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Proc. nº 198/92 Proc. nº 62/93 (incorp.) Plenário Rel.: Consº Luís Nunes de Almeida
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. O Procurador-Geral da República veio requerer ao Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 281º, nº 1, alínea a), e nº 2, alínea e), da Constituição, a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 11º da Lei nº 2/92, de 9 de Março (Lei do Orçamento do Estado para 1992).
Alegou, para tanto, e em síntese, que aquela norma, ao impor, com efeitos imediatos, um diverso, e substancialmente mais baixo, limite máximo de remuneração para determinadas categorias de funcionários públicos, violou, por um lado, o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º, nºs 1 e 2, da Constituição, e, por outro, o princípio da protecção da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, este consagrado no artigo 2º da Lei Fundamental.
Entende o requerente que não se vislumbra a existência de qualquer justificação material razoável para o estabelecimento de tal limite máximo, especificadamente para as categorias de funcionários referidos no artigo 11º da mencionada Lei nº 2/92, limite esse diferente e mais baixo do que vale para a generalidade dos funcionários públicos, o que se traduziria numa distinção irrazoável, e como tal ofensiva do invocado princípio constitucional da igualdade.
Por outro lado, conclui ainda o requerente que a quebra de direitos verificada com a introdução daquele limite máximo, e a consequente baixa de remuneração dos funcionários por ele abrangidos, traduz uma violação intolerável do princípio da protecção da confiança, por se tratar de uma alteração irrazoável, com a qual se não poderia nem deveria contar.
2. Notificado para se pronunciar sobre o pedido, o Presidente da Assembleia da República limitou-se a oferecer o merecimento dos autos e a juntar ao processo os exemplares do Diário da Assembleia da República donde constam a discussão e aprovação da norma impugnada.
3. Posteriormente, o Procurador-Geral da República, invocando sempre as mesmas disposições constitucionais, veio requerer a este Tribunal a apreciação e declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 9º da Lei nº 30-C/92, de 28 de Dezembro (que aprovou o Orçamento do Estado para 1993), que veio aditar os nºs 6 e 7 ao artigo
41º do Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho.
Para fundamentar o pedido, o Procurador-Geral da República retomou, na íntegra, a motivação aduzida no pedido anterior.
4. Notificado, também, para se pronunciar sobre este pedido, voltou o Presidente da Assembleia da República a oferecer o merecimento dos autos e a juntar os exemplares do Diário da Assembleia da República atinentes ao debate parlamentar efectuado quando da aprovação da norma em questão.
5. Dada a essencial identidade entre as normas impugnadas, foi o processo respeitante a este último pedido incorporado no primeiro, para apreciação simultânea das normas em causa.
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTOS A - Introdução
6. O referido artigo 11º da Lei nº 2/92, veio dispor o seguinte:
1. Os funcionários que exercem funções em órgãos de soberania e os membros dos respectivos gabinetes, bem como os funcionários dos grupos parlamentares, não podem auferir remunerações mensais ilíquidas, a título de vencimento, remunerações suplementares, despesas de representação, subsídios, suplementos, horas extraordinárias ou a qualquer outro título, superiores à remuneração base do primeiro-ministro.
2. O disposto no número anterior é aplicável às entidades e organismos que funcionam junto dos órgãos de soberania e prevalece sobre quaisquer disposições legislativas e regulamentares, gerais ou especiais, em vigor.
Quanto ao artigo 9º da Lei nº 30-C/92, reza o seguinte:
O artigo 41º do Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho, passa a ter a seguinte redacção:
ARTIGO 41º
Regimes especiais
1 - .........................
2 - .........................
3 - .........................
4 - .........................
5 - .........................
6 - O pessoal que exerce funções em órgãos de soberania e os membros dos respectivos gabinetes, bem como o pessoal dos grupos parlamentares, não podem auferir remunerações mensais ilíquidas, a título de vencimento, remunerações suplementares, despesas de representação, subsídios, suplementos, horas extraordi- nárias ou a qualquer outro título, superiores à remuneração base do Primeiro-Ministro.
7 - O disposto no número anterior é aplicável às entidades e organismos que funcionam junto dos órgãos de soberania e prevalece sobre quaisquer disposições legislativas e regulamentares, gerais ou especiais, em vigor.
Estas disposições são totalmente correspondentes, com ressalva da substituição da expressão «os funcionários» pela expressão «o pessoal».
7. As normas questionadas vieram, assim, estabelecer um limite máximo para a remuneração dos «funcionários que exercem funções em órgãos de soberania e os membros dos respectivos gabinetes, bem como os funcionários dos grupos parlamentares», sendo ainda aplicável «às entidades e organismos que funcionam junto dos órgãos de soberania».
Notar-se-á, antes de mais, não haver qualquer referência, nos debates parlamentares, a estas normas, pelo que se não dispõe de quaisquer elementos ou indicações sobre os motivos ou interesses eventualmente invocados para justificar a instituição daquele limite máximo à remuneração de certas categorias de funcionários e agentes.
Não questiona o requerente o estabelecimento ou a existência, no
âmbito da função pública, de limites máximos à remuneração do trabalho, com longa tradição na nossa ordem jurídica, por motivos relacionados com uma certa ideia de hierarquia e de moralização da Administração Pública.
O que efectivamente questiona é, por um lado, o estabelecimento, com efeitos imediatos, de um «específico limite máximo de remuneração, isto é, susceptível de implicar a imediata redução de remunerações que estavam legalmente a ser percebidas pelos aludidos funcionários à data da entrada em vigor da Lei nº 2/92», e, por outro lado, a aplicabilidade desse limite apenas a certas categorias de funcionários.
8. O limite máximo de remuneração em vigor para a generalidade da função pública é o constante do artigo 3º, nºs 1 e 2, da Lei nº 102/88, de 25 de Agosto, que corresponde a «75% do montante equivalente ao somatório do vencimento e abono mensal para despesas de representação do Presidente da República», não sendo consideradas «as diuturnidades do regime geral, o subsídio de refeição, o abono de família e prestações complementares, os abonos para falhas, as ajudas de custo, subsídios de viagem e de marcha e quaisquer outros que revistam a natureza de simples compensação ou reembolso de despesas realizadas por motivo de serviço».
Anteriormente, esse limite máximo, ou «tecto» salarial, para a generalidade dos funcionários e agentes, constava do artigo 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 49 410, de 24 de Novembro de 1969, que determinava que os servidores do Estado não poderiam receber « pelo exercício de cargos públicos, pagos pelo Orçamento Geral do Estado, ainda que em regime de acumulação, importância total superior ao ordenado correspondente à letra A, acrescido de 25 por cento». Posteriormente, esse limite máximo geral referido, constante do Decreto-Lei nº 49 410, foi reportado, pelo artigo 26º do Decreto-Lei nº
110-A/81, de 14 de Maio, ao vencimento de ministro, ficando excluídas desse limite diversas remunerações complementares (trabalho extraordinário ou nocturno, subsídios, etc.).
Como o requerente demonstra nas suas alegações, o limite máximo geral constante da Lei nº 102/88 é superior ao limite fixado nas normas impugnadas (ou seja, ao vencimento-base do Primeiro-Ministro). Com efeito, enquanto aquele primeiro limite corresponde a 75% do montante equivalente à soma do vencimento e do abono para despesas de representação do Presidente da República (que é no quantitativo de 40% do seu vencimento, de acordo com o disposto no artigo 1º da Lei nº 26/84, de 31 de Julho, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1º da referida Lei nº 102/88), já o vencimento-base do Primeiro-Ministro equivale apenas a 75% do vencimento do Presidente da República
– ou seja, a percentagem de 75% não incide aqui sobre o abono para despesas de representação auferido pelo Presidente da República (cfr. artigo 9º, nº 1, da Lei nº 4/85, de 9 de Abril).
Assim, segundo o requerente, a norma questionada, ao estabelecer, como limite máximo da remuneração ilíquida das categorias de funcionários nela previstos, montante não superior ao vencimento-base do Primeiro-Ministro, e incluindo no conceito de remuneração para os efeitos de aplicação desse limite ainda as quantias auferidas por tais funcionários a título de «remunerações suplementares, despesas de representação, subsídios, suplementos, horas extraordinárias ou a qualquer outro título», estabeleceu para estes um tecto salarial que, ao menos formalmente, se revela bastante inferior àquele limite geral indicado, diferença essa que rondará algumas centenas de contos, assim determinando a consequente redução das remunerações auferidas por aqueles, na parte referida, imediatamente após a entrada em vigor da Lei nº 2/92.
9. O presente pedido de apreciação da constitucionalidade das normas indicadas ter-se-á fundamentado no Parecer nº 16/92 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, o qual, embora não homologado pelo Presidente da Assembleia da República, foi já publicado (Procuradoria-Geral da República, Pareceres, vol. I, págs. 18 e segs.). Nele se apreciou aquela norma constante do artigo 11º da Lei nº 2/92, tendo aí sido formuladas as seguintes conclusões:
1ª - A norma do artigo 11º, nºs 1 e 2, da Lei nº 2/92, de 9 de Março
(Orçamento do Estado para 1992), que estabelece um limite remuneratório máximo - o vencimento-base do primeiro ministro - para os funcionários que exercem funções em órgãos de soberania, membros dos respectivos gabinetes, funcionários dos grupos parlamentares e das entidades e organismos que funcionam junto dos
órgãos de soberania, aplica-se imediatamente a todas as situações e relações anteriormente constituídas e existentes no momento em que entrou em vigor;
2ª - A referida norma, aplicando-se imediatamente, nos termos da conclusão anterior, a todas as situações e relações existentes, pode determinar a produção de efeitos retrospectivos desfavoráveis (rectroactividade aparente ou inautêntica), enquanto provoque a redução para o limite máximo estabelecido de remunerações globais superiores anteriormente auferidas;
3ª - A retroactividade das leis (ou a produção de efeitos retrospectivos), embora não excluída directamente pela Constituição fora das hipóteses previstas nos artigos 18º, nº 3, e 29º, pode, todavia, afectar o princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2º da Constituição;
4ª - A lei retroactiva, ou que produza efeitos quanto a situações ou relações constituídas no passado e ainda subsistentes no momento em que entre em vigor, viola o princípio da confiança ínsito no Estado de Direito quando a produção de tais efeitos se revele opressiva, intolerável e inadmissível, por afectar em medida acentuada a confiança que os cidadãos têm o direito de depositar na continuidade das relações constituídas e seus efeitos;
5ª - O pessoal da Assembleia da República tem regime especial de trabalho, segundo o disposto no artigo 52º da Lei nº 77/88, de 1 de Julho
(LOAR), que pode compreender, nomeadamente, horário especial de trabalho, regime de trabalho extraordinário, prestação de serviço por turnos e remuneração suplementar;
6ª - A remuneração do pessoal da Assembleia da República compreende, segundo o princípio contido no artigo 53º da LOAR, a remuneração estatutária, que corresponder à respectiva categoria de acordo com o regime remuneratório geral da função pública, e os complementos que, em concreto, sejam determinados pelo regime de trabalho que for fixado em execução do disposto no artigo 52º da LOAR;
7ª - Os suplementos ou componentes remuneratórios, determinados em função do regime concreto de trabalho, não são imutáveis e subjectivizados definitivamente, dependendo das necessidades e exigências do regime de trabalho estabelecido;
8ª - A aplicação do disposto no artigo 11º, nº 1, da Lei nº 2/92, de
9 de Março, ao pessoal da Assembleia da República, na medida em que, eventualmente, afecte apenas os componentes remuneratórios determinados em função do regime especial de trabalho concretamente fixado, não viola de maneira inadmissível o princípio da confiança ínsita no Estado de Direito;
9ª - Porém, a norma do artigo 11º, nº 1, da Lei nº 2/92, de 9 de Março, ao estabelecer um limite de remunerações diverso do fixado no artigo 3º da Lei nº 103/88, de 25 de Agosto, cria uma diferença de tratamento entre os funcionários em geral e os funcionários abrangidos no universo pessoal e funcional que delimita, sem justificação material razoável, violando, nessa medida, o princípio da igualdade inscrito no artigo 13º da Constituição;
10ª - Sendo a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, de qualquer norma, da competência do Tribunal Constitucional, a Administração deve obediência ao disposto no artigo 11º, nºs 1 e 2 da Lei nº
2/92 enquanto o Tribunal Constitucional não declarar esta norma inconstitucional.
