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Processo n.º 244/97 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. J. A. propôs, no Tribunal Cível da comarca de Lisboa (12º Juízo), acção sumária contra a CAIXA AUXILIAR DOS ESTIVADORES DO PORTO DE LISBOA E CENTRO DE PORTUGAL, pedindo que esta seja condenada a reconhecer-lhe o direito a receber a pensão de velhice e a pagar-lhe a quantia de 245 250$00, acrescida de juros vencidos e vincendos.
Na sua contestação, a CAIXA deduziu a excepção de incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria, alegando que, competentes para a causa, são os tribunais do trabalho. E, em requerimento posterior, invocou a inconstitucionalidade - por violação do artigo 168º, n.º 1, alínea g), da Constituição - do artigo 119º do Código das Associações Mutualistas (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/90, de 3 de Março).
No despacho saneador (proferido em 26 de Fevereiro de 1997), foi a Ré absolvida da instância, com fundamento, justamente, na incompetência material do tribunal. Para tanto, foi recusada aplicação, com fundamento na sua inconstitucionalidade - violação do artigo 168º, n.º 1, alínea g), da Constituição - ao mencionado artigo 119º do Código da Associações Mutualistas, já que - disse-se - tal preceito veio atribuir aos tribunais comuns
(interpretada esta expressão no sentido de significar tribunais cíveis) uma competência que era dos tribunais do trabalho, sendo que o Governo, ao editar o Decreto-Lei n.º 72/90, de 3 de Março, não se achava munido de autorização legislativa.
2. É desta decisão (de 26 de Fevereiro de 1997) que vem o presente recurso, interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade do mencionado artigo 119º.
Neste Tribunal, o Procurador-Geral Adjunto aqui em exercício, nas alegações que apresentou, formulou as seguintes conclusões:
1º. A norma constante do artigo 119º do Código das Associações Mutualistas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/90, de 3 de Março, se interpretada no sentido de que os 'tribunais comuns' aí referidos são os 'tribunais cíveis', quando estejam em causa litígios entre tais entidades - qualificadas como 'instituições de previdência' nos termos e para os efeitos da alínea i) do artigo 64º da Lei n.º 38/87, de 23 de Dezembro - e os respectivos beneficiários (e respeitantes a direitos, poderes ou obrigações legais, regulamentares ou estatutários de umas e outros), é organicamente inconstitucional, por preterição do disposto no artigo 168º, n.º
1, alínea q), da Constituição, já que - com tal interpretação - a referida norma inova em sede de repartição de competências entre a jurisdição civil e laboral, tal como resulta das leis de organização judiciária vigentes.
2º. A qualificação jurídica da ré como 'instituição de previdência', por respeitar exclusivamente à interpretação e aplicação do direito infraconstitucional, está excluída do âmbito do presente recurso, devendo ser feita pelo tribunal 'a quo', precedendo necessariamente o julgamento acerca da constitucionalidade do citado artigo 119º.
3º. Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida - o que, todavia, não obstará a que, através dos competentes recursos ordinários possíveis, a qualificação jurídica em que assentou o juízo de inconstitucionalidade possa ser impugnada e eventualmente modificada pelos tribunais superiores, no âmbito da ordem dos tribunais judiciais.
A recorrida CAIXA AUXILIAR contralegou, concluindo como segue, no que aqui importa:
15º. A questão sub judice é da competência absoluta dos tribunais do trabalho em matéria cível, nos termos da alínea i) do artigo 64º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais.
16º. A Lei n.º 82/77, de 6 de Dezembro, e, actualmente, a Lei nºs 38/87, de 23 de Dezembro, bem como o artigo 213º da Constituição da República Portuguesa, alteraram a organização judiciária anterior, nomeadamente a constante dos artigos 66º e 67º do Código de Processo Civil, aprovado em 1961.
17º. Antes, a atribuição de competência aos tribunais comuns visava excluir a competência dos tribunais administrativos e dos tribunais do trabalho, que eram tribunais especiais (artigos 66º e 67º do Cód. Proc. Civil).
18º. A reestruturação da organização judiciária eliminou aquela classificação bipartida dos tribunais comuns e especiais e substituiu-a pela actual, que prevê os tribunais de competência genérica, especializada e específica (artigos 14º,
46º, 48º e 53º da Lei n.º 38/87, de 23 de Dezembro, e artigo 213º da Constituição).
19º. Actualmente, segundo a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, tem de entender-se que os tribunais do trabalho são tribunais judiciais, integrando aqueles os tribunais comuns mas, agora, de competência especializada, tal como os tribunais cíveis.
20º. Este mesmo conceito está também claramente definido na recente revisão do Código de Processo Civil, operada pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, nos artigos 66º e 67º.
21º. O artigo 119º do Código da Associações Mutualistas, posterior àquele Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, quando se refere à competência dos tribunais comuns, pretende referir-se aos tribunais judiciais, contrapondo à ordem em que estes se inserem, ordens diversas desses tribunais judiciais, nomeadamente a dos tribunais administrativos e fiscais.
22º. Tem de entender-se, por isso, que aquele artigo 119º não retira a competência aos tribunais do trabalho para apreciar esta questão em concreto.
23º. A entender-se diferentemente, tem de concluir-se também que o artigo 119º do Código da Associações Mutualistas seria inconstitucional, porque tal matéria legislativa é da competência exclusiva da Assembleia da República [artigo 168º, n.º 1, alínea g), da Constituição].
3. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentos:
4. O Decreto-Lei n.º 72/90, de 3 de Março, aprovou o Código da Associações Mutualistas, cujo regime jurídico constava (segundo se afirma no preâmbulo) de três diplomas legais: dois deles (o Decreto-Lei n.º 347/81, de 20 de Dezembro, e o Decreto Regulamentar n.º 58/81, de 30 de Dezembro), de aplicação directa; e um terceiro (o Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro), de aplicação supletiva.
As associações mutualistas são instituições particulares de solidariedade social que, através, essencialmente, do produto das respectivas quotizações, concedem aos seus associados e a suas famílias benefícios de segurança social (prestações de invalidez, de velhice e de sobrevivência; prestações pecuniárias por doença, maternidade, desemprego, acidentes de trabalho ou doenças profissionais; capitais pagáveis por morte ou no termo de prazos determinados) e de saúde (prestação de cuidados de medicina preventiva, curativa e de reabilitação; e assistência medicamentosa).
Como as associações mutualistas (semelhantemente ao que acontece com as instituições particulares de solidariedade social) desempenham, a nível privado, uma função complementar das instituições de segurança social, a decisão recorrida qualificou-as como instituições de previdência para efeitos do disposto no artigo 64º, alínea i), da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais.
Qualificadas as associações mutualistas como instituições de previdência - por força do que preceitua o referido artigo 64º, alínea i), da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (aprovada pela Lei n.º 38/87, de 23 de Dezembro, e alterada, entretanto, pelas Leis nºs 52/88, de 4 de Maio, 24/90, de
4 de Agosto, 24/92, de 20 de Agosto, 44/96, de 3 de Setembro, 33-A/96, de 26 de Agosto e Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro) -, os tribunais do trabalho são os competentes para, em matéria cível, conhecer das questões entre elas e os seus beneficiários, quando essas questões 'respeitem a direitos, poderes ou obrigações legais, regulamentares ou estatutários de umas ou outros'.
Foi, entretanto, publicado o mencionado Decreto-Lei n.º 72/90, de 3 de Março, que, como se referiu, aprovou o Código das Associações Mutualistas. Neste Código, inclui-se o artigo 119º, aqui sub iudicio, que dispõe como segue: Artigo 119º (Foro competente) As questões que se levantem entre as associações mutualistas e os seus associados ou entre estas associações e os respectivos agrupamentos são da competência dos tribunais comuns, nos termos do Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social.
A decisão recorrida - recorda-se -, argumentando com o facto de o artigo 67º do Código de Processo Civil (na versão vigente à data da aprovação do Código das Associações Mutualistas) dispor que 'o tribunal comum é o tribunal civil', interpretou o artigo 119º (acabado de transcrever) no sentido de nele se atribuir aos tribunais cíveis a competência para conhecer das questões entre as associações mutualistas e os respectivos associados respeitantes a direitos, poderes ou obrigações legais, regulamentares ou estatutários destes. E como esta competência - ex vi do disposto na alínea i) do artigo 64º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais - pertencia aos tribunais do trabalho, recusou aplicação, com fundamento na sua inconstitucionalidade, àquele artigo 119º, já que a matéria sobre que versa se inscreve na reserva de competência legislativa da Assembleia da República, e ele foi editado sem o Governo estar munido da necessária autorização legislativa.
5. O dito artigo 119º será, realmente, inconstitucional?
5.1. Se o artigo 119º, aqui sub iudicio, devesse ser interpretado no sentido de atribuir aos tribunais cíveis a competência que, por força da alínea i) do artigo 64º da Lei Orgânica dos Tribunais, era dos tribunais do trabalho, a conclusão não poderia ser outra senão a da sua inconstitucionalidade. Num tal caso, na verdade, o Governo, sem autorização parlamentar, teria legislado sobre matéria atinente à competência dos tribunais, a qual se inclui na reserva de competência legislativa da Assembleia da República.
De facto, constitui jurisprudência firme deste Tribunal que, na reserva da alínea q) do n.º 1 do artigo 168º da Constituição da República, que tem por objecto a competência dos tribunais - para além da definição das matérias cujo conhecimento cabe aos tribunais judiciais e a daquelas que pertence aos tribunais administrativos e fiscais - se inclui a distribuição das matérias da competência dos tribunais judiciais pelos diferentes tribunais de competência genérica e de competência especializada ou específica. E isto porque esta distribuição de matérias ainda é uma questão de competência em razão da matéria [cf, entre outros, os acórdãos nºs 271/92, 163/95 e 198/95 (publicados no Diário da República, II série, de 23 de Novembro de 1992, de 8 e de 22 de Junho de 1995, respectivamente)]. Ora, inclui-se na reserva parlamentar a definição de toda competência judiciária ratione materiae - ou seja: a distribuição das matérias pelas diferentes espécies de tribunais dispostos horizontalmente, no mesmo plano, sem que, entre eles, intercedam relações de supra-ordenação e de subordinação [cf, para além dos arestos acabados de citar, entre outros, os acórdãos nºs 36/87, 356/89, 72/90 ( publicados no Diário da República, I série, de 4 de Março de 1987, 23 de Maio de 1989 e de 2 de Abril de
1990, respectivamente), 172/96 (ainda por publicar) e 268/97 (Diário da República, II série, de 22 de Maio de 1997)].
5.2. Sucede, porém, que o mencionado artigo 119º do Código das Associações Mutualistas não tem por que ser interpretado no sentido de atribuir aos tribunais cíveis a competência para conhecer dos litígios que oponham entre si as mútuas e os seus associados em questões respeitantes aos seus direitos, poderes ou obrigações legais, regulamentares ou estatutários. Bem pode entender-se que, sendo as associações mutualistas qualificadas como instituições de previdência, os tribunais comuns de que aí se fala são os tribunais do trabalho, os quais, portanto, serão os competentes para conhecer das questões atinentes. Melhor ainda: comportando a letra da lei também este último sentido, deve mesmo entender-se, atendendo ao quadro normativo vigente à data da sua edição, que é aos tribunais do trabalho que esse preceito defere a competência para conhecer das questões a que alude.
Na verdade - como este Tribunal já teve ocasião de decidir (cf. os citados acórdãos nºs 271/92, 163/95 e 198/95) -, antes da publicação da Lei n.º
82/77, de 6 de Dezembro (Lei Orgânica dos Tribunais), entretanto, revogada e substituída pela Lei n.º 38/87, de 23 de Dezembro, e, depois, alterada pelas Leis nºs 52/88, de 4 de Maio,
24/90, de 4 de Agosto, 24/92, de 20 de Agosto, 44/96, de 3 de Setembro, e
33-A/96, de 26 de Agosto - tribunal comum significava tribunal judicial
(tribunal civil), por oposição a tribunal especial - categoria a que, então, pertenciam os tribunais do trabalho, integrados como estavam no então Ministério do Trabalho. Simplesmente, com a publicação da Lei n.º 82/77, de 6 de Dezembro, os tribunais do trabalho, passaram a ser tribunais judiciais (cf. art. 85º) - e, assim, tribunais comuns.
Escreveu-se no citado acórdão n.º 271/92: A partir da publicação da Lei n.º 82/77, de 6 de Dezembro, se a dicotomia tribunais comuns/tribunais especiais continuou a fazer sentido, os tribunais do trabalho, enquanto tribunais judiciais que passaram a ser, deixaram de integrar a categoria dos tribunais especiais, para passarem a pertencer à dos tribunais comuns.
Mas então, interpretando o mencionado artigo 119º no sentido de atribuir aos tribunais do trabalho a competência para o conhecimento das questões a que se reporta quando as associações mutualistas sejam qualificadas como instituições de previdência, ele já não é inconstitucional, pois que não introduz qualquer modificação nas regras de competência material dos tribunais.
Com efeito, tal preceito nada inova, pois que consagra a solução já constante da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (aprovada pela Lei n.º 38/87, de 23 de Dezembro, e alterada, entretanto, pelas Leis nºs 52/88, de 4 de Maio,
24/90, de 4 de Agosto, 24/92, de 20 de Agosto, 44/96, de 3 de Setembro, e
33-A/96, de 26 de Agosto). Mais rigorosamente ainda: ele consagra a solução acolhida pelo artigo 64º, alínea i), dessa Lei Orgânica, segundo a qual os tribunais do trabalho são os competentes para, em matéria cível, conhecer das questões que oponham as instituições de previdência aos seus beneficiários, quando essas questões 'respeitem a direitos, poderes ou obrigações legais, regulamentares ou estatutários de umas ou outros'.
Ora - já se disse -, foi como instituição de previdência que, para os efeitos da mencionada alínea i) do artigo 64º, a decisão recorrida qualificou as associações mutualistas.
6. Pois bem: quando uma norma legal é susceptível de mais do que uma interpretação - uma, compatível com a Constituição; outra, incompatível com ela
-, os tribunais devem preferir a interpretação que for conforme à Constituição. Se, como no caso sucedeu, o não fizerem e desaplicarem a norma legal com fundamento em inconstitucionalidade, o Tribunal Constitucional, no recurso que subir até ele, deve fixar o sentido da norma que é compatível com a Constituição e mandar aplicá-la no processo com essa interpretação [cf. os citados acórdãos nºs 163/95 e 198/95 e, mais recentemente, o acórdão n.º.609/95 (publicado no Diário da República, II série, de 19 de Março de 1996)].
É que - prescreve o n.º 3 do artigo 80º da Lei do Tribunal Constitucional -, quando o juízo de constitucionalidade (formulado pelo Tribunal Constitucional sobre certa norma a que a decisão recorrida recusou aplicação)
'se fundar em determinada interpretação dessa mesma norma, esta deve ser aplicada com tal interpretação no processo em causa'. Ou seja: o Tribunal Constitucional pode proferir sentenças interpretativas, determinando aos outros tribunais, nos recursos que sobem até ele, que certa norma seja interpretada - e aplicada - no julgamento do caso com o sentido que ele definir como sendo o conforme à Constituição.
7. Conclusão: no presente caso, pois, o artigo 119º do Código da Associações Mutualistas, aqui sub iudicio, deve ser interpretado - e aplicado - no processo com o sentido que se indicou como sendo conforme à Constituição.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). Interpretar o artigo 119º do Código das Associações Mutualistas - que dispõe que 'as questões que se levantem entre as associações mutualistas e os seus associados ou entre estas e os respectivos agrupamentos são da competência dos tribunais comuns, nos termos do Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social' - no sentido de que, sendo as associações mutualistas qualificadas como instituições de previdência, competentes para o conhecimento das questões nele referidas são os tribunais do trabalho;
(b). Conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida, que deve ser reformada, aplicando no processo o referido artigo 119º com a interpretação que se deixa indicada.
Lisboa, 1 de Julho de 1998 de 1998 Messias Bento Guilherme da Fonseca Bravo Serra José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Beleza Luis Nunes de Almeida