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Processo nº 140/98
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1- O Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Alenquer veio,
“em obediência ao disposto nos artºs 280º, nºs 1, al. a),e 3, da Constituição, e
72º, nº 3, com referência ao artigo 70º, nº 1, al. a), ambos da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo artº 1º da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro“, interpor recurso para este Tribunal Constitucional da decisão instrutória do Mmº Juiz daquele Tribunal, de 1 de Julho de 1997, que decidiu pronunciar o arguido M..., pelo “crime de omissão de assistência material à família, p.p. pelo artº 197º, nºs 1 e 2 do C.Penal, e actualmente p.p. pelo art. 250º, nº 1, do mesmo Código“.
Diz o Ministério Público recorrente que o recurso é interposto “a fim de que seja apreciada a inconstitucionalidade das normas constantes dos artºs 197º, nºs
1 e 2 (redacção anterior), e 250º, nº 1, ambos do CP, na interpretação segundo a qual é elemento constitutivo do tipo de crime nelas previsto, sem o qual o mesmo não fica perfeito, a verificação, em concreto, de um perigo para a satisfação, sem auxílio de terceiros, das necessidades fundamentais de quem tem direito aos alimentos, pois a decisão recorrida julgou tal interpretação inconstitucional“.
“De facto a decisão recorrida encontrou o seu fundamento de direito no juízo de inconstitucionalidade da aludida interpretação, por considerar que a mesma conflitua com o preceituado nos artºs 36º, nº 5, e 69º, nº 1, ambos da Lei Fundamental, além de ser contrária a umas quantas normas de direito internacional pactício, que cita“ – acrescenta ainda o recorrente.
2-Nas suas alegações, conclui assim o Ministério Público recorrente:
“As normas constantes dos artigos 197º, nºs 1 e 2, do Código Penal (versão originária) e 250º, nº 1, do mesmo Código (versão de 1995), na interpretação segundo a qual é elemento constitutivo do tipo de crime nelas previsto a verificação, em concreto, de um perigo para a satisfação, sem auxílio de terceiro, das necessidades fundamentais de quem tem direito aos alimentos, não se mostram violadoras da Constituição nem da Convenção sobre os Direitos da Criança”.
3- A assistente e ora recorrida H..., com os sinais identificadores dos autos, não apresentou alegação.
4-Vistos os autos, cumpre decidir.
Mostram os autos que, tendo sido instaurado inquérito contra aquele arguido, em
6 de Outubro de 1994, por denúncia da ora recorrida e assistente, e por falta de pagamento de alimentos aos filhos menores, entendeu o Ministério Público mandar arquivá-lo, na base da consideração de que “não se encontra provado o perigo concreto da não satisfação das necessidades fundamentais, elemento essencial do tipo“, daqui resultando “que, perante a estreiteza da previsão da norma, não é possível nela subsumir o caso em apreciação“.
“O que interessa salientar é que, enquanto o artº 190º (da O.T.M.) previa um crime de perigo abstracto, o C P passou a prever um crime de perigo concreto, que tem de ser provado. Quer dizer, para o preenchimento do tipo, é necessário que o não cumprimento das obrigações ponha em perigo a satisfação das necessidades fundamentais, agora no caso de não haver auxílio de terceiro“ – é a afirmação essencial do despacho de arquivamento, a que se seguiu a constituição de assistente e a abertura da instrução.
Para o Mmº Juiz a quo, a matéria presente nos autos de inquérito “era suficiente para que o Digno Magistrado do MºPº tivesse deduzido acusação contra o arguido, pela prática de um crime p.p. pelo art. 197º nºs 1 e 2 do C.Penal“, porque tal norma “tem de ser interpretada no sentido de não ser exigível a verificação de um perigo concreto, sob pena de se violarem preceitos constitucionais que vinculam quer o legislador ordinário quer o aplicador da lei“.
Depois de discorrer sobre a matéria da falta de cumprimento da obrigação de alimentos devidos a menores, na óptica jurídico-criminal – desde a Lei nº 2053, de 22 de Março de 1952, até ao Código Penal vigente –, concluiu o Mmº Juiz a quo que “nenhuma interpretação dos artºs 197º e 250º do C.Penal pode ser feita no sentido de exigir a verificação de um perigo concreto, sob pena de tal entendimento violar os preceitos constitucionais que a seguir se enumeram“ (e segue-se a indicação dos artigos 36º, nº 5, 69º nº 1 e 8º, nºs 1 e 2, da Constituição e de alguns preceitos da “Convenção sobre os Direitos da Criança assinada em Nova Iorque a 26 de Janeiro de 1990, e aprovada pela Resolução nº
20/90 da Assembleia da República (D.R. I Série, nº 211, de 12/09/90 e ratificada pelo Decreto nº 49/90, de 12/09/90”)).
E lê-se ainda na decisão recorrida:
“A entender-se que seria necessário, como defendeu o Digno Magistrado do MºPº, que houvesse perigo concreto, estaríamos, concerteza, perante preceitos legais, neste caso constantes do C.Penal, que não teriam aplicação prática e que violariam os princípios e normas constitucionais e internacionais que referimos, isto para já não falarmos de outras convenções internacionais que vigoram na nossa ordem jurídica interna (cf., a título de exemplo as que vêm citadas no preâmbulo da Convenção sobre os Direitos da Criança) e que se impõem ao legislador ordinário.
Em suma, e em conclusão, não pode o legislador ordinário estabelecer regras ou preceitos que não garantam os direitos da criança, tal como os garantiam os artºs 190º da O.T.M. e 1º, 1º da Lei 2.053.
A entender-se em sentido contrário, estar-se-ia, sem dúvida, a ignorar todo o avanço legislativo que existiu no nosso país e estar-se-ia a retroceder para lá da Lei nº 2053“
A controvérsia centra-se, pois, face ao descrito, na questão da conformidade de ou desconformidade com a Constituição do entendimento com que deve ser interpretada e aplicada a norma do artigo 197º, nºs 1 e 2, do Código Penal de
1982 – a que corresponde o artigo 250º, nº 1, do Código vigente -, quando haja incumprimento da obrigação de alimentos, no quadro daquela norma.
Saber se, com esse quadro, o tipo legal de crime em causa – o crime de omissão de assistência material à família ou o crime da violação da obrigação de alimentos – entendido como um crime de perigo concreto ofende normas ou princípios constitucionais, eis o punctum saliens da anunciada controvérsia.
5- Rezam assim aqueles preceitos:
“Artigo 197º
(Omissão de assistência material à família)
1.Quem, estando legalmente obrigado a prestar alimentos e em condições de o fazer, não cumprir essa obrigação de maneira a, independentemente de auxílio de terceiros, pôr em perigo a satisfação das necessidades fundamentais de quem a eles tem direito, será punido com prisão até 2 anos ou multa até 180 dias.
2.No caso de alimentos a filho menor ou à mulher que se encontre grávida, sendo a gravidez conhecida do marido, a pena será de prisão até 3 anos ou multa até
200 dias”.
“Artigo 250º
(Violação da obrigação de alimentos)
1.Quem, estando legalmente obrigado a prestar alimentos e em condições de o fazer, não cumprir a obrigação, pondo em perigo a satisfação, sem auxílio de terceiro, das necessidades fundamentais de quem a eles tem direito, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias”.
Segundo a doutrina penalista exige-se ”agora a concreta verificação do perigo de satisfação de necessidades fundamentais, enquanto no regime anterior o perigo era presumido” (Maia Gonçalves, Código Penal Português, 6ª ed., 1992, nota 3 ao artigo 197º; cfr. ainda o Código Penal de 1982, de Simas Santos e Leal Henriques, vol. 3, 1986, págs. 45 e segs., com indicações de jurisprudência).
Com esta postura – acolhida pelo Ministério Público no citado despacho de arquivamento - tem-se em vista, face ao Código Penal, uma incriminação do comportamento omissivo da assistência material à família em termos distintos do
“regime anterior” da Lei nº 2053 e da O.T.M., sem curar de saber se isso é um avanço ou um retrocesso legislativo.
Ora, o Estado-legislador dispõe de liberdade de conformação legislativa quando enuncia na Lei ou exclui da Lei este ou aquele tipo legal de crime. Ponto é que se acomode nos limites a que o Tribunal Constitucional vem aderindo na sua jurisprudência, na óptica do princípio da necessidade das penas.
Na verdade, o objectivo precípuo do direito penal está na promoção da subsistência de bens jurídicos de maior dignidade, com respeito pela liberdade da pessoa humana.
“A imposição de penas e de medidas de segurança implica, evidentemente, uma restrição de direitos fundamentais, como o direito à liberdade e o direito de propriedade, que é indispensável justificar ante o disposto no nº 2 do artigo
18º da Constituição. Assim, uma tal restrição só é admissível se visar proteger outros direitos fundamentais e na medida do estritamente indispensável para esse efeito” (lê-se no acórdão nº 426/91, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 20º volume, págs. 423 e seguintes, que se debruçou, aliás, sobre a temática dos crimes de perigo; cfr. ainda o acórdão nº 213/95, publicado também nos Acórdãos, 30º volume, págs. 985 e seguintes, sobre a possibilidade de alargamento de responsabilidade criminal “em ordem à protecção de bens jurídicos socialmente relevantes e cuja defesa é condição indispensável do livre desenvolvimento da personalidade do homem”).
Também no acórdão nº 302/95, publicado no Diário da República, II Série, de 29 de Julho de 1995, se refere que importa considerar que, “sendo o Estado de Direito material um Estado de justiça (um Estado que está empenhado, em função de considerações axiológicas materiais de justiça, na promoção das condições económicas, sociais e culturais para o livre desenvolvimento da personalidade do homem, designadamente, na sua acção social), deve ele dar combate (se necessário for, pelo recurso a sanções penais) às violações mais graves dos respectivos bens jurídicos” (sublinhado nosso). Ora, não se mostra violador de tais limites e de tal objectivo o entendimento da infracção criminal questionada, que passa pela exigência de uma concreta verificação do perigo de satisfação de necessidades fundamentais, equivalendo, assim, à adopção de um critério de crime de perigo concreto. Como se escreveu no citado acórdão nº 426/91, “em relação às incriminações de perigo (e, especialmente, às de perigo abstracto), sempre se poderá entender que não é indispensável a imposição dos pesados sacrifícios resultantes da aplicação de penas e de medidas de segurança, visto que não está em causa, tipicamente, a efectiva lesão de qualquer bem jurídico”. Aqui também se poderá dizer que a necessidade da incriminação de perigo, mesmo no quadro dos direitos da criança, protegidos constitucionalmente e no plano de direito internacional pactício, compadece-se com a qualificação do crime em causa como um crime de perigo concreto. Nem se revela esse entendimento contrário ao programa da citada Convenção, pois
“as medida adequadas tendentes a assegurar a cobrança da pensão alimentar devida
à criança”, de que fala o artigo 27º, nº 4, no quadro do direito reconhecido à criança “a um nível de vida suficiente, de forma a permitir o seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social” (nº 1), não significam necessariamente medidas de natureza criminal, por via de um processo criminal, e que são sempre um último recurso do legislador (cfr. medidas previstas no artigo 189º da OTM, nos artigos 1118º e seguintes do C.P.C.
(execução especial de alimentos) e na Lei nº 75/98, de 19 de Novembro, sobre a garantia dos alimentos devidos a menores).
6- Termos em que, DECIDINDO, concede-se provimento ao recurso, devendo reformar-se a decisão recorrida em consonância com o presente juízo de constitucionalidade. LX. 2.2.99 Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Bravo Serra Messias Bento Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito José Manuel Cardoso da Costa