10. No artigo 3º da Lei nº 102/88 preceitua-se o seguinte:
1 - Pelo exercício, ainda que em regime de acumulação, de quaisquer cargos e funções públicas, com excepção do Presidente da Assembleia da República, não podem, a qualquer título, ser percebidas remunerações ilíquidas superiores a 75% do montante equivalente ao somatório do vencimento e abono mensal para despesas de representação do Presidente da República.
2 - Para efeitos do limite referido no número anterior, não são consideradas as diuturnidades do regime geral, o subsídio de refeição, o abono de família, e prestações complementares, os abonos para falhas, as ajudas de custo, subsídios de viagem e de marcha e quaisquer outros que revistam a natureza de simples compensação ou reembolso de despesas realizadas por motivo de serviço.
3 - O disposto no presente artigo prevalece sobre todas as disposições gerais ou especiais em contrário, incluindo as aplicáveis à administração central, regional ou local e aos institutos públicos que revistam a natureza de serviços personalizados ou fundos públicos.
4 - As remunerações previstas no artigo 7º do Decreto-Lei nº 464/82, de 9 de Dezembro, não estão abrangidas pelo limite consignado nesta disposição.
É por referência a esta norma que o requerente coloca a questão da eventual violação do princípio da igualdade pelas normas impugnadas, constantes do artigo 11º da Lei nº 2/92 e do artigo 9º da Lei nº 30-C/92.
11. A presente apreciação importará, pois, necessariamente, a análise do âmbito de aplicação destas normas e dos sujeitos por elas abrangidos.
As normas ora em apreço vieram estabelecer um «tecto salarial» que veio abranger:
- os funcionários que exercem funções nos órgãos de soberania;
- os membros dos gabinetes dos órgãos de soberania;
- os funcionários dos grupos parlamentares;
- os funcionários das entidades e organismos que funcionam junto dos órgãos de soberania.
A redacção das normas em causa é, no mínimo, equívoca, pois que todos os serviços públicos funcionam na dependência de um órgão de soberania, em regra geral, o Governo. Todavia, não é seguramente intenção dessas normas que o seu âmbito de aplicação abranja a generalidade da função pública; o que se procura, antes, é visar certas categorias de funcionários, e apenas esses.
Se dúvidas não há quanto às referências expressas aos «membros dos gabinetes» e aos «funcionários dos grupos parlamentares», concretamente mencionados, é em relação à expressão «funcionários que exercem funções nos
órgãos de soberania» que se levanta a questão da necessidade de delimitação do seu âmbito.
Aquela previsão normativa não se destina, claramente, à generalidade da função pública, desde logo pela sua própria redacção, já que se vêm a enumerar certas categorias específicas de funcionários e agentes, após a referência aos «funcionários que exercem funções nos órgãos de soberania», o que revela que, também estes últimos, hão-de constituir uma categoria específica.
Nesta conformidade, com aquela referência aos «funcionários que exercem funções em órgãos de soberania», terá o legislador tido em vista outros
órgãos de soberania, que não o Governo, nomeadamente, a Presidência da República e a Assembleia da República. E quando se referem as «entidades e organismos que funcionam junto dos órgãos de soberania» ter-se-á pretendido alvejar, em primeira linha, aquelas entidades e organismos que funcionam junto da Assembleia da República, como a Provedoria de Justiça (cfr. a Lei nº 9/91, de 9 de Abril, que aprovou o Estatuto do Provedor de Justiça, o Decreto-Lei nº 279/93, de 11 de Agosto, que aprovou a estrutura orgânica da Provedoria, com as alterações constantes do Decreto-Lei nº 15/98, de 29 de Janeiro e do Decreto-Lei nº
15/2001, de 27 de Junho), a Comissão Nacional de Eleições (criada pela Lei nº
71/78, de 27 de Dezembro, com as alterações introduzidas pela Lei nº 4/2000, de
12 de Abril), a Alta Autoridade para a Comunicação Social (cfr. Lei nº 43/98, de
6 de Agosto), a Comissão Nacional de Protecção de Dados (regulamentada pela Lei nº 67/98, de 26 de Outubro), e ainda a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA, criada pela Lei nº 65/93, de 26 de Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei nº 8/95, de 29 de Março).
12. Para se efectuar a requerida apreciação, torna-se conveniente proceder previamente a uma análise concreta, embora perfunctória, do regime salarial em vigor para a função pública.
A matéria de remunerações do emprego público foi definida pelo Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho, o qual estabeleceu os princípios gerais neste domínio, e pelo Decreto-Lei nº 353-A/89, de 16 de Outubro, que desenvolveu aqueles princípios. Tais diplomas vieram reformular o sistema até então em vigor, já com mais de cinquenta anos, procedendo à reforma e harmonização do sistema retributivo (que passou a ser abreviadamente designado por NSR - Novo Sistema Retributivo da Administração Pública), com a introdução do sistema de escalas indiciárias de remuneração.
O artigo 2º do Decreto-Lei nº 353-A/89, similarmente ao preceituado no artigo 2º do Decreto-Lei nº 184/89, dispõe quanto ao seu campo de aplicação, o seguinte:
1- O presente diploma aplica-se a todos os serviços e organismos da administração central, local e regional autónoma, incluindo os institutos públicos nas modalidades de serviços personalizados do Estado e de fundos públicos.
2- O presente diploma aplica-se também aos serviços e organismos que estejam na dependência orgânica e funcional da Presidência da República e da Assembleia da República e aos serviços de apoio das instituições judiciárias.
O artigo 15º do Decreto-Lei nº 184/89, sob a epígrafe «Componentes do sistema retributivo», veio estabelecer, por seu turno:
1 - O sistema retributivo da função pública é composto por:
a) remuneração base;
b) prestações sociais e subsídio de refeição;
c) suplementos.
2 - Não é permitida a atribuição de qualquer tipo de abono que não se enquadre nas componentes referidas no número anterior.
Por sua vez, o artigo 19º do mesmo diploma define e procede à enumeração dos suplementos admitidos:
1 - Os suplementos são atribuídos em função de particularidades específicas da prestação de trabalho e só podem ser considerados os que se fundamentam em:
a) Trabalho extraordinário, nocturno, em dias de descanso semanal ou feriados, em disponibilidade permanente ou outros regimes especiais de prestação de trabalho;
b) Trabalho prestado em condições de risco, penosidade ou insalubridade;
c) Incentivos à fixação em zonas de periferia;
d) Trabalho em regime de turnos;
e) Falhas;
f) Participação em reuniões, comissões ou grupos de trabalho, não acumuláveis com a alínea a).
2 - Podem ser atribuídos suplementos por compensação de despesas feitas por motivos de serviço que se fundamentem, designadamente, em:
a) Trabalho efectuado fora do local normal de trabalho, que dê direito à atribuição de ajudas de custo, ou outros abonos devidos a deslocações em serviço;
b) Situações de representação;
c) Transferência para localidade diversa que confira direito a subsídio de residência ou outro.
3 - A fixação das condições de atribuição dos suplementos é estabelecida mediante decreto-lei.
Por fim, o artigo 38º do mesmo Decreto-Lei determinou «a extinção de todas as remunerações não previstas ou enquadráveis» naquele artigo 15º, tendo sido igualmente extintas as diuturnidades, pelo artigo 37º.
Consequentemente, e para efeitos de transição e integração dos funcionários na nova estrutura salarial, dispôs aquele diploma no seu artigo
39º:
1 - Cada funcionário ou agente é integrado na nova estrutura salarial:
a) Na mesma carreira e categoria;
b) Em escalão a que corresponda remuneração igual ou imediatamente superior se não houver coincidência de remunerações.
2 - A remuneração a considerar para efeitos de transição resulta do somatório dos montantes correspondentes à remuneração base e às diuturnidades.
3 - Nos casos de percepção de remunerações acessórias extintas pelo artigo anterior, a remuneração a considerar para efeitos de transição resulta do somatório dos montantes correspondentes à remuneração base, às diuturnidades e
às remunerações acessórias.
4 - Sempre que o montante apurado nos termos do nº 3 ultrapasse o valor do escalão máximo da respectiva categoria, é criado um diferencial de integração de valor correspondente à diferença entre a remuneração indiciária e o montante já percebido, o qual continuará a ser totalmente absorvido por aumentos decorrentes das actualizações salariais gerais, em termos a definir.
5 - A absorção gradual do diferencial de integração faz-se em termos a definir anualmente no âmbito do processo de actualização salarial.
6 - O diferencial de integração tem carácter de remuneração pessoal e não pode ser atribuído a situações constituídas após a entrada em vigor do novo sistema retributivo.
Finalmente, o artigo 41º do mesmo Decreto-Lei estabeleceu a salvaguarda de regimes especiais, dispondo, na sua redacção original, o seguinte:
1 - Ao pessoal dirigente aplica-se o respectivo estatuto e as disposições do presente diploma sobre matéria retributiva.
2 - O disposto neste diploma em matéria de ingresso na função pública não prejudica os direitos reconhecidos no âmbito dos incentivos à expansão da rede escolar e ao aperfeiçoamento dos recursos educativos.
3 - As disposições do presente diploma sobre relação jurídica de emprego não prejudicam regimes especiais que prevejam a eleição como forma de provimento.
4 - Ao pessoal dos institutos públicos que revistam a forma de serviços personalizados ou de fundos públicos e dos serviços públicos abrangidos pelo regime aplicável às empresas públicas ou de contrato individual de trabalho, bem como das conservatórias, cartórios notariais e às situações identificadas em lei como regime de direito público privativo, aplicam-se as respectivas disposições estatutárias.
5 - Ao pessoal dos consulados e missões diplomáticas aplica-se a legislação em vigor.
Foi a esta disposição legal que o artigo 9º da Lei nº 30-C/92 veio aditar os nºs 6 e 7, também em apreciação nestes autos.
13. Consequência clara da introdução deste novo estatuto remuneratório da função pública - NSR - foi o «congelamento» operado sobre as remunerações acessórias, processando-se a sua integração pela criação de um
«diferencial de integração», pago além do valor da remuneração resultante do novo estatuto, e até ser absorvido pelas sucessivas actualizações salariais.
Na sequência do novo estatuto, fez o Executivo publicar múltipla legislação, nomeadamente entre 1989 e 1991, destinada a adaptar e conformar a função pública, nas suas diversas carreiras e corpos, ao actual sistema retributivo.
Quanto ao pessoal dirigente, dispunha o artigo 6º do Decreto-Lei nº
191-F/79, de 26 de Junho, que os respectivos vencimentos constariam de tabela autónoma a fixar em decreto-lei, não referenciada a letras de vencimento. Esta categoria de pessoal transitou para o novo sistema retributivo, nos termos dos artigos 30º e 31º do Decreto-Lei nº 353-A/89.
Nos termos do nº 2 do artigo 15º daquele Decreto-Lei nº 191-F/79, as regras dele constantes não se aplicavam aos cargos de direcção ou chefia integrados em carreiras nem ao cargo de secretário-geral da Assembleia da República.
14. Feita esta incursão, ainda que necessariamente não exaustiva, pelo actual sistema retributivo da função pública, estamos agora em posição de avançar nesta análise ao âmbito de aplicação das normas em causa.
Dois pontos fundamentais se concluem desde logo da análise feita ao NSR: por um lado, este teve na sua origem, de forma indissociável do seu carácter de reforma e harmonização do estatuto salarial da função pública - e como resulta claramente do transcrito artigo 2º do Decreto-Lei nº 353-A/89 -, uma ideia ou uma preocupação de «generalização» ou «globalização», regulamentando de forma o mais unitária e completa possível esta matéria.
Não se desvia dessa coerência o facto de o mesmo diploma prever
«regimes especiais», como já anteriormente indicado. Esses regimes são determinados por específicas características e natureza das funções a que respeitam, que condicionam ou determinam o regime de trabalho, no caso de certos tipos de actividades particulares.
A outra conclusão é a de que o estabelecimento de limites máximos ou
«tectos» salariais no mundo do funcionalismo público, não só não é uma qualquer inovação, como antes corresponde a uma longa prática legislativa, que sempre norteou e presidiu à regulamentação desta matéria, nomeadamente e durante largo período, por referência aos salários dos directores-gerais, nos termos dos referidos Decreto-Lei nº 49.410 e Decreto-Lei nº 191-F/79.
15. Como se viu, as normas em apreciação não visaram a generalidade da função pública, pois que, nesse caso, a sua redacção seria semelhante à do referido artigo 3º da Lei nº 102/88 (de resto, na esteira dos preceitos anteriores, igualmente referidos). O limite geral - ou seja, destinado, esse sim, à generalidade da função pública, - continua a ser o constante daquela norma da Lei nº 102/88. A introdução da norma constante do artigo 11º da Lei nº
2/92, e, posteriormente, do artigo 9º da Lei nº 30-C/92, não visou a substituição ou revogação daquele outro preceito, apesar da sua redacção algo equívoca, mas antes o estabelecimento de um «tecto salarial» específico para determinado pessoal, especificamente o seguinte:
- funcionários dependentes da Presidência da República, da Assembleia da República ou de entidades ou organismos que funcionam junto desses
órgãos de soberania;
- membros dos gabinetes dos órgãos de soberania;
- funcionários dos grupos parlamentares.
Por outro lado, as normas em causa obviamente não atingiram todo o pessoal nessas condições, mas apenas aqueles que auferiam, em concreto, remuneração superior a esse específico «tecto salarial», ou seja, como se depreende facilmente da anterior enumeração, e a seguir se comprovará, tão-só os funcionários que integram os corpos dirigentes e o topo das chefias externas, ou seja, os directores-gerais ou a estes equiparados.
Assim, embora visando aquelas normas apenas um restrito e determinado grupo de pessoal da função pública, ligam-se elas, pelas suas características, a certas opções fundamentais do legislador relativas ao respectivo regime remuneratório, reflectindo «ideias de equilíbrio, ponderação comparativa e ajustamentos de relação substancialmente hierárquica quanto ao limite superior (‘tecto’) de vencimentos da função pública em situações específicas» (cfr. Parecer cit.).
Concretamente, no que toca ao pessoal da AR (como vimos, directamente visado pelas normas em causa) possui este um regime especial de trabalho, fixado pelo artigo 52º da LOAR (Lei Orgânica da Assembleia da República, aprovada pela Lei nº 77/88, de 1 de Julho, com as alterações constantes da Lei nº 59/93, de 17 de Agosto), «decorrente da natureza e das condições de funcionamento próprias da Assembleia da República» (cfr. artigo
52º, nº 1).
Esse regime especial de trabalho é justificado pela natureza e condições de funcionamento próprias da AR, podendo compreender, nomeadamente, horário especial de trabalho, regime de trabalho extraordinário e prestação de serviço por turnos, o que por sua vez justifica ou determina a atribuição da remuneração suplementar prevista no mesmo artigo 52º.
Acerca desta remuneração, entendeu o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República que a sua função «traduz uma natureza complexa: em parte visa compensar o trabalho prestado fora do horário normal de serviço da função pública, e em parte visa compensar a especial qualificação e intensidade de serviço exigido ao pessoal da Assembleia da República» (Parecer cit.).
E prosseguiu-se pela forma seguinte:
[...] O trabalho extra pode ser remunerado, segundo o regime especial que for fixado, através do sistema de trabalho extraordinário, segundo as regras próprias deste sistema, ou com a referida remuneração suplementar.
Pretende-se retribuir uma forma especial de trabalho que é exigido aos que prestam serviço na Assembleia da República; atendendo-se a uma particular forma de prestação de trabalho, responde-se à específica diferença nessa prestação atribuindo-se uma remuneração suplementar.
Esta remuneração suplementar não é, no entanto, cumulável com a remuneração por trabalho extraordinário ou quaisquer outras remunerações acessórias, nem integra os subsídios de férias e de Natal. De todos estes elementos conclui o Parecer que esta remuneração suplementar participa assim,
«essencialmente, das características da remuneração por trabalho extraordinário, sem a estabilidade estatutária, tendencialmente permanente, definitivamente subjectivizada, que é própria das componentes remuneratórias estatutárias, directa e concretizadamente fixadas na lei».
Determina o artigo 53º da mesma LOAR que o regime remuneratório do pessoal da AR, dos Gabinetes do Presidente da Assembleia da República e dos grupos parlamentares ou equiparados é fixado pelo Presidente da AR, limitado no entanto pela tabela geral de vencimentos do pessoal da Administração Pública, o que significa que o núcleo fundamental da remuneração do pessoal da AR é o vencimento que lhes competir de acordo com a respectiva e própria categoria funcional, a qual, enquanto tal, não pode ser alterada. A fixação da remuneração suplementar cabe, porém, ao Presidente da AR, na forma de despacho, sob proposta do Conselho de Administração.
A forma de cálculo desta remuneração suplementar, a pagar em duodécimos, foi aprovada pelo Conselho de Administração da AR, em sessão de 25 de Outubro de
1989, e posteriormente homologada por despacho do Presidente da Assembleia da Republica de 26 de Outubro de 1989. Determinou-se, então, que a remuneração complementar em causa fosse calculada em função da aplicação da fórmula , em que Vm corresponde ao vencimento mensal do cargo ou categoria em que o funcionário estiver provido.
A aplicação desta fórmula traduz uma percentagem de aproximadamente
80% sobre o vencimento mensal dos funcionários. Assim, por exemplo, um director-geral da AR, ou equiparado, no ano de 1991 auferia um vencimento ilíquido de 388.500$00 e recebia ainda uma remuneração suplementar de
299.500$00, perfazendo no total uma remuneração global ilíquida de 688.000$00. Em 1992, estes montantes passaram, respectivamente, para 480.000$00 e
370.000$00, perfazendo um total de 850.000$00, enquanto que o vencimento-base do Primeiro-Ministro (não incluindo as despesas de representação) se fixou em
738.900$00.
Por via da publicação do artigo 11º da Lei nº 2/92, de 9 de Março, a partir da sua entrada em vigor, foram efectuadas deduções àquelas remunerações liquidadas ao pessoal da AR, por forma a que as mesmas não ultrapassassem o vencimento-base do Primeiro-Ministro. Assim, no caso do exemplo em causa, foram mensalmente efectuadas deduções no montante de 111.100$00, situando-se, a partir de então, a remuneração global ilíquida dos directores-gerais da AR em
738.900$00. E, nos anos seguintes, continuou-se a proceder às necessárias deduções, por forma a conter aquelas remunerações nos limites impostos pelas normas constantes do artigo 11º da Lei nº 2/92, de 9 de Março, e do artigo 9º do Decreto-Lei nº 30-C/92, de 28 de Dezembro.
A este núcleo de funcionários (e, por arrastamento, aos chefes de gabinete do Presidente da AR e dos grupos parlamentares, cujo vencimento se encontra indexado ao dos directores-gerais), se dirigiram, pois, essencialmente, as normas questionadas, sendo eles, portanto, de forma comprovada, os afectados pelas normas em causa.
16. Assim delimitado o efectivo alcance das normas em apreciação, podemos passar à análise das questões de constitucionalidade. E, apesar de o pedido se ter baseado na eventual violação dos princípios da igualdade e da confiança, pode o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 79º-C da LTC, apreciar a questão da inconstitucionalidade «com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais ou legais diversos daqueles cuja violação foi invocada».
Assim, começar-se-á por apreciar as questões de inconstitucionalidade suscitadas pelo requerente, começando-se por apreciar a questão da eventual violação do princípio da igualdade, uma vez que esta, a verificar-se, levaria à declaração de inconstitucionalidade total das normas em causa, passando-se então, e caso se não verifique qualquer violação do princípio da igualdade, à análise do princípio da confiança, cuja eventual violação foi igualmente suscitada pelo requerente, a qual, a verificar-se, poderá ou não reverter-se à eventual declaração de inconstitucionalidade total das normas.
A não se constatar a violação de qualquer desses princípios, ou a verificar-se apenas a declaração parcial de inconstitucionalidade das normas questionadas, no caso de se verificar eventual ofensa do princípio da confiança, passar-se-á então a apreciar outras questões que, embora não suscitadas pelo requerente no presente pedido podem levar à declaração de inconstitucionalidade total das normas, concretamente as questões da eventual natureza laboral das normas impugnadas, em primeiro lugar, e da sua eventual caracterização como
«cavaliers budgétaires», por último.
B – Da eventual violação do princípio da igualdade
17. Incorrerão as normas do artigo 11º da Lei nº 2/92 e do artigo 9º da Lei nº 30-C/92 em violação do princípio da igualdade? Numa primeira abordagem, tal conclusão pareceria impor-se de per si, e, de resto, assim o entende o requerente, considerando, designadamente, que: não se vislumbra a existência de qualquer justificação material razoável para o estabelecimento, especificamente para as categorias de funcionários referidos no artigo 11º da Lei nº 2/92, de um limite máximo de remuneração diferente e mais baixo do que vale para a generalidade dos funcionários públicos, previsto no artigo 3º da Lei nº 102/88, bastando atentar em que naquelas categorias se inserem funcionários do topo da escala hierárquica.
Não é este raciocínio, todavia, suficiente nem bastante para justificar tal juízo de inconstitucionalidade de forma segura, nomeadamente no que ao invocado princípio da igualdade respeita.
Para que haja violação do princípio constitucional da igualdade, necessário se torna verificar, por um lado, a existência de uma concreta e efectiva situação de diferenciação ou discriminação; ou seja, determinar se a norma em causa introduz uma efectiva diferenciação de tratamento entre, no caso, a generalidade dos funcionários – ou, pelo menos, certos grupos de funcionários
- e aqueles por ela visados. E, por outro lado, haverá que indagar da existência de eventual fundamento material para tal diferenciação, caso se verifique que ela existe efectivamente.
Para tanto, importa considerar o efectivo alcance ou âmbito de aplicação da norma em apreço. Perante uma norma anterior, que delimita o tecto salarial aplicável à generalidade dos funcionários públicos, terão as normas constantes do artigo 11º da Lei nº 2/92 e do artigo 9º da Lei nº 30-C/92 criado, na prática, uma discriminação, retirando da aplicação daquela outra norma um certo grupo de funcionários, impondo a estes, e apenas a estes, um tecto nitidamente mais baixo?
Tendo-se já determinado (supra, nº 15) quais os funcionários efectivamente abrangidos pela previsão das normas em apreciação, que são, essencialmente, os directores-gerais ou equiparados, (v. g., os chefes de gabinete), a exercer funções na AR, na medida em que os respectivos vencimentos globais ultrapassavam o limite pretendido, nomeadamente por via da remuneração suplementar, importa, agora, apurar se aquelas normas criam uma efectiva
«diferenciação» entre o «salário máximo» permitido para a generalidade dos funcionários públicos – ou, pelo menos, para certos grupos de funcionários - e o aplicável àquelas categorias visadas pelas normas em questão, sendo aquele superior a este.
Importará ainda, caso se conclua pela efectiva existência de uma qualquer «diferenciação», perguntar se existe uma justificação material bastante para o seu estabelecimento. É que, se ela existir, não ocorrerá qualquer violação do princípio da igualdade.
Não caberá a este Tribunal - assinale-se - averiguar da justeza política da solução adoptada, mas tão-só, determinar se a eventual diferenciação de regimes - caso se constate a existência da mesma - é ou não arbitrária ou irrazoável, ou seja, carece ou não de fundamento material bastante.
Com efeito, não está o legislador ordinário impedido de estabelecer diferenciações, desde que justificadas por uma realidade «desigual». O que não pode, evidentemente, é estabelecer discriminações injustificadas.
18. A este propósito, escreveu-se no citado parecer nº 16/92, da Procuradoria-Geral da República, não homologado:
A igualdade imposta pela Constituição não é, porém, mera igualação absoluta, mas a proibição da diferenciação injustificada.
O conteúdo constitucional da própria igualdade exige o tratamento igual de situações materialmente iguais, mas também, o tratamento diferenciado de situações materialmente diversas. Ponto é que qualquer diferenciação de tratamento ou de regulamentação seja motivada e justificada por razões materiais adequadas à diversidade de situações. A densificação do conceito de igualdade, como princípio imposto ao legislador, reconduz-se afinal à proibição de arbítrio.
Nesta perspectiva de enquadramento da questão, poder-se-á afirmar que não se encontra justificação material suficiente, razoável, não arbitrária , para a diferença de regimes estabelecidos no artigo 3º da Lei nº 102/88 e no artigo 11º da Lei nº 2/92.
A diferença quanto aos 'tectos' de vencimentos na função pública, em geral e para determinadas categorias de funcionários, não encontra, no plano dos limites em que o legislador se há-de mover, justificação material razoável, susceptível de suportar tratamento legislativo diverso. Não constitui, pois, uma discriminação portadora de justificação objectiva, razoável ou não arbitrária.
Faltando justificação material razoável, a diferença revela-se arbitrária e inadmissível, no quadro da imposição constitucional do princípio consagrado no artigo 13º, nº 1 da Constituição.
19. Comecemos por analisar o regime dos membros dos gabinetes e dos funcionários dos grupos parlamentares, especificamente referidos pelo artigo 11º da Lei nº 2/92, e pelo artigo 9º da Lei nº 30-C/92.
Quanto aos primeiros, e tal como consta do artigo 6º, nº 1, do Decreto-Lei nº 262/88, de 23 de Julho, - Regime do pessoal dos Gabinetes Ministeriais - e do artigo 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 322/88, de 23 de Setembro
- Pessoal do Gabinete do Primeiro-Ministro - são livremente nomeados e exonerados pelo membro do Governo a que respeitam, o mesmo regime se aplicando aos membros do gabinete do Presidente da Assembleia da República - artigos 9º e
10º da Lei Orgânica da Assembleia da República, Lei nº 77/88, de 1 de Julho
(LOAR). Não estamos, assim, perante um regime atinente a pessoal de carreira, com estabilidade de vínculo; trata-se, pelo contrário, de funções transitórias, exercidas por pessoal da confiança pessoal e política do membro do órgão de soberania a que se reportam, e na sua directa dependência.
Quanto aos funcionários dos grupos parlamentares, estão eles sujeitos a idêntico regime, como dispõe o artigo 62º, nº 3 da LOAR, sendo livremente nomeados e exonerados pela direcção dos respectivos grupos parlamentares.
Nesta conformidade, para além de não gozar de um regime de estabilidade de carreira, todo este pessoal, dada a particularidade das suas funções, está igualmente sujeito a regras especiais, quer quanto a condições de recrutamento (designadamente, habilitações), quer quanto a remunerações, constituindo um grupo com características próprias, bem diversas das que caracterizam as carreiras do funcionalismo público.
Não existe, assim, entre estes agentes e os funcionários do regime geral uma igualdade ou identidade de situações profissionais, pelo que nunca se poderá falar de violação do princípio de igualdade, com o eventual estabelecimento de diferentes limites máximos das remunerações.
20. Resta, porém, analisar a mesma questão, na parte que se refere aos funcionários parlamentares, recte, aos funcionários parlamentares com categoria de director-geral ou equiparado.
Nesta perspectiva, cabe averiguar, em primeiro lugar, se as normas impugnadas vieram introduzir uma discriminação entre esses funcionários e a generalidade dos funcionários públicos, relativamente ao respectivo limite máximo de remuneração. Só se poderá falar de violação do princípio da igualdade caso se constate uma situação de discriminação, mas já não se a situação em causa se reverter à eliminação de um benefício específico anteriormente atribuído, ainda que constitucionalmente admissível, desde que não constitucionalmente exigível.
Ora, na generalidade do universo da função pública, como regra, e como norma geral, não se detectam, de facto, e na prática, remunerações superiores ao limite constante da norma em questão, e isto, quer anteriormente, quer no momento de entrada em vigor da mesma.
Tal limite, na realidade, só será excedido em situações excepcionais, que, em virtude dos interesses específicos que se visa prosseguir, proteger ou garantir, reflectem um especial «estatuto» remuneratório. Assim sendo, o limite máximo «geral», constante do artigo 3º da Lei nº 102/88, não se aplica, na verdade, à generalidade dos funcionários públicos, mas tão-só a um número muito restrito dentre eles, que desempenham funções em corpos especiais.
A eventual desigualdade, a verificar-se, não pode ser aferida, portanto, entre os funcionários ou agentes visados pelas normas em causa e a generalidade dos funcionários públicos, mas sim, e apenas, entre aqueles e os pertencentes aos corpos especiais que podem atingir níveis remuneratórios superiores ao limite máximo fixado nas disposições em apreciação.
É, pois, em relação a estes, que não foram, e continuaram a não ser afectados ou visados pelas normas em causa, apesar de se poderem colocar em situação remuneratória semelhante, que importa apurar a justificação para essa diferença de regimes. Na verdade, basta constatar a existência de justificação ou motivo racional para os regimes especiais em causa, para a diferença assim verificada ser admissível e razoável, situando-se dentro do pleno âmbito de liberdade de conformação do legislador.
21. O artigo 16º do Decreto-Lei nº 184/89 designa como integrados em corpos especiais, nomeadamente, a carreira diplomática, os militares dos três ramos das forças armadas, as carreiras docentes, as carreiras médicas e as carreiras de enfermagem; e o artigo 41º, nº 4, exclui ainda expressamente do regime geral também o pessoal das conservatórias e cartórios notariais, que se rege pelas respectivas disposições estatutárias.
Em certas categorias de alguns corpos especiais - nomeadamente militares, médicos, pessoal diplomático no estrangeiro, conservadores e notários
- podem encontrar-se casos concretos de remunerações efectivamente superiores ao limite máximo que a norma em causa pretende instituir.
Com efeito, entre estes, detectam-se situações em que alguns funcionários, por acumulação de vencimento-base e remunerações suplementares, auferem, de facto, remunerações superiores àquele limite:
- as chefias militares (Chefe e Vice-Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, presidente do Supremo Tribunal Militar, chefes dos estados-maiores dos três ramos), em virtude dos montantes auferidos a título de despesas de representação, e suplemento de condição militar, nomeadamente, nos termos dos artigos 7º e 11º do Decreto-Lei nº 328/99, de 18 de Agosto;
- algumas categorias das carreiras médicas, por via da remuneração do trabalho extraordinário prestado em serviço de urgência, nomeadamente os médicos em regime de dedicação exclusiva, nos termos dos artigos 24º e 31º do Decreto-Lei nº 73/90, de 6 de Março;
- os diplomatas em missão no estrangeiro, por via dos abonos mensais de representação, habitação, educação e ainda de instalação a que têm direito, quando colocados nos serviços externos, nos termos do disposto nos artigos 61º e
62º do Decreto-Lei nº 40-A/98, de 27 de Fevereiro;
- os conservadores e notários, estes por via das participações emolumentares, nos termos do disposto nos artigos 52º a 54º do Decreto-Lei nº
519-F2/79, e nas Portarias nºs 669/90 e 670/90, ambas de 14 de Agosto (que vieram alterar as participações emolumentares), e no Decreto-Lei nº 131/91, de 2 de Abril (que alterou a componente relativa ao vencimento, adaptando-o às escalas indiciárias).
Encontrar-se-á alguma justificação para que os directores-gerais e equiparados que prestam serviço na AR possam estar sujeitos a um estatuto remuneratório menos favorável do que aquele de que especialmente beneficia o pessoal abrangido por estas disposições?
A resposta a esta pergunta é afirmativa.
Assim, o estatuto das chefias militares, na globalidade, e até pelas competências que lhes estão legalmente atribuídas, variou desde o 25 de Abril, tendo, durante largo tempo, sido equiparados aos ministros, e não aos funcionários, pelo que é compreensível que subsista um regime diferenciado.
No caso das carreiras médicas, o pagamento dos suplementos devidos pela prestação do trabalho extraordinário nos serviços de urgência deriva do facto de se tratar aqui de serviços de atendimento na prestação de cuidados de saúde, de relevante interesse e necessidade pública, sendo indispensável assegurar a presença destes profissionais da saúde em tais serviços por forma permanente, a fim de garantir a prestação de tais serviços à população.
Já relativamente aos diplomatas em serviço no estrangeiro, igualmente tais abonos são justificados pela necessidade de garantir aos mesmos condições dignas de instalação, habitação e exercício das suas funções, em representação do Estado português, de acordo com essa dignidade, e com as condições e padrões de vida dos países onde estejam colocados, tendo em atenção a família do funcionário afectado com tal afastamento do país.
Quanto aos conservadores e notários, o pagamento de remunerações suplementares - ou seja, o pagamento, além da remuneração base, de emolumentos que se determinam pela aplicação de taxas percentuais sobre os montantes mensalmente recebidos pela prestação de serviços ao público - é justificado pelo modo de exercício das respectivas funções, caracterizado pela autonomia e pela responsabilidade própria, e ainda pela natureza dessas mesmas funções, estritamente vinculadas ao interesse público, mas com íntima ligação à actividade económica, impondo-se desta forma um reforço das garantias de isenção destes agentes, assegurando-se-lhes assim remunerações que sejam em parte proporcionais ao valor dos actos praticados.
Nesta conformidade, todas estas situações excepcionais se encontram justificadas por específicos objectivos e circunstancialismo ou interesses a elas subjacentes, sendo certo que só nessas mesmas situações excepcionais se poderá atingir uma remuneração global superior ao limite máximo estabelecido pelas normas em causa, embora dentro do limite geral em vigor. Trata-se, portanto, de situações excepcