte do presumido progenitor ou, em vida deste, quando, sendo ainda possível o tratamento como filho, o progenitor lhe ponha voluntariamente termo (Acórdão n.º 370/91). Daqui decorre, pois, que a ação de investigação de paternidade pode ser instaurada depois de decorridos 10 anos sobre a maioridade do investigante e mesmo após a morte do investigado, conquanto, neste último caso, a posse de estado se mantenha nessa data.
Neste ponto, não pode deixar de citar-se a doutrina dos Acórdãos n.ºs 626/2009 e 65/2010, e de que fez eco a discussão parlamentar que antecedeu as alterações ao artigo 1817º do Código Civil (nomeadamente, a alteração do prazo de caducidade do direito de instauração de ação de investigação de paternidade assente em posse de estado de um para três anos): “ […] se o investigante é tratado como filho pelo pretenso pai durante um determinado tempo e de repente cessar esse tratamento é legítimo e compreensível que o mesmo investigante mantenha durante um período de tempo, que até poderá ser longo, a legítima esperança de ver reatado o anterior relacionamento. Como se sabe, em muitos casos, a cessação do tratamento é provocada por «ligeiras zangas» ou motivos que, no domínio das relações familiares, tendem normalmente a resolver-se com o tempo. Neste contexto, é óbvio que a instauração da ação de investigação impede que o investigador volte a ter com o investigante o tipo de relação que com ele mantivera, já que a situação de litigância não favorece, de forma alguma, esse reatamento. Não nos parece, pois, aceitável exigir ao investigante que, no curto prazo de um ano a contar da cessação do tratamento como filho pelo pretenso pai, venha aquele a intentar uma ação judicial contra este para ver reconhecida a sua paternidade. Força-se desta forma o investigante a obter através de um litígio o que muito provavelmente procuraria obter através de um ato voluntário, até porque já anteriormente beneficiou do tratamento de filho por parte do pretenso pai” (texto do Projeto de Lei n.º 303/VIII, anexo ao Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República, de 19 de dezembro de 2000).
12. Há que reconhecer que também nas situações em que ocorre a chamada “posse de estado” se pode justificar a previsão de um prazo de caducidade para a investigação da maternidade e da paternidade, desde que destinado à salvaguarda de outros valores ou interesses também eles merecedores de tutela do Direito.
A caducidade das ações de investigação da filiação não constitui apenas uma sanção civilística pelo não exercício do direito durante um certo período de tempo. Como se explica nos vários Acórdãos deste Tribunal supra citados, as razões de fixação de prazos de caducidade para a instauração de ações de investigação de paternidade prendem-se com preocupações não só de segurança jurídica, mas também de abuso de direito, como a que terá estado na assunção originária de prazos de caducidade nesta matéria.
Nesse seguimento, afirmou-se no Acórdão n.º 401/2011:
“A caducidade enquanto figura extintiva de direitos, pelo seu não exercício em determinado prazo, procura satisfazer os interesses da certeza e estabilidade das relações jurídicas, os quais exigem a sua rápida definição, impulsionando os titulares dos direitos em jogo a exerce-los num espaço de tempo considerado razoável, sob a cominação da sua extinção.
Apesar dos decisivos progressos científicos no domínio da determinação da filiação biológica, conjugados com a evolução verificada nos valores dominantes no âmbito da filiação, terem determinado uma significativa desvalorização dos interesses que presidiam ao estabelecimento de prazos de caducidade para a propositura das ações de investigação da paternidade, alguns desses interesses não deixaram de manter um peso atendível pelo legislador nas suas opções de definição do regime da constituição da filiação.
Desde logo, há que ter presente que ainda existem situações, porventura residuais, em que, face à inexistência de um registo universal de ADN, quando não é conhecido o paradeiro do investigado ou este já faleceu (como sucede no presente caso) e o seu cadáver não está acessível (v.g. porque foi cremado), não existindo familiares diretos do suposto pai necessários à realização dos exames periciais, não é possível a determinação científica da filiação, havendo que recorrer aos meios tradicionais de prova, pelo que nessas situações continua a fazer todo o sentido a intenção de evitar a valorização de provas pouco fiáveis devido ao seu envelhecimento, sendo o estabelecimento de prazos de caducidade um meio ao dispor do legislador para atingir esse objetivo.
“Mas, já num plano geral, não é possível ignorar que a constituição e a determinação integral do vínculo de filiação, abrangendo ambos os progenitores, corresponde a um interesse de ordem pública, a um relevante princípio de organização jurídico-social. O dar eficácia jurídica ao vínculo genético da filiação, propiciando a localização perfeita do sujeito na zona mais nuclear do sistema das relações de parentesco, não se repercute apenas na relação pai-filho, tendo projeções externas a essa relação (v.g. em tema de impedimentos matrimoniais). É do interesse da ordem jurídica que o estado pessoal de alguém não esteja amputado desse dado essencial. Daí, além do mais, a consagração da averiguação oficiosa de paternidade (artigos 1864.º e seguintes). E importa que esse objetivo seja alcançado o mais rápido possível, numa fase ainda precoce da vida do filho, evitando-se um prolongamento injustificado de uma situação de indefinição na constituição jurídica da relação de filiação. É do interesse público que se estabeleça o mais breve que seja possível a correspondência entre a paternidade biológica e a paternidade jurídica, fazendo funcionar o estatuto jurídico da filiação com todos os seus efeitos, duma forma estável e que acompanhe durante o maior tempo possível a vida dos seus sujeitos.
Esses prazos funcionam como um meio de induzir o titular do direito inerte ou relutante a exercê-lo com brevidade, não permitindo um prolongamento injustificado duma situação de indefinição, tendo deste modo uma função compulsória, pelo que são adequados à proteção dos apontados interesses, os quais também se fazem sentir nas relações de conteúdo pessoal, as quais, aliás, têm muitas vezes, como sucede na relação de filiação, importantes efeitos patrimoniais”.
(…)
Ora, o meio, por excelência, para tutelar estes interesses atendíveis públicos e privados ligados à segurança jurídica, é precisamente a consagração de prazos de caducidade para o exercício do direito em causa. Esses prazos funcionam como um meio de induzir o titular do direito inerte ou relutante a exercê-lo com brevidade, não permitindo um prolongamento injustificado duma situação de indefinição, tendo deste modo uma função compulsória, pelo que são adequados à proteção dos apontados interesses, os quais também se fazem sentir nas relações de conteúdo pessoal, as quais, aliás, têm muitas vezes, como sucede na relação de filiação, importantes efeitos patrimoniais.
Apesar da inexistência de qualquer prazo de caducidade para as ações de investigação da paternidade, permitindo que alguém exerça numa fase tardia da sua vida um direito que anteriormente negligenciou, poder corresponder a um nível de proteção máximo do direito à identidade pessoal, isso não significa que essa tutela otimizada corresponda ao constitucionalmente exigido”.
13. Na situação em causa, as preocupações mencionadas no Acórdão n.º 401/2011 como sendo valores merecedores de tutela mantêm a sua validade.
Com efeito, como o Tribunal Constitucional reconheceu no citado aresto, interesses gerais ou valores de organização social em torno da instituição familiar podem justificar a consolidação definitiva na ordem jurídica de uma paternidade, porventura não correspondente à realidade biológica, a partir do decurso de um determinado lapso de tempo. Nessa situação estarão os interesses da segurança e da certeza jurídicas respeitantes ao comércio jurídico em geral, que exigem a estabilização das relações de filiação já estabelecidas. Os referidos valores exigem que as relações de parentesco sejam dotadas de estabilidade, impondo-se aos interessados o ónus de agirem rapidamente, de forma a clarificarem as relações de parentesco existentes. Tais considerações mantêm toda a validade nos casos em que ocorreu posse de estado.
É, assim, uma opção válida do legislador pretender proteger os valores da certeza e da segurança jurídica.
14. O que importa questionar neste ponto é saber se, ao estipular um prazo de três anos para a instauração da ação de investigação da filiação, nos casos em que tenha ocorrido posse de estado, o legislador terá ultrapassado a margem de conformação que lhe cabe, fixando um prazo que se afigure desproporcionalmente exíguo e por isso violador do direito à identidade pessoal, previsto no artigo 26.º da Constituição.
Da jurisprudência do Tribunal decorre que, para que os prazos de caducidade das ações de investigação da maternidade e da paternidade respeitem o princípio da proporcionalidade, eles têm de deixar aos titulares do direito à identidade pessoal uma real e efetiva possibilidade de exercerem o direito de investigação. Pode considerar-se, aliás, ser esse o conteúdo essencial do direito em causa, e não um suposto direito a investigar ad aeternum as referidas relações de filiação.
Esta orientação ressalta, aliás, de alguns arestos do Tribunal Constitucional, como se denota da seguinte passagem, retirada do acórdão n.º 626/2009:
“Contudo, para além do modo como se processa a contagem desse prazo, importa também saber se este permite, em concreto, o exercício do direito em tempo útil, ou se, pelo contrário, é de tal modo exíguo que inviabiliza ou dificulta gravemente esse exercício, tornando-se numa verdadeira restrição ao conteúdo daquele direito fundamental”.
É também essa a exigência mínima que decorre da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), que aceita a sujeição das ações de estabelecimento da filiação ao cumprimento de determinados pressupostos, entre eles a exigência de prazos, desde que não se tornem impeditivos do uso do meio de investigação em causa, ou representem um ónus exagerado (assim, se referiu no caso Mizzi c. Malta). A existência de um prazo limite para a instauração duma ação de reconhecimento judicial da paternidade não é, só por si, violadora da Convenção, importando verificar se a natureza, duração e características desse prazo resultam num justo equilíbrio entre o interesse do investigante em ver esclarecido um aspeto importante da sua identidade pessoal, o interesse do investigado e da sua família mais próxima em serem protegidos de demandas respeitantes a factos da sua vida íntima ocorridos há já muito tempo, e o interesse público da estabilidade das relações jurídicas, sustenta a jurisprudência do TEDH.
15. Para averiguar se o novo regime de prazos de caducidade das ações de investigação da filiação respeita o princípio da proporcionalidade e o conteúdo essencial atrás delineado, há que ter em conta dois aspetos: em primeiro lugar, a fixação do início desses prazos e, em segundo lugar, os limites temporais adoptados, a sua duração.
No que toca ao primeiro aspeto, há que ter presente que o prazo em análise começa a contar a partir de factos subjetivos. A norma é clara quando refere que o mesmo só deve começar a contar “quando o investigante tenha tido conhecimento de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação”. Em sentido semelhante, o Tribunal não julgou inconstitucional a norma prevista no artigo 1842.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, na redação dada pelo Decreto-lei n.º 496/77, de 25 de novembro, na medida em que prevê, para a caducidade do direito do marido da mãe impugnar a sua própria paternidade presumida, o prazo de dois anos a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias donde se possa concluir a sua não paternidade (Acórdão n.º 589/2007 publicado em AcTC, 70.º vol., pág. 519). O referido prazo de dois anos, porque contado a partir de um facto subjetivo, foi então considerado como razoável e adequado, na medida em que permite ao impugnante avaliar todos os fatores que podem condicionar a decisão. Em sentido semelhante se orientou também o Acórdão n.º 626/2009:
“Todavia, o prazo especial previsto no n.º 3, do artigo 1817.º, do Código Civil, na redação do Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de novembro, apresenta uma diferença assinalável relativamente ao prazo-regra outrora consagrado no n.º 1 do mesmo artigo, quando aplicável às ações de investigação da paternidade.
Diversamente do que sucedia com o prazo-regra declarado inconstitucional, que começava a correr inexorável e ininterruptamente desde o nascimento do filho e se podia esgotar integralmente sem que o mesmo tivesse qualquer justificação para a instauração da ação de investigação de paternidade contra o pretenso pai, o prazo especial, ora sob análise, apenas começa a correr a partir do momento em que o investigante – com mais de vinte anos de idade – conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito de pai, o que, em princípio, viabilizará a instauração da ação de investigação de paternidade a todo o tempo ainda que sujeita à referida limitação temporal.
Não estamos aqui perante um prazo “cego”, que começa a correr independentemente de poder haver qualquer justificação para o exercício do direito pelo respetivo titular, como sucede com o prazo estabelecido no n.º 1, do artigo 1817.º, do C.C., mas sim perante um prazo cujo início de contagem coincide com o momento em que o titular do direito tem conhecimento do facto que o motiva a agir.
Nesta situação, pelo menos o direito à segurança jurídica, nomeadamente o direito do pretenso progenitor em não ver indefinida ou excessivamente protelada uma situação de incerteza quanto à sua paternidade, justifica que se condicione o exercício do direito do filho à investigação da paternidade, através do estabelecimento de um prazo para o acionar.
Na verdade, tendo o titular deste direito conhecimento dos factos que lhe permitem exercê-lo é legítimo que o legislador estabeleça um prazo para a propositura da respetiva ação, após esse conhecimento, de modo a que o interesse da segurança jurídica não possa ser posto em causa por uma atitude desinteressada daquele.
O estabelecimento de um prazo de caducidade para o exercício do direito à investigação de paternidade nestes casos, revela-se, em abstrato, uma limitação adequada, necessária e proporcional deste direito, para satisfação do interesse da segurança jurídica, como elemento essencial de Estado de Direito (artigo 2.º, da C.R.P.)”.
Note-se que este último aresto julgou inconstitucional a norma, já que, apesar de contado a partir de um dies a quo subjetivo, o limite temporal em causa – 6 meses – foi considerado exíguo.
16. Acontece que o novo regime resultante da redação introduzida pela Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, alia a previsão do prazo previsto no n.º 1 – um prazo geral de 10 anos, contado a partir de facto objetivo – a maioridade do investigante –, com prazos especiais, contados a partir de factos subjetivos, dependentes do conhecimento dos factos motivadores da propositura de uma ação de investigação. Esse prazo garante – na normalidade das coisas – ao pretenso filho o tempo de reflexão necessário para decidir sobre a eventual propositura da ação de investigação. Não obstante, o regime de prazos instituído pela Lei n.º 14/2009 de 1 de abril prevê ainda prazos especiais, que apenas começam a contar a partir da data do conhecimento dos factos que possam constituir o fundamento da ação de investigação. Esses prazos, de três anos, contam-se a partir da ocorrência de um dos seguintes eventos, previstos nas várias alíneas do n.º 3 do artigo 1817º:
(a) ter sido impugnada por terceiro, com sucesso, a paternidade ou maternidade do investigante; (b) ter o investigante tido conhecimento, após o decurso do prazo previsto no n.º 1, de factos ou circunstâncias que justifiquem a acção de investigação, designadamente quando cesse o tratamento como filho pelo pretenso progenitor; (c) em caso de inexistência de maternidade ou paternidade determinada, ter o investigante tido conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação.
Através da conciliação do prazo geral de dez anos com estes prazos especiais de três anos, o atual regime de prazos para a investigação da filiação mostra-se suficientemente alargado para conceder ao investigante uma real possibilidade de exercício do seu direito.
Haverá, por isso, que concluir que o prazo de três anos fixado pela norma objeto do presente recurso não se revela desadequado, desnecessário e desproporcional em relação à salvaguarda do direito à identidade pessoal.
A norma impugnada não viola, enfim, o direito à identidade pessoal, previsto no artigo 26.º da Constituição.
III. Decisão
17. Nestes termos, decide-se:
a) não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817º n.º 1 do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009 de 1 de abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante;
b) não julgar inconstitucional a norma da alínea b) do n.º 3 do artigo 1817º do Código Civil, quando impõe ao investigante, em vida do pretenso pai, um prazo de três anos para interposição da ação de investigação de paternidade;
c) conceder, em consequência, provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada de acordo com o antecedente juízo de não inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 22 de maio de 2012.- Carlos Pamplona de Oliveira – Maria João Antunes – Gil Galvão (vencido conforme declaração anexa) – Rui Manuel Moura Ramos.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Como relator inicial apresentei um memorando que não fez vencimento, pelo que fiquei vencido quanto à alínea b) da presente decisão. Retomo aqui as razões que então expus para concluir pela inconstitucionalidade da norma da alínea b) do n.º 3 do artigo 1817.º do Código Civil, quando impõe ao investigante, em vida do pretenso pai, um prazo de três anos para interposição da ação de investigação de paternidade
1. Tendo a decisão recorrida aderido à jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que sustenta a imprescritibilidade das ações de investigação de paternidade (por todos, Acórdão STJ n.º 23/2006), e considerando ainda a jurisprudência do Tribunal Constitucional que afastou aquela imprescritibilidade (Acórdão n.º 401/2011), vejamos se o atual prazo para propositura daquela ação, quando assente em posse de estado - três anos contados a partir da cessação desta -, é conforme à Constituição.
1.1. Em primeiro lugar, importa afirmar que são diversas as razões que subjazem aos regimes previstos nos nº.s 1 e 3, alínea b), do artigo 1817.º do Código Civil. Assim, enquanto o n.º 1 prevê o prazo geral durante o qual o investigante pode propor a ação de investigação de paternidade (10 anos após a maioridade), já o n.º 3 do mesmo artigo prevê situações que, pela respetiva particularidade, impõem que aquele prazo geral possa, em determinadas situações, ser ultrapassado. No caso presente, a consideração pelo legislador das situações da vida em que o filho nascido fora do casamento é tratado como filho pelo progenitor, de tal forma que não existe na esfera das suas relações recíprocas qualquer necessidade prática de determinação da relação de filiação, nem sequer ambiente propicio à instauração da ação judicial (a chamada “posse de estado”), levou à conclusão de que a existência daquele “impedimento moral” (nas palavras do Acórdão n.º 65/2010) justificava o alargamento do prazo, possibilitando que o filho instaure a ação de investigação a partir do momento em que cesse aquela posse de estado – cessação essa que ocorrerá, necessariamente, com a morte do presumido progenitor ou, em vida deste, quando, sendo ainda possível o tratamento como filho, o progenitor lhe ponha voluntariamente termo (Acórdão n.º 370/91). Daqui decorre, pois, que a ação de investigação de paternidade pode ser instaurada depois de decorridos 10 anos sobre a maioridade do investigante e mesmo após a morte do investigado, conquanto, neste último caso, a posse de estado se mantenha nessa data.
Isto significa também que parte dos argumentos expendidos pelo Tribunal no Acórdão n.º 401/2011 para justificar a conformidade constitucional do prazo previsto no n.º 1 do artigo 1817 º do Código Civil não são aplicáveis ao regime instituído na alínea b) do n.º 3 do mesmo artigo. Com efeito, não se colocam aqui considerações de maior ou menor maturidade do investigante e as preocupações de segurança jurídica não se sobrepõem à força da vivência social quando esta se traduz numa presunção de paternidade resultante da prova de estado, permitindo a investigação decorridos três anos sobre a morte do investigado.
1.2. No presente caso, não está em causa a conformidade constitucional do prazo de três anos após o falecimento do presumido progenitor. Trata-se, portanto, de descortinar se a imposição de tal prazo é razoável e/ou proporcional, em vida do progenitor.
Neste ponto, não pode deixar de repetir-se o que se disse nos Acórdãos n.º s 626/2009 e 65/2010 deste Tribunal e de que fez eco a discussão parlamentar que antecedeu as alterações ao artigo 1817 º do Código Civil (nomeadamente, a alteração do prazo de caducidade do direito de instauração de ação de investigação de paternidade assente em posse de estado de um para três anos): “ […] se o investigante é tratado como filho pelo pretenso pai durante um determinado tempo e de repente cessar esse tratamento é legítimo e compreensível que o mesmo investigante mantenha durante um período de tempo, que até poderá ser longo, a legítima esperança de ver reatado o anterior relacionamento. Como se sabe, em muitos casos, a cessação do tratamento é provocada por «ligeiras zangas» ou motivos que, no domínio das relações familiares, tendem normalmente a resolver-se com o tempo. Neste contexto, é óbvio que a instauração da ação de investigação impede que o investigador volte a ter com o investigante o tipo de relação que com ele mantivera, já que a situação de litigância não favorece, de forma alguma, esse reatamento. Não nos parece, pois, aceitável exigir ao investigante que, no curto prazo de um ano a contar da cessação do tratamento como filho pelo pretenso pai, venha aquele a intentar uma ação judicial contra este para ver reconhecida a sua paternidade. Força-se desta forma o investigante a obter através de um litígio o que muito provavelmente procuraria obter através de um ato voluntário, até porque já anteriormente beneficiou do tratamento de filho por parte do pretenso pai” (texto do Projeto de Lei n.º 303/VIII, anexo ao Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República, de 19 de dezembro de 2000).
Ora, precisamente porque se trata de uma específica vivência social, postulada por um tratamento paternal dispensado a quem não figura no registo como filho, a alteração do prazo de caducidade do direito, em casos de posse de estado, de um para três anos, não altera aquelas conclusões. Na verdade, exigir que o filho instaure ação de investigação de paternidade no prazo de três anos após a cessação do tratamento como filho, quando tal cessação não é necessariamente definitiva – em vida do pretenso progenitor, o filho pode sempre almejar reatar com este as relações entretanto temporariamente cessadas -, impondo-lhe um ónus de instaurar ação contra o próprio pretenso pai e, com isso, arriscar lesar, em grau ainda maior, o relacionamento entre ambos, revela-se desadequado e desproporcionado.
Ao fixar, nas situações em que o filho seja tratado como tal pelo pretenso progenitor, um prazo de caducidade em vida deste último, o legislador ficciona, sem qualquer fundamento válido, que a cessação do tratamento como filho é definitiva, quando se prolongue por mais de três anos. Assim, quando, por ato voluntário (ou omissão), o pretenso pai deixe de tratar o filho como tal, este tem três anos para propor a ação de investigação, o que significa que, na ótica do legislador, a “perda” da posse de estado – situação que, como se disse, é passível de recuperação com o tempo, através de nova aproximação entre os pretensos pai e filho – é definitiva, ainda que a realidade da vida possa demonstrar o contrário.
1.3. Por outro lado, a caducidade não constitui uma mera sanção pelo não exercício do direito durante um certo período de tempo. Como se explica em vários Acórdãos deste Tribunal, as razões de fixação de prazos de caducidade para a instauração de ações de investigação de paternidade prendem-se com preocupações de segurança jurídica ou, até, com razões no quadro do abuso de direito, como a que terá estado na assunção originária de prazos de caducidade nesta matéria – afastar aqueles que apenas queiram, com a declaração de paternidade, obter benefícios patrimoniais. Sucede, porém, que, na situação em causa, nenhuma dessas preocupações tem validade, já que, existindo posse de estado, nenhuma surpresa pode advir do reconhecimento da paternidade. E aí reside mesmo a razão de ser do alargamento do respetivo prazo de caducidade. Parece evidente que quaisquer objeções relacionadas com pretensões patrimoniais ficam afastadas, na medida em que a condição imposta assenta no tratamento do investigante como filho, não podendo ser recebido como uma surpresa ou injustiça o reconhecimento daquela paternidade, em casos de posse de estado. Por fim e pelas mesmas razões, também ficam afastadas pretensas razões de estabilidade e/ou segurança da estrutura familiar do progenitor (ou de estabilidade do próprio progenitor), na medida em que a ação pressupõe a prova de que o progenitor tratava o investigante como seu filho – significando que, para o próprio progenitor, não existia sequer dúvida quanto à sua paternidade. E, como se afirmou no Acórdão n.º 65/2010, já não estão em causa preocupações com o envelhecimento da prova, pelo que também este argumento, expendido no Acórdão n.º 90/88, foi entretanto definitivamente afastado.
2. Pelo exposto, concluo que a norma constante da alínea b) do n.º 3 do artigo 1817.º do Código Civil, ao fixar um prazo de caducidade para a instauração de ação de investigação de paternidade, em vida do progenitor, constitui uma restrição desproporcionada ao direito fundamental à identidade pessoal, em violação do disposto nos artigos 26.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição - Gil Galvão.