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Procº nº 35/2002.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
1. Não se conformando com o acórdão proferido pela 2ª Secção da 5ª Vara Criminal de Lisboa que o condenou, pela autoria de factos que foram subsumidos à prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punível pela alínea c) do nº 1 do artº 228º do Código Penal e de um crime de burla qualificada, previsto e punível pelos artigos 313º, nº 1, e 314º, alínea c), do mesmo diploma, na pena unitária de quatro anos de prisão, dos quais um foi declarado perdoado, recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa o arguido J..., sendo que, na motivação de recurso então apresentada, não suscitou o mesmo qualquer questão de inconstitucionalidade reportada a norma ou normas constantes do ordenamento jurídico infra-constitucional.
Na verdade, para o que ora releva, podem ler-se naquela motivação as seguintes «conclusões»:-
“........................................................................................................................................................................................................................................................................................
10ª) Porém, a partir do momento em que o citado acórdão do Tribunal Colectivo constituído no Tribunal Judicial de Torres Vedras, já transitado em julgado, apreciou os factos, condenando o arguido como autor dos citados crimes de falsificação de documento e de burla qualificada cometidos em 25/10/94, o recorrente já não poderia ter sido julgado e, por isso, condenado pela prática dos factos que constituem o objecto deste processo, ocorridos em 09/11/94, mesmo que estes factos não tenham sido conhecidos pelo Tribunal Colectivo de Torres Vedras, isto quanto mais não fosse de acordo com o princípio da segurança jurídica.
11ª) Por isso, na medida em que o arguido foi acusado, julgado e condenado, nestes autos, pela prática dos factos acima reproduzidos em A), dever-se-á concluir que o acórdão recorrido viola o princípio constitucional non bis in idem (artigo 29º nº 5 da Constituição da República Portuguesa), o que determina a verificação da excepção de caso julgado.
........................................................................................................................................................................................................................................................................................”
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 3 de Outubro de 2001, negou provimento ao recurso, tendo dito, quanto à questão suscitada nas «conclusões» acima transcritas:-
“........................................................................................................................................................................................................................................................................................
2.
O Arguido alega ainda existir a excepção de ‘caso julgado’, por os factos fixados pelo Acórdão recorrido se encontrarem numa relação de continuação criminosa com os apreciados no processo nº 311/94 de Torres Vedras, ou integrarem com estes outros, um mesmo e único processo.
A questão aqui em análise reporta-se, pois, [à] apreciação do modo da prática dos factos. Porém, esta questão - a da forma de manifestação da resolução criminosa - é dada como assente ser uma matéria fáctica que, como tal, foi fixada pelo Acórdão ora recorrido e, que ‘in casu’ se não encontra em apreciação, uma vez que o presente recurso, como já foi indicado, se restringe
[à] apreciação da matéria de Direito.
Deste modo, há que dar por assente o que no referido Acórdão se escreveu acerca do modo como o Arguido praticou os factos dos Autos:
‘.......................................
.............................................................................................................................................
...............................’. Isto é, a formação da resolução criminosa relativa aos factos dos Autos tem uma total autonomia relativamente a quaisquer outros factos.
Estabelecida esta autonomia da resolução criminosa, poder-se-ia colocar a questão de saber se, como alega o recorrente, não existirá, antes, uma relação de continuação criminosa entre os factos descritos no Acórdão recorrido e os atinentes ao processo nº 311/94 de Torres Vedras.
Porém, é sabido que a integração de várias condutas numa mesma continuação criminosa tem como pressuposto a existência de uma mesma situação exógena que, por propiciar essa mesma conduta, reduz de um modo sensível a culpa do agente - artigo 30º nº 2 do C. Penal.
Ora, a mera circunstância de o Arguido ser detentor de vários módulos de cheques de uma conta bancária, titulada por outra pessoa, não se configura como enquadradora de uma solicitação de uma mesma situação exterior, que diminua consideravelmente a sua culpa, e tal não obstante a similitude das condutas.
Pelo que, assim, se conclui pela inexistência da excepção alegada.
........................................................................................................................................................................................................................................................................................”
Notificado deste aresto, fez o arguido juntar aos autos requerimento onde se escreveu:-
“Nos autos de recurso penal à margem referenciados, da decisão proferida no processo comum colectivo nº 53/99 da 5ª Vara/2ª Secção do Tribunal Criminal de Lisboa,
Vem o arguido, J...,
Não se conformando com a parte do douto acórdão que julgou conforme aos principios e às normas constitucionais, a aplicação e interpretação que naquela decisão da 1ª instância foi dada às normas dos artigos 30º nº 2 do Código Penal e 29º nº 5 da Constituição da República Portuguesa, tendo suscitado a questão da inconstitucionalidade da referida aplicação e interpretação na motivação do recurso penal supra referenciado, por violação do princípio constitucional non bis in idem consagrado no referido artigo 29º nº 5 da Constituição da República Portuguesa,
Dela interpor recurso de apreciação concreta da constitucionalidade da citada aplicação e interpretação, para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 280º nº 1 alínea b) da Constituição da República Portuguesa e 70º nº 1 alínea b) da Lei nº 28/82 de 15 de Novembro.
O recurso sobe imediatamente, nos próprios autos e tem efeito suspensivo do processo (ex vi do artigo 78º nºs 3 e 4 da Lei nº 28/82 de 15 de Novembro).
E por ser legal, ter legitimidade e estar em tempo (ex vi dos artigos 72º nº 1 alínea b) e 75º nº 1 da Lei nº 28/82 de 15 de Novembro), requer-se seja recebido o presente recurso seguindo-se os demais termos”.
A Desembargadora Relatora do Tribunal da Relação de Lisboa, por despacho de 22 de Outubro de 2001, não veio a admitir o recurso pretendido interpor, já que, disse, “o fundamento invocado não se integra na previsão do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, antes se prefigurando como uma discordância quanto ao Direito aplicado”.
É deste despacho que, pelo arguido J..., vem deduzida a presente reclamação, invocando que, “como é jurisprudência firme do Tribunal Constitucional, o recurso de constitucionalidade pode ter como objecto a apreciação da compatibilidade com a Constituição da República Portuguesa, da interpretação que na decisão recorrida é dada a uma determinada norma jurídica, o que é o caso dos autos”, já que tinha suscitado a questão da inconstitucionalidade “da aplicação e interpretação que no acórdão recorrido foi dada às normas dos artigos 30º nº 2 do Código Penal e 29º nº 5 da Constituição da República Portuguesa, por as não considerar conformes aos princípios e às normas constitucionais”.
2. Tendo o Ex.mo Representante do Ministério Público junto deste órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa tido «vista» dos autos, pronunciou-se o mesmo no sentido do indeferimento da reclamação.
Cumpre decidir.
3. É por demais óbvia a improcedência do pedido deduzido pelo reclamante.
Assim, e pelo que, em primeiro lugar, concerne à alegada
«interpretação e aplicação», que teria sido levada a efeito pela decisão intentada impugnar, do nº 5 do artigo 29º da Lei Fundamental, é de evidência que uma tal questão só poderia ser considerada como objecto do recurso de fiscalização concreta a que se reporta a alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, enquanto suporte de um juízo emitido sobre uma norma
ínsita no ordenamento jurídico infra-constitucional.
Ora, e em segundo lugar, pelo que tange ao nº 2 do artº
30º do Código Penal, como à saciedade deflui das transcrições supra efectuadas, precedentemente à prolação do acórdão ora intentado impugnar, o arguido nunca questionou a desconformidade com a Lei Fundamental, quer desse mesmo preceito, quer de uma sua qualquer dimensão interpretativa, antes, como resulta da leitura da motivação do recurso por ele interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo sustentado que foi o acórdão querido impugnar perante o Tribunal Constitucional que violou o invocado princípio non bis in idem.
Ora, como resulta da alínea b) do nº 1 do artigo 280º da Constituição e da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, objecto dos recursos visando a fiscalização concreta da constitucionalidade são normas vertidas no ordenamento jurídico infra-constitucional e não quaisquer outros actos emanados do poder público tais como, verbi gratia, as decisões judiciais qua tale consideradas.
4. Em face do que se deixa dito, julga-se improcedente a presente reclamação, condenando-se o reclamante nas custas processuais, fixando em quinze unidades de conta a taxa de justiça.
Lisboa, 26 de Fevereiro de 2002- Bravo Serra Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa