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Procº nº 674/97.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. O Licº C... interpôs na 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo recurso contencioso de anulação do despacho de 29 de Setembro de
1992 proferido pelo Chefe do Estado Maior da Armada, despacho esse que indeferiu um requerimento, formulado pelo recorrente, no qual solicitava o pagamento de um montante correspondente a nove doze avos do subsídio de Natal referente ao ano de 1991, uma vez que, segundo alegou, prestara serviço na Marinha, naquele ano, durante nove meses, sendo que, em 30 de Setembro, dera baixa ao serviço.
Por acórdão de 15 de Março de 1994 negou o Supremo Tribunal Administrativo provimento ao recurso, o que levou o impugnante a desse aresto recorrer para o Tribunal Constitucional, o qual, pelo Acórdão nº 596/94, decidiu não tomar conhecimento do recurso, uma vez que, segundo entendeu, ainda não se encontravam esgotados os recursos ordinários que no caso cabiam.
O recorrente, em 15 de Dezembro de 1994 apresentou neste Tribunal requerimento de interposição de recurso para o pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo do acórdão de 15 de Março de 1994, tendo o Conselheiro Relator do Tribunal Constitucional, em 21 desses mesmos mês e ano, lavrado despacho no qual referiu que este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa carecia de competência para admitir o interposto recurso.
Devolvidos os autos àquele Supremo Tribunal, foi admitido o recurso interposto para o citado pleno.
2. Na alegação do recurso que então formulou, disse o impugnante, inter alia:-
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1. Na referida acção aleguei que a interpretação do artº 4º do D/L 498-E/74 de
30 de Setembro e da nova redacção dada a este pelo D/L 543-A/80 de 10 de Novembro apenas podia ser o de quantificar o montante de Subsídio de Natal ou dos seus duodécimos.
2. A referência ao dia 01 de Novembro feita pelo D//L 543-A/80 de 10 de Novembro apenas pode ser entendida no sentido de obstar a que eventuais promoções posteriores a este dia e anteriores ao dia 31 de Dezembro desse ano fossem contabilizadas para efeitos de atribuição da respectiva diferença salarial.
3. A não ser dado este entendimento, ao preceito, implicaria que este violaria o princípio da igualdade insíto no artº 13º da Constituição da República Portuguesa, gerando assim discriminações.
4. Ao invocar esta forma de interpretação, ao encontro de princípios teleológicos inerentes a uma boa legislação e da sua ratio legis, implicitamente se admite um raciocínio à contrario sensu, isto é, o da possibilidade desta norma poder ser interpretada enquanto norma inconstitucional.
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15. Que inclusivamente, uma retribuição do trabalho, como é inquestionavelmente o Subsídio de Natal, ou os seus duodécimos, não está a ser paga!
16. E, assim, também o artº 59º nº 1 alínea a) da Constituição da República Portuguesa é violado. Presta-se serviço nesta Instituição durante um ou mais meses, não havendo a correspondente retribuição.
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20. O ora recorrente, tendo estado ao serviço activo de Janeiro a Setembro de
1991 requereu que lhe fossem concedidos nove duodécimos do Subsídio de Natal.
21. Decidiram os Conselheiros da 1ª secção, 2ª Subsecção do STA, contudo, que o direito a este subsídio apenas se paga aos militares que estejam ao serviço activo no dia um de Novembro de cada ano, não tendo assim o autor direito aos duodécimos.
22. pois decidiram que: '(...) E o D/L 543-A/80, de 10/XI refere no seu artigo
único que: 'o Subsídio de Natal a abonar aos militares nos termos do artº 4º do DL 498-E/74, de 30/9, passa a ser pago em Novembro, reportando-se ao dia 1 do mesmo mês a determinação do respectivo montante'.
'Do teor destas disposições legais resulta evidente que o direito ao Subsídio de Natal, por parte dos militares, implica necessáriamente que os mesmos se encontrem na situação do activo e de reserva na efectividade de serviço (...) quer isto dizer que como regra geral o Subsídio de Natal é pago de uma só vez e em Novembro de cada ano (...) Se um militar passa à disponibilidade por baixa, deixa de ter direito àquele subsídio. É o caso do recorrente'.
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3. Por acórdão de 10 de Julho de 1997, negou o pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo provimento ao recurso, sustentando-se que 'do teor do disposto no artº 4º nº 1 e 2 do Dec.Lei nº 498-E/74 de 30.9, com a alteração introduzida pelo D.L. 543-A/80 de 10.11, resulta que para a atribuição do subsídio de Natal aos militares é necessário que estes se encontrem nas situações do activo ou de reserva na efectividade de serviço e que, em 1 de Novembro do ano a que o subsídio diz respeito, tenham direito a remuneração, sendo aquele subsídio correspondente a esta, nos casos em que naquele dia hajam já completado um ano de serviço e nos casos em que tal não aconteça, o que se verifica, nomeadamente, em relação aos militares que são incorporados durante esse ano, é aplicado o regime de duodécimos, sendo, então, pagos tantos quantos os meses efectivamente prestados'.
E acrescentou-se:-
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Requisito, porém, indispensável, para o direito ao subsídio de Natal quer por inteiro quer por duodécimos é que o militar esteja na situação do activo ou de reserva na efectividade de serviço em 1 de Novembro.
E sendo assim, como é, não se vislumbra como é que esta norma possa afrontar o disposto no artº 59º nº 1 alínea a) da C.R.P., ao não reconhecer o direito ao subsídio de Natal correspondente aos meses que naquele ano estava no activo e em relação aos quais lhe foram sendo pagos os vencimentos até que foi abatido ao efectivo da Marinha em 30.9.91.
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Sendo certo, por outro lado, que este direito não se subjectiva à medida que o militar vai prestando serviço, mas apenas em 1 de Novembro em que seja militar na situação de activo ou de reserva na efectividade de serviço.
E da mesma maneira, também o princípio da igualdade ... não se encontra violado................................
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A situação do recorrente abatido ao efectivo da Marinha em 30.9.91 é bem diferente do militar incorporado naquele ano e que em 1 de Novembro se encontra na situação do activo, tendo este, por esta circunstância direito ao subsídio de Natal e não o recorrente, embora estivesse naquele mesmo ano no activo, mas não o estava em 1 de Novembro.
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4. É deste aresto que vem interposto o presente recurso, por intermédio do qual se pretende ver apreciada a constitucionalidade da norma
ínsita no artº 4º do Decreto-Lei nº 498-E/74, de 30 de Novembro, na redacção conferida pelo Decreto- -Lei nº 543-A/80, de 10 de Novembro, na interpretação segundo a qual, para ser pago o subsídio de Natal, torna-se necessário que os militares se encontrem no serviço activo em 1 de Novembro de cada ano.
