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Proc. nº 158/96
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. J..., na qualidade de proprietário das herdades de Abaneja e do Montinho, sitas no troço da auto-estrada Montemor/Évora, requereu junto do Supremo Tribunal Administrativo a suspensão da eficácia da Resolução do Conselho de Ministros nº 24/95, de 1 de Junho (D.R., II Série, de 17 de Junho de 1995), que ampliou a concessão outorgada à BRISA - Auto-Estradas de Portugal, SA, pelos Decretos-Leis nºs 467/72, de 22 de Novembro, 458/85, de 30 de Outubro e 315/91, de 20 de Agosto, integrando no objecto dessa concessão a exploração, construção e conservação, entre outros, do sublanço Montemor-o- -Novo/Évora Oeste, da auto-estrada A6 Marateca/Elvas.
O pedido de suspensão da eficácia da referida Resolução do Conselho de Ministros foi indeferido, por acórdão da 1ª Secção de 17 de Outubro de 1995, em virtude de não se verificarem os requisitos previstos no nº 1 do artigo 76º da LPTA, nomeadamente o da alínea a).
2. J... recorreu deste acórdão para o Pleno da Secção, invocando a inconstitucionalidade da norma contida na alínea d) do artigo 103º da LPTA, norma que limita o recurso dos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo sobre a suspensão de eficácia de actos contenciosamente impugnados aos casos de oposição de julgados.
O recorrente, no que respeita à questão de inconstitucio-nalidade normativa suscitada, sustentou o seguinte:
'(...)
47. É logo no art. 1º da citada Directiva RECURSOS (89/665/CEE) que se refere a garantia de recurso eficaz e sobretudo tão rápido quanto possível
... Por sua vez no art. 2º, nº 8, refere-se o recurso jurisdicional que obviamente não pode admitir qualquer limitação, do tipo da estabelecida na alínea d) do art. 103º da LPTA - ver art. 1º da citada Directiva - pois aí visa-se '(...) garantir que, (...) as decisões tomadas pelas entidades adjudicantes possam ser objecto de recursos eficazes ...' a impor-se sempre o princípio do contraditório e a jurisdição plena na apreciação do pedido de suspensão. Tudo ignorado pelo douto acórdão recorrido.
48. Nestes termos, a lei aplicada pelo douto Acórdão (art. 76º, nº 1 da LPTA), viola o disposto no nº 3 do art. 8º da Constituição, pois a sempre citada Directiva 89/665/CEE, que vigora directamente na ordem interna e prevalece sobre as disposições da LPTA, ou outras, nomeadamente sobre o art.
103º,d) e alíneas do nº 1 do art. 76º da LPTA.'
O requerimento de interposição do recurso foi indeferido, por despacho de 17 de Novembro de 1995, com fundamento na norma contida na alínea d) do artigo 103º da LPTA. Neste despacho, entendeu-se que 'independentemente de saber se aquela Directiva Comunitária é ou não eficaz na ordem jurídica portuguesa certo
é que, além de conter uma simples recomendação - 'Os Estados-membros tomarão as medidas necessárias para ...' - não pode considerar-se aplicável ao incidente de suspensão de eficácia dos actos administrativos e não tem, por isso, virtualidade para revogar ou conduzir à inconstitucionalidade a disposição do art. 103º e alínea d) da LPTA e à consequente admissibilidade do presente recurso como o requerente defende'.
A requerimento do recorrente foi proferido acórdão (de 12 de Dezembro de 1995) que confirmou o despacho de não admissão do recurso do acórdão que indeferiu o pedido de suspensão de eficácia da Resolução do Conselho de Ministros nº 24/95, de 1 de Junho.
3. J... interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12 de Dezembro de 1995, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição das normas contidas nos artigos 76º, nº 1 e 103º, alínea d), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, e no Decreto-Lei nº 315/91, de 20 de Agosto, alterado pelo Decreto-Lei nº 330-A/95, de 16 de Dezembro. O recorrente arguiu também uma inconstitucionalidade por omissão.
O recorrente apresentou alegações, tendo concluído, em síntese, o seguinte:
As normas contidas nos artigos 76º, nº 1, e 103º, alínea d), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, na medida em que contrariam o disposto nos artigos 1º e 2º da Directiva 89/665/CEE, são inconstitucionais, por violação do disposto no artigo 8º, nº 3, da Constituição. Tais normas violam ainda o disposto nos artigos 20º, 62º e 18º, nº 3, da Constituição.
A norma contida no artigo 103º, alínea d), da LPTA é ainda orgânica e formalmente inconstitucional, na perspectiva do recorrente, por violação do disposto no artigo 168º, nº 1, alínea q), da Constituição, uma vez que, estando em causa a regulamentação da competência dos tribunais, não foi conferida ao Governo a necessária autorização legislativa.
O recorrente sustentou ainda, para o caso de assim não se entender, que a norma em causa seria então inconstitucional por violação do artigo 168º, nº 1, alínea b), da Constituição, uma vez que está em causa um direito fundamental - direito ao recurso (artigos 20º e 18º da Constituição).
O recorrente defendeu também a inconstitucionalidade de '... qualquer disposição legal, como a constante do Decreto-Lei nº 315/91, de 20 de Agosto, alterado pelo Decreto-Lei nº 330-A/95, de 16 de Dezembro de 1995 ...', por violação do disposto no artigo 81º da Constituição.
O recorrente invocou, por último, uma inconstitucio-nalidade por omissão, resultante da circunstância de o Estado não ter tomado as medidas necessárias à transposição da referida directiva. O Estado, na perspectiva do recorrente, terá também violado a Constituição, por omissão, na medida em que não impediu o monopólio da Brisa, SA, na exploração de auto-estradas.
4. Por seu turno, o recorrido contra-alegou, tendo restringido o objecto do presente recurso à questão da conformidade à Constituição da norma constante do artigo 103º, alínea d), da LPTA.
O recorrido sustentou igualmente que o Tribunal Consti-tucional só pode apreciar a questão da violação de norma supranacional por norma de direito ordinário interno nos casos '... expressamente previstos no artigo 280º, nº 3, alíneas a), b) e d) ...', da Constituição.
Por outro lado, o recorrido defendeu que a norma em causa não afronta qualquer directiva comunitária, bem como não viola o disposto no artigo
20º, da Constituição, pois, no presente recurso, está tão só em causa uma medida provisória, cujo indeferimento não afecta o direito ao recurso consagrado no artigo 268º, nºs 4 e 5, da Constituição.
Por último, o recorrido alegou que a norma contida no artigo 103º, alínea d), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, não é orgânica e formalmente inconstitucional, pois apenas regulamenta o processo a observar nos tribunais administrativos.
5. O recorrente, notificado para responder à questão prévia suscitada pelo recorrido, propugnou o conhecimento do recurso com fundamento em que a decisão recorrida aplicou as normas impugnadas que, na perspectiva do recorrente, são inconstitu-cionais.
Entretanto, o recorrente requereu a junção aos autos de um documento recebido da Comissão Europeia, onde se pode ler a seguinte passagem:
Quanto à sexta questão (relativa ao art.º 103 (d) da LPTA), limitar-me-ei a chamar a sua atenção para o facto de que a Directiva 89/665 garante unicamente um duplo grau de recurso quando a primeira instância de recurso não tiver natureza jurisdicional, dispondo que nesse caso as decisões tomadas em tal instância devam 'poder ser objecto de recurso jurisdicional ou de recurso junto de outra instância que seja um órgão jurisdicional na acepção do artigo 177º do Tratado' (cfr. artº 2(8) da Directiva 89/665). Pelo contrário, não dispõe que tenha que haver tal duplo grau de recurso quando a primeira instância de recurso for um órgão jurisdicional na acepção do artigo 177º do Tratado.
6. Notificado da junção do referido documento, o recorrido pronunciou-se, afirmando o seguinte:
1. Discute-se nos presentes autos a constituciona-lidade da norma constante da alínea d) do artigo 103º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, por alegada violação do disposto no artigo 8º, nº 3, da Constituição da República.
2. Tendo o Recorrente achado por bem solicitar à Direcção Geral XV da Comissão Europeis 'confirmação', inter alia,da conformidade face à Directiva
89/665 do referido preceito, obteve em resposta a chamada de atenção 'para o facto de que a Directiva 98/665 garante unicamente um duplo grau de recurso quando a primeira Instância de recurso não tiver natureza jurisdicional (... )'
- o que não é aqui o caso.
3. Tal é, tão-apenas, o que de pertinente à Autoridade recorrida se oferece sublinhar.
7. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação A Delimitação do objecto do recurso
8. O recorrente sustenta a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 76º, nº 1, e 103º, alínea d), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, por violação do disposto nos artigos 8º, nº 3, 20º, 62º e 18º, nº 3, da Constituição. No que respeita ao artigo 103º, alínea d), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, o recorrente entende que existe também inconstitucionalidade orgânica e formal, por violação do disposto no artigo
168º, nº 1, alíneas b) e q), da Constituição.
O recorrente invoca também a inconstitucionalidade 'do disposto em qualquer disposição legal, como o Decreto-Lei nº 315/91, de 20 de Agosto, alterado pelo Decreto-Lei nº 330-A/95, de 16 de Dezembro de 1995 ...', por violação do artigo 81º da Constituição.
Por último, o recorrente entende existir uma inconstitu-cionalidade por omissão, em virtude de o Estado não ter impedido a formação do monopólio da Brisa, SA, da exploração de auto-estradas (artigos 283º, nº 2 e 81º, da Constituição), e de não ter dado cumprimento às directivas aplicáveis no caso.
9. Sendo o presente recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, é necessário, para que o Tribunal possa tomar conhecimento do seu objecto, que a questão de constituciona-lidade normativa tenha sido suscitada durante o processo e que as normas cuja conformidade à Constituição se questiona tenham sido efectivamente aplicadas pela decisão recorrida.
Importa, assim, averiguar se estão reunidos estes pressupostos processuais.
10. O acórdão recorrido (acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12 de Dezembro de 1995) não admitiu o recurso para o Pleno da Secção do Supremo Tribunal Administrativo, interposto do acórdão que indeferiu o pedido de suspensão de eficácia da Resolução do Conselho de Ministros nº 24/95, de 1 de Junho, em virtude de o recorrente não ter invocado oposição entre o acórdão recorrido e uma outra decisão do Supremo Tribunal Administrativo [artigo 103º, alínea d), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos].
Verifica-se, portanto, que o Supremo Tribunal Administrativo indeferiu o requerimento de interposição do recurso com base na sua inadmissibilidade legal. Não tomou conhecimento do seu objecto. Deste modo, a
única norma que foi efectivamente aplicada pela decisão recorrida foi a constante do artigo 103º, alínea d), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, não tendo sido aplicada pela decisão recorrida a norma contida no artigo 76º, nº 1, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos.
Com efeito, a norma constante deste último artigo estabelece os requisitos da suspensão de eficácia dos actos administrativos. Mas tal norma foi apenas o fundamento legal do indeferimento do pedido de suspensão de eficácia da Resolução do Conselho de Ministros nº 24/95, de 1 de Junho (acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 17 de Outubro de 1995). Como o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12 de Dezembro de 1995 (acórdão ora recorrido) decidiu não admitir o recurso interposto para o Pleno do acórdão do mesmo tribunal de 17 de Outubro de 1995 (não tendo portanto tomado conhecimento do objecto do recurso), a decisão recorrida, não tendo procedido a um juízo de mérito, não aplicou a norma constante do artigo 76º, nº 1, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos.
Assim, o Tribunal Constitucional não tomará conhecimento do objecto do presente recurso no que respeita à norma contida no artigo 76º, nº 1, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, em virtude de não se verificar o pressuposto processual consistente na aplicação pela decisão recorrida da norma impugnada [cf. artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional]. Considera-se, pois, procedente, nesta parte, a questão prévia suscitada pela entidade recorrida.
11. O que se acaba de se dizer, a propósito do conhecimento do objecto do presente recurso, relativamente à norma contida no artigo 76º, nº 1, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos é, mutatis mutandis, aplicável ao conhecimento do objecto do recurso relativamente às normas contidas no Decreto-Lei nº 315/91, de 20 de Agosto, alterado pelo Decreto-Lei nº 330-A/95, de 16 de Dezembro.
Com efeito, consagrando tais diplomas o regime da concessão à Brisa, SA da exploração de auto-estradas, verifica-se que o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12 de Dezembro de 1995 não aplicou qualquer norma deles constante, pois não conheceu o fundo do pedido, tendo-se limitado a não tomar conhecimento do objecto do recurso por falta dos pressupostos processuais.
Não se constata, portanto, o pressuposto processual que consiste na aplicação pela decisão recorrida da norma impugnada. Tal é, por si só, suficiente para que o Tribunal Constitucional não possa tomar conhecimento do objecto do recurso. E acresce que, relativamente a estes diplomas, não se pode considerar que a questão de constitucionalidade normativa tenha sido suscitada de modo adequado durante o processo.
O Tribunal Constitucional tem entendido que a questão de constitucionalidade não se suscita em tempo quando só é invocada, pela primeira vez, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional
(ou nas respectivas alegações). Por outro lado, tem entendido que a questão não
é, em princípio, suscitada de modo processualmente adequado quando tão-só se indica como globalmente inconstitucional todo um diploma legal (cf. Acórdãos nºs 442/91, 21/92 e 170/92 - D.R., II Série, de 2 de Abril de 1992, de
11 de Junho de 1992 e de 18 de Setembro de 1992, respectivamente).
Ora, o recorrente sustenta a inconstitucionalidade 'do disposto em qualquer disposição legal, como o Decreto-Lei nº 315/91, alterado pelo Decreto-Lei nº 330-A/95, de 16 de Dezembro de 1995 ...' apenas nas alegações do recurso de constitucionalidade (não tendo sequer feito constar do requerimento de interposição do recurso a questão da conformidade à Constituição das normas contidas em tais diplomas).
Deste modo, também não se verifica o pressuposto processual da arguição da inconstitucionalidade normativa durante o processo [artigo 70º, nº
1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional], pelo que o Tribunal não tomará conhecimento do objecto do recurso no que respeita à apreciação da conformidade
à Constituição do Decreto-Lei nº 315/91, de 20 de Agosto, alterado pelo Decreto-Lei nº 330-A/95, de 16 de Dezembro.
Procede assim, também nesta parte, a questão prévia suscitada pela entidade recorrida.
12. O recorrente sustenta, nas alegações do recurso de constitucionalidade, uma inconstitucionalidade por omissão.
Nos termos do disposto no artigo 283º, nº 1, da Constituição, o Tribunal Constitucional aprecia e verifica o não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais, a requerimento do Presidente da República, do Provedor de Justiça ou dos presidentes das assembleias legislativas regionais, nos casos de violação de direitos das regiões autónomas.
Como se constata, o recorrente não é nenhuma das entidades referidas, pelo que carece de legitimidade para requerer a apreciação e a verificação de uma eventual inconstitucionalidade por omissão.
Assim, e desde logo, o Tribunal não tomará conhecimento do objecto do recurso, no que respeita à questão da alegada inconstitucionalidade por omissão, por falta de legitimidade do recorrente para requerer a apreciação de tal questão e pela constatada ausência do processo adequado previsto no artigo
283º, nº 1, da Constituição.
13. Resulta do exposto que a única norma que o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12 de Dezembro de 1995 efectivamente aplicou foi a norma contida no artigo 103º, alínea d), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos.
O recorrente sustenta que, violando esta norma a Directiva
89/665/CEE ela se tornaria inconstitucional, em face do artigo 8º, nº 3, da Constituição.
Ora, a Directiva 89/665/CEE estabelece que as decisões tomadas pelas entidades adjudicantes devem poder ser objecto de recursos eficazes e que os processos através dos quais qualquer medida presumidamente ilegal tomada pela instância de base competente ou qualquer falta presumida no exercício dos poderes que lhe foram conferidos devem poder ser objecto de recurso jurisdicional ou de recurso junto de outra instância que seja um órgão jurisdicional na acepção do artigo 177º do Tratado (artigos 1º, nº 1 e 2º, nº 8, respectivamente).
Importaria, assim, averiguar se a questão suscitada pelo recorrente, de contrariedade ao artigo 103º, alínea d), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos à Directiva, e através disso ao artigo 8º, nº 3, da Constituição consubstanciará, verdadeiramente, uma questão de constitucionalidade normativa, sindicável no âmbito do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, interposto ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional (cf., sobre esta questão, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, p. 81 e ss.).
Contudo, ainda antes de enfrentar tal questão, há que reconhecer que a utilidade de tal abordagem depende da verificação dos vários pressupostos da própria questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente, nomeadamente de ter havido efectiva desaplicação da directiva em benefício da prevalência de uma norma de direito interno e de a mesma directiva ser efectivamente aplicável
à solução do problema jurídico em causa.
Constata-se, porém, que o fundamento da recusa de aplicação da directiva não foi a atribuição de prevalência da norma de direito interno sobre as normas de direito comunitário derivado.
É verdade que o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12 de Dezembro de 1995 considerou que a Directiva 89/665/CEE não seria aplicável ao incidente de suspensão de eficácia dos actos administrativos, não tendo, 'por isso, virtualidade para revogar ou conduzir à inconstitucionalidade ...' da norma contida no artigo 103º, alínea d), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos. Contudo, tal entendimento resultou, não de uma qualquer hierarquização entre as normas de direito interno e normas de direito comunitário derivado, mas sim da circunstância de o caso dos autos não se enquadrar, na perspectiva do tribunal, nas previsões normativas das disposições da directiva que o recorrente entende serem aplicáveis.
Diferentemente, o recorrente entende que a legislação ordinária deveria consagrar um recurso de plena jurisdição e não de mera anulação, na medida em que a directiva exige que as decisões tomadas pelas entidades adjudicantes devem poder ser objecto de recursos eficazes.
Porém, não cabendo, ao menos em princípio, ao Tribunal Constitucional proceder à interpretação da directiva, sempre se dirá que o que está originariamente em causa neste processo é a decisão de indeferimento da suspensão da eficácia do acto administrativo, meio processual acessório que tem a natureza de uma providência cautelar (cf., neste sentido, João Caupers e João Raposo, Contencioso Administrativo anotado e comentado, 1994, p. 176), e não a decisão do recurso de anulação.
Ora, como resulta do documento junto aos autos pelo próprio recorrente, bem como do artigo 2º, nº 8, da referida Directiva, só se exige um duplo grau de recurso - que não de jurisdição - quanto a primeira instância de recurso não tiver natureza jurisdicional, dispondo-se que nesse caso as decisões tomadas em tal instância deverão poder ser objecto de recurso jurisdicional ou de recurso junto de outra instância que seja um órgão jurisdicional na acepção do artigo 177º do Tratado. Do exposto resulta que, quando a primeira instância de recurso fôr um órgão jurisdicional na acepção do artigo 177º do Tratado, não será exigível o duplo grau de recurso.
Asim, no caso concreto, a primeira instância a decidir o recurso foi a 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo. Ora, os tribunais administrativos (e o Supremo Tribunal Administrativo, em particular), na medida em que lhes cabe uma parcela da função jurisdicional (cf. artigos 205º, 211º e
214º, da Constituição), não podem deixar de ser também considerados órgãos jurisdicionais na acepção do artigo 177º do Tratado (cf., quanto à noção de
órgão jurisdicional na acepção do artigo 177º do Tratado, Vlad Constantinesco e outros, Traité Instituant la CEE, commentaire article par article, 1992, p. 1089 e ss.).
Deste modo, na medida em que a primeira instância de recurso foi o Supremo Tribunal Administrativo (órgão jurisdicional, na acepção do artigo 177º do Tratado), não tem aplicação a exigência de um duplo grau de recurso, alegadamente constante do artigo 2º, nº 8, da Directiva 89/665/CEE. Foi esta a linha decisória do Supremo Tribunal Administrativo e este o fundamento da não aplicação da directiva pelo acórdão recorrido, não se consubstanciando qualquer recusa (ainda que implícita) de aplicação da directiva.
14. Não tendo a decisão recorrida desaplicado a directiva com fundamento na prevalência do direito interno sobre o direito comunitário derivado, mas sim com fundamento na inaplicabilidade da directiva à solução do problema jurídico em causa (por a situação em concreto não se enquadrar na previsão das normas virtualmente aplicáveis), a questão de 'constitucionalidade' suscitada, a ter essa natureza, não se pode colocar tal como o recorrente a configura, pelo que o Tribunal Constitucional não tomará conhecimento da questão de inconstitucionalidade da norma contida no artigo 103º, alínea d), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, por violação do disposto no artigo 8º, nº 3, da Constituição.
Assim sendo, não se afigura útil sequer averiguar se a contrariedade de uma norma de direito interno com uma norma de direito comunitário derivado consubstancia ou não uma questão de constitucionalidade normativa, sindicável no
âmbito do recurso interposto ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que o Tribunal Constitucional não abordará tal questão.
B A questão da eventual inconstitucionalidade do artigo 103º, alínea d), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, por violação dos artigos 18º, nº 3, 20º e 62º da Constituição
15. O recorrente sustenta, por outro lado, que a norma contida no artigo 103º, alínea d), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos é inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 20º, 62º e 18º, nº 3, da Constituição. E, por fim, alega que tal norma é orgânica e formalmente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 168º, nº 1, alíneas q) e b), da Constituição.
Na verdade, o recorrente entende que a limitação constante do artigo
103º, alínea d), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos viola o direito fundamental de acesso aos tribunais e à justiça (artigos 20º e 18º, nº
3, da Constituição). Defende o recorrente que a lei infraconstitu-cional deveria facultar um duplo grau de jurisdição no âmbito das decisões sobre os pedidos de suspensão de eficácia dos actos administrativos.
16. O Tribunal Constitucional já apreciou tal questão de constitucionalidade normativa, tendo decidido pela não inconstitucionalidade da norma sindicada (cf., entre outros, Acórdãos nºs 249/94 - D.R., II Série, de 27 de Agosto de 1994, 447/93 - D.R., II Série, de 23 de Abril de 1994 e 202/90 - Acórdãos do Tribunal Constitucional, 16º volume, 1990, p. 505 e ss.).
De acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, o duplo grau de jurisdição em matéria não penal não se acha constitucionalmente garantido, reconhecendo-se ampla liberdade ao legislador para estabelecer requisitos de admissibilidade dos recursos. Com efeito, da Constituição apenas se deduz uma garantia contra violações radicais pelo legislador ordinário do sistema de recursos instituído e da igualdade dos cidadãos na sua utilização
(cf. Acórdão nº 27/95 - inédito).
Nesta medida, caberá à lei infraconstitucional definir o acesso aos sucessivos graus de jurisdição, segundo critérios objectivos, ancorados numa ideia de proporcionalidade (relevância das causas, natureza das questões) e que respeitem o princípio da igualdade, tratando de forma igual o que é idêntico e de forma desigual o que é distinto.
Pode, assim, afirmar-se que a Constituição não exige um duplo grau de jurisdição no âmbito do contencioso administrativo, nomeadamemte nas providências de suspensão de eficácia de actos administrativos. Tenha-se presente que, neste âmbito, o duplo grau de jurisdição é apenas suprimido nos processos em que a decisão de que se recorre é proferida por uma das subsecções da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo
(instância que funciona como tribunal de recurso para as decisões proferidas pelos Tribunais Administrativos de Círculo). Sublinhe-se que em tais casos, não obstante a inadmissibilidade do recurso para o pleno, é garantida a apreciação da decisão impugnada por um órgão colegial de elevada hierarquia na pirâmide dos tribunais administrativos. E refira-se, também, que nestes processos está assegurado o recurso para o Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, quando seja invocada a oposição de julgados.
Tais aspectos de regime permitem afirmar que a inadmissibilidade do recurso para o pleno, no caso dos autos, não colide com o preceituado nos artigos 18º e 20º da Constituição. Com efeito, ao recorrente foi conferida a possibilidade de submeter à apreciação do Supremo Tribunal Administrativo
(tribunal para o qual se pretendeu recorrer) a decisão impugnada. Foi-lhe, assim, assegurado o acesso à justiça administrativa, por via do reconhecimento do direito ao recurso contencioso (artigos 20º e 268º, nºs 4 e 5, da Constituição), pelo que não se vislumbra qualquer restrição dos seus direitos, liberdades e garantias.
Como se referiu, a Constituição não exige a consagração de um sistema de recursos sem limites, ad infinitum. Da Constituição apenas resulta a exigência do reconhecimento do direito de acesso à justiça e aos tribunais, direito que, no presente caso, foi reconhecido, respeitado e exercido, pelo que a norma contida no artigo 103º, alínea d), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos não viola o disposto nos artigos 18º, nº 3 e 20º, nº 1, da Constituição.
Conclui-se, assim, pela não verificação da inconstitucionalidade material apontada, remetendo-se para os Acórdãos referidos o desenvolvimento da fundamentação apresentada.
17. O recorrente afirma que a norma contida no artigo 103º, alínea d), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos viola também o disposto no artigo 62º da Constituição, que consagra a garantia do direito à propriedade. Ora, a invocação do artigo 62º da Constituição, no contexto do presente processo, apenas faz sentido no âmbito da análise do acto de expropriação dos imóveis propriedade do recorrente. Porém, isso não está em causa na decisão a que respeita o presente recurso. O que apenas se questiona é a norma que limita o recurso da decisão sobre a suspensão de eficácia da Resolução do Conselho de Ministros para o Pleno da Secção do Supremo Tribunal Administrativo aos casos de oposição de julgados - isto é, a norma do artigo 103º, alínea d), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos. Tal norma, em si mesma considerada, é insusceptível de violar o disposto no artigo 62º da Constituição, pelo que fica prejudicada a questão suscitada pelo recorrente.
18. Finalmente, o recorrente entende que a norma constante do artigo
103º, alínea d), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos é orgânica ou formalmente inconstitu-cional, por violação do disposto no artigo 168º, nº 1, alíneas b) e q), da Constituição.
Tal questão de constitucionalidade já foi, também, objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional (cf. o citado Acórdão nº 447/93). Decidiu-se, então, que tal norma não enferma do vício apontado, porque, estando em causa a regulamentação adjectiva da suspensão de eficácia de actos administrativos, meio processual de natureza cautelar, tal matéria encontra-se fora do âmbito da reserva relativa da Assembleia da República.
Por outro lado, o Tribunal considerou que as normas processuais podem regular os pressupostos de admissibilidade de recursos jurisdicionais, não tendo de ser necessariamente e sempre encaradas como normas sobre a competência dos tribunais de recurso. Também por esta razão a norma sindicada não estaria abrangida pela reserva relativa da Assembleia da República.
É este o entendimento que agora se adopta, remetendo-se o desenvolvimento da argumentação para o Acórdão citado. E conclui-se, assim, que a norma contida no artigo 103º, alínea d), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos não é orgânica ou formalmente inconstitucional.
III Decisão
19. Ante o exposto, decide-se:
a) Não tomar conhecimento do objecto do recurso relati-vamente às normas contidas no artigo 76º, nº 1, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos;
b) Não tomar conhecimento do objecto do recurso relati-vamente ao Decreto-Lei nº 315/91, de 20 de Agosto, alterado pelo Decreto-Lei nº 330-A/95, de 16 de Dezembro;
c) Não tomar conhecimento do objecto do recurso relati-vamente à inconstitucionalidade por omissão suscitada;
d) Não tomar conhecimento do objecto do recurso relati-vamente à inconstitucionalidade da norma contida no artigo 103º, alínea d), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, por violação do disposto no artigo 8º, nº 3, da Constituição;
e) Não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 103º, alínea d), da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos e, consequentemente, negar provimento ao recurso, nessa parte, confirmando o acórdão recorrido, de acordo com o presente juízo de constitucionalidade.
Lisboa, 5 de Fevereiro de 1998 Maria Fernanda Palma Vitor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Maria da assunção Esteves José Manuel Cardoso da Costa(votei independentemente o acórdão, mas teria proferido outra abordagem da questão a que ter feita a alínea d) da decisão).