Determinada a feitura de alegações, rematou o recorrente a por si apresentada com as seguintes «conclusões»:-
'I - O ora recorrente, na altura militar, tendo estado ao serviço activo de Janeiro a Setembro de 1991, na Marinha de Guerra Portuguesa, requereu à entidade recorrida que lhe fossem pagos nove duodécimos do s/natal, o que lhe foi negado com base no argumento de que o artº 4º do D/L 498-E/74 de 30 de Novembro e da nova redacção dada a este pelo D/L 543-A/80 de 10 de Novembro só prevê o seu pagamento a quem estiver ao serviço activo no dia 01 de Novembro de cada ano. II - Posteriormente o STA, em sede de dupla jurisdição, confirmou o despacho da entidade recorrida, com base no mesmo argumento. III - Facto é que o ora recorrente prestou nove meses de serviço no ano de 1991, no qual apenas teve como contraprestação desse serviço a remuneração mensal equivalente á categoria profissional que tinha. Nesse ano não recebeu qualquer quantia a título de s/natal, independentemente do serviço prestado. IV - A remuneração do trabalho é consequência de serviço prestado, de trabalho efectuado, e não de se estar ao serviço activo num certo dia, que até poderia ser outro muito diferente... V - O direito à remuneração é um direito que se adquire na esfera jurídica de uma pessoa dia a dia, semana a semana e mês a mês, fruto de um contrato entre a entidade patronal e o empregado, contrato este de natureza sinalagmática em que sobrevem obrigações para ambas as partes. Há um binómio indissociável TRABALHO/VENCIMENTO, que não é, e não pode ser afastado por quaisquer outras vicissitudes exteriores a esta realidade, como o facto de se estar, ou não, ao serviço activo num certo dia. VI - Um outro lado desta questão prende-se com a incongruência de, tantos anos após a abolição da escravatura, diria alguém, na nossa sociedade, com tantos casos de exclusão social, de que as arcadas das nossas cidades são prova, se pretender excluir a contrapartida do trabalho prestado, se recusar pagar uma remuneração que contribuirá para se ter uma existência condigna, (salvaguardada a respectiva proporção), se pretender excluido o vencimento de alguém, não por se não ter submetido a um regime jurídico/laboral extremamente pesado, mas porque se interpreta um D/L de uma certa maneira VII - Maneira esta, que vai para além da lei, pois em lado nenhum esta diz que apenas os militares a prestar serviço activo, dia 01 de Novembro de cada ano, tem direito ao subsídio de natal, contrariando objectivamente o artº 9º do CC. VIII - Não é, nem nunca poderia ser o facto de se estar ou não ao serviço activo num certo dia que, retroactivamente, atribuísse, ou deixasse de atribuir, direitos que, ab initio, estavam já na titularidade de um sujeito, fruto da sua disponibilidade e do seu trabalho alcançado dia-a- -dia. Este direito, contráriamente ao douto acordão de que se recorre, já existe de per si, não caindo da terra ninguém num dia prédeterminado, para a carteira de alguém. IX - A ser considerado como condição sine qua non o facto de se estar, ou não, ao serviço activo num certo dia de cada ano para atribuição do s/natal, leva a que militares com um ano de serviço prestado incompletamente, tenham sortes diferente: uns recebem, outros não, violando-se assim o artº 13º da CRP. X - Por outro lado também o artº 59º nº 1 alínea c) da CRP é violado: trabalho igual, não é remunerado igualmente, ou pior ainda, não é remunerado de todo! trabalha-se e no fim diz-se: trabalhaste, eu sei, porque estiveste sob as minhas ordens, mas, lamento muito, mas como não estavas (estarás) ao serviço activo no dia 01 de Novembro não tens direito aos duodécimos do s/natal. Por amor de Deus. Esta é uma questão que, penso que não oferece a mais pequena dúvida. Salvo o devido respeito, mas as mais elementares regras de bom senso dizem-nos que isto não pode ser assim, que algo está errado..., que algo tem de ser feito para obviar a esta iniquidade... XI - O próprio exército, com base na mesma legislação paga aos militares em situações análogas à do recorrente, tendo uma interpretação da lei e da Constituição, igual a este, e dando origem a uma dupla violação dos artºs 13º e
59º da CRP: a nível interno, no seio da marinha, e a nível externo, entre militares, independentemente do seu ramo. XI - Face ao exposto, vem o ora recorrente requerer a V. Exªa a revogação do acordão do STA, por manifestamente inconstitucional, na parte e com o sentido da interpretação das citadas normas efectuada, tanto por parte da entidade recorrida, como pelos excelentissimos Conselheiros do STA. XI - Caso a interpretação seja a correcta, face ao D/L, então, por este ser inconstitucional, por ofender os princípios e direitos consagrados constitucionalmente, não deveria ser aplicado, de acordo com o actual artº 204º da CRP. XII - Em ambas as eventualidades, deveriam os militares receber os duodécimos no mês que levassem baixa, aplicando-se por analogia na parte aplicável o D/L
496/80 de 20 de Outubro, ou, ao invés, receber os duodécimos no mês de Novembro, enviando--se os mesmos para casa dos militares com direito a estes'.
De seu lado, a entidade recorrida concluiu a sua alegação do seguinte jeito:-
'1ª - O ortigo 4º do Decreto-Lei nº 498-E/74, de 30/9, em conjugação com o artigo único do Decreto- -Lei nº 543-A/80, de 10/11, determina a atribuição do subsídio de Natal aos militares, do activo ou reserva, na efectividade de serviço, a conceder em Novembro de cada ano e de montante igual à remuneração mensal a que nessa data tenham direito;
2ª - O pagamento de tal subsídio em duodécimos apenas se encontra previsto para os casos dos militares que, em 1 de Novembro, não tenham completado um ano de serviço efectivo, os quais recebem tantos duodécimos quantos os meses de serviço efectivamente prestado;
3ª - O Recorrente, tendo levado baixa de serviço da Armada em 30 de Setembro de
1991, não tem direito a receber, em relação ao ano de 1991, subsídio de Natal, nem qualquer duodécimo do mesmo, como bem considera o mui douto Acórdão ora impugnado;
4ª - Tal entendimento não consubstancia a violação do princípio da igualdade definido no artigo 13º da Constituição;
5ª - Na verdade, o tratamento dado ao caso do Recorrente é idêntico ao aplicado aos militares em situação idêntica à sua;
6ª - Do mesmo modo, não se verifica qualquer violação do artigo 59-1 da Constituição, até porque o subsídio de Natal não é um salário, não corresponde à remuneração do trabalho;
7ª - Embora indirectamente dele resulte, tem antes a ver com o aumento da capacidade económica dos trabalhadores para fazer face às despesas extraordinárias resultantes da quadra do Natal, como bem esclarece o douto Acórdão recorrido;
8ª - É, assim, improcedente a alegação de inconstitucionalidade deduzida pelo Recorrente;
9ª - Finalmente a alegação complementar apresentada pelo Recorrente em nada afectou o mérito da causa;
10ª - A Marinha não está obrigada pelas decisões tomadas noutros Ramos, encontrando-se apenas sujeita à lei;
11ª - E a lei na matéria é ainda constituida pelos dois diplomas já citados, que não enfermam de inconstitucionalidade alguma;
12ª - Em consequência, só após a alteração do regime definido nos Dec.-Leis nº
498-E/74 e 543-A/ /80, pela entidade competente para o efeito, que não é o Almirante CEMA, mas o Governo, poderão ser diferentes as decisões nesta matéria'.
Cumpre decidir.
II
1. A norma constante do artº 4º do Decreto-Lei nº 498- -E/74, de 30 de Setembro, apresenta a seguinte redacção:-
Art. 4.º - 1. Aos militares nas situações do activo e de reserva na efectividade de serviço é abonado, em cada ano, um subsídio de Natal, a conceder em Dezembro, de valor igual à remuneração mensal a que tenham direito em 1 desse mês, a título de vencimento ou pensão.
2. Os militares que, em 1 de Dezembro, não tiverem completado um ano de efectivo serviço, apenas terão direito a receber um subsídio correspondente a tantos duodécimos quantos os meses de serviço prestado nessas condições.
Por outro lado, estabeleceu-se no artigo único do Decreto-Lei nº
543-A/80, de 10 de Novembro, que [o] subsídio de Natal a abonar aos militares, nos termos do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 498-A/74, de 30 de Setembro, passa a ser pago em Novembro, reportando-se ao dia 1 do mesmo mês a determinação do respectivo montante.
Muito embora, numa primeira visão das coisas, se pudesse ser levado a dizer que em face do teor das transcritas não resultaria de forma imediatamente directa e inequívoca que o abono do subsídio de Natal (globalmente ou, caso não tenham, em cada ano, completado um ano de serviço efectivo, correspondente a tantos duodécimos quantos os meses de serviço prestados) aos militares nas situações do activo e de reserva na efectividade de serviço só era concedido se os mesmos se encontrarem numa daquelas situações aquando da data em que tal subsídio era processado, ou seja, em Novembro de cada ano, e isso porque o que se prescreve no artigo único do D.L. nº 543-A/80 é, e tão só, que o subsídio de Natal é pago em Novembro, o que é certo é que a interpretação levada a efeito pela decisão recorrida não deixa de ter suporte se se atentar no nº 1 do artº 4º do D.L. nº 498-E/74, ao se referir aos «militares nas situações do activo e de reserva na efectividade de serviço».
Seja como for, foi com esse sentido que as normas em apreço foram interpretadas no aresto ora impugnado, e foi igualmente com essa interpretação que o recorrente suscitou a questão da sua desconformidade com a Lei Fundamental, motivo pelo qual é nessa dimensão que se impõe que este Tribunal afira da sua compatibilidade ou não compatibilidade com normas ou princípios constantes da Constituição, sendo que, com maior propriedade, há-de dizer-se que constitui objecto do vertente recurso a norma resultante da conjugação do artº
4º do Decreto-Lei nº 498-E/74, de 30 de Setembro com o artigo único do Decreto-Lei nº 543-A/80, de 10 de Novembro, na interpretação segundo a qual para ser pago o subsídio de Natal, torna-se necessário que os militares se encontrem no serviço activo em 1 de Novembro de cada ano.
2. Esgrime o impugnante, em primeiro passo, com a circunstância de a interpretação normativa acolhida no acórdão recorrido se revelar contrária ao princípio da igualdade constitucionalmente consagrado.
Iniciar-se-á a análise da questão de constitucionalidade colocada ao Tribunal justamente por essa alegada enfermidade.
3. De harmonia com o disposto no artigo 13º da Constituição, [t]odos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei (nº 1), ninguém podendo ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social (nº 2).
A respeito do princípio estatuído na transcrita disposição constitucional, existe já uma consolidada jurisprudência deste Tribunal, podendo, neste particular, citarem-se, como exemplo, e por entre muitos, os Acórdãos números 186/90, 187/90 e 188/90 (publicados na 2ª Série do Diário da República de 12 de Setembro de 1990), referindo-se, em dados passos, no último deles:-
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Na sua dimensão material ou substancial, o princípio constitucional da igualdade vincula em primeira linha o legislador ordinário (...). Todavia, este princípio não impede o órgão legislativo de definir as circunstâncias e os factores tidos como relevantes e justificadores de uma desigualdade de regime jurídico num caso concreto, dentro da sua liberdade de conformação legislativa.
Por outras palavras, o princípio constitucional da igualdade não pode ser entendido de forma absoluta, em termos tais que impeça o legislador de estabelecer uma disciplina diferente quando diversas forem as situações que as disposições normativas visam regular.
O princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a realização de distinções, Proíbe- -lhe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável (vernünfliger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio (Wilkürverbot).
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Também este Tribunal Constitucional vem perfilhando a interpretação do princípio da igualdade como proibição do arbítrio. Afirma-se, como efeito, no Acórdão nº 39/88 (Diário da República, 1ª série, de 3 de Março de 1988): «O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes, Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no nº 2 do artigo 13º». E, no Acórdão nº 157/88 (Diário da República, 1ª série, de 26 de Julho de 1988), escreve-se: «Retomando aqui, uma vez mais, o entendimento que este Tribunal vem perfilhando (na esteira, de resto, da Comissão Constitucional e da doutrina) acerca do sentido e alcance do princípio da igualdade, na sua função 'negativa' de princípio de 'controle'..., tudo estará em saber se, ao estabelecer a desigualdade de tratamento em causa, o legislador respeitou os limites à sua liberdade conformadora ou constitutiva
('discricionariedade' legislativa), que se traduzem na ideia geral de proibição de arbítrio. Ou seja: tudo estará em saber se essa desigualdade se revela como
'discriminatória' e arbitrária, por desprovida de fundamento racional (ou fundamento material bastante), atenta a natureza e a especificidade da situação e dos efeitos tidos em vista (e logo o objectivo do legislador) e, bem assim, o conjunto dos valores e fins constitucionais (isto é, a desigualdade não há-de buscar-se num 'motivo' constitucionalmente impróprio)»...............
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Esclareça-se que a «teoria da proibição do arbítrio» não é um critério definidor do conteúdo do princípio da igualdade, antes expressa e limita a competência de controlo judicial. Trata-se de um critério de controlabilidade judicial do princípio da igualdade que não põe em causa a liberdade de conformação do legislador ou a discricionariedade legislativa. A proibição do arbítrio constitui um critério essencialmente negativo, com base no qual são censurados apenas os casos de flagrante e intolerável desigualdade. A interpretação do princípio da igualdade como proibição do arbítrio significa uma autolimitação do poder do juiz, o qual não controla se o legislador, num caso concreto, encontrou a solução mais adequada ao fim, mais razoável ou mais justa.
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3.1. Parametrizada assim a dimensão material do princípio da igualdade, haverá que saber se a norma em apreço, com o sentido com que foi interpretada no aresto ora sob censura, é feridente de tal princípio.
Convindo não olvidar que o recorrente, como foi dado por assente pelo Supremo Tribunal Administrativo, prestou serviço na Marinha desde 21 de Maio de 1980 até 30 de Setembro de 1991, data na qual lhe foi dada baixa de serviço, a questão que se coloca é a de saber se a interpretação conferida à disposição ínsita no artº 4º do Decreto-Lei nº 498-E/74, de 30 de Setembro, conjugada com o que se consagrou no artigo único do Decreto-Lei nº 543-A/80, de
10 de Novembro, se posta como algo criador de uma desigualdade de tratamento, censurável do ponto de vista constitucional, e isto ponderando o tratamento legislativo que é dado relativamente aos militares da Marinha que, em 1 de Novembro de cada ano, ainda se encontrem na situação do activo ou de reserva na efectividade de serviço.
Na realidade, tocantemente a estes últimos, perfilhou a decisão a quo, inequivocamente suportada naqueles dispositivos, a óptica segundo a qual, se num dado ano, à data de 1 de Novembro, encontrando-se os mesmos no serviço efectivo, ainda não tiverem completado um ano de efectivo serviço, têm eles direito a receber um subsídio do valor correspondente a tantos duodécimos quantos os meses de serviço efectivo prestado. Mas, segundo uma interpretação dos aludidos dispositivos seguida pela dita decisão, no que respeita aos militares que, num dado ano, àquela data, já não se encontrarem no serviço efectivo, não desfrutarão os mesmos de um tal direito.
Esta dualidade de tratamento advinda da interpretação seguida pelo acórdão impugnado, adianta o Tribunal desde já, perfila-se como consubstanciando uma diferenciação não justificada ou, se se quiser, como uma desigualdade desprovida de fundamento material ou objectivo bastante.
De facto, se se pensar, num militar da Marinha que, verbi gratia, tenha sido incorporado no dia 1 de Agosto de um dado ano e tenha sido abatido ao serviço efectivo em 2 de Novembro seguinte, terá ele direito a três duodécimos do vencimento correspondente. Porém, de harmonia com a interpretação normativa em causa, se um outro militar do mesmo Ramo tiver sido incorporado em 1 de Janeiro desse ano (ou até incorporado em anos anteriores) e tiver tido baixa do serviço efectivo em 31 de Outubro, já não lhe será abonado qualquer subsídio.
E isto, única e simplesmente, pela circunstância acidental de ter sido abatido ao serviço antes de uma determinada data.
3.2. Não vislumbra o Tribunal qualquer razão assente em critérios objectivos constitucionalmente relevantes que apontem para que a alietoriedade adveniente da data do abatimento ao serviço justifique uma tal discriminação de tratamento legislativo.
Efectivamente, se se seguir a perspectiva segundo a qual a concessão do subsídio de Natal concedido pelo artº 4º do D.L. nº 498-E/74 e ao tempo em que o foi, foi iluminada pelos mesmos fins daqueloutra que, para os funcionários e agentes da Administração Pública (tomada esta em sentido mais amplo), se consagrou por intermédio, por exemplo, do Decreto-Lei nº 496/80, de 20 de Outubro, ou seja, os de prover ao reforço da capacidade económica 'no sentido de suportar ... as despesas originadas pela época de ... quadra de Natal' ou de
'aumentar a capacidade económica ... para fazer face às despesas extraordinárias de uma quadra festiva como é o Natal' (palavras de João Alfaia, in Conceitos Fundamentais do Regime Jurídico do Funcionalismo Público, 2º vol., 1988, 935 e
942), não é perceptível que aquela concessão, nos moldes em que é abonada no ano da cessação efectiva de funções, possa ou não ocorrer consoante a cessação ocorra numa ou noutra data (cfr., quanto àqueles funcionários, em situação semelhante à do caso do ora recorrente, o disposto no artº 7º, números 1 e 2 do aludido D.L. nº 496/80) .
Não lobriga o Tribunal qualquer razão suportada em valores ou interesses radicados numa racional fundamentação ou na prossecução valores constitucionalmente tuteláveis que justifique uma diferenciação consubstanciada no abono de duodécimos do subsídio de Natal nos termos do nº 2 do artº 4º do D.L. nº 498-E/74, caso o militar esteja nas situações do activo e de reserva na efectividade do serviço em 1 de Novembro do respectivo ano, e no não abono do militar que em tais condições se não encontre nessa data.
Atender-se à circunstância da permanência ou não permanência na situação do activo ou de reserva na efectividade do serviço numa dada data para, com base nela, o militar poder usufruir do direito ao abono de duodécimos de subsídio de Natal, tanto mais que, muitas vezes, a efectivação da baixa de serviço não repousa na vontade do próprio, antes estando dependente de factores alheios, inclusivamente dos modos ou formas de processamento burocrático da Administração Militar, é algo que, no entendimento deste Tribunal, se manifesta como instituidor de flagrante desigualdade. Logo, uma tal solução legislativa
(in casu alcançada por interpretação normativa), por arbitrária ou, se se quiser, por não justificada racional, razoável ou objectivamente, é passível de um juízo de censura constitucional fundado no princípio que deflui do artigo 13º do Diploma Básico.
Alcançada esta conclusão, inútil se torna a dilucidar se os normativos em apreço, com o sentido interpretativo que lhes foi conferido, afrontam outras normas ou princípios constitucionais.
4. Aponte-se, por último, que, tendo em conta que a este Tribunal, em casos como o vertente, compete tão só aferir da constitucionalidade normativa, nunca poderá o mesmo decidir no sentido de impor a solução aventada pelo recorrente na «conclusão XII» da sua alegação, acima transcrita.
III
Em face do exposto, decide-se:-
a) Julgar inconstitucional, por ofensa do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição, a norma resultante da conjugação do artº 4º do Decreto-Lei nº 498-E/74, de 30 de Setembro com o artigo único do Decreto-Lei nº 543-A/80, de 10 de Novembro, na interpretação segundo a qual,para ser pago o subsídio de Natal, torna-se necessário que os militares se encontrem no serviço activo em 1 de Novembro de cada ano e, em consequência,
b) Conceder provimento ao recuso, determinando a reforma do acórdão impugnado de harmonia com o ora decidido quanto à questão de inconstitucionalidade. Lisboa, 12 de Janeiro de 1999 Bravo Serra Messias Bento José de Sousa e Brito Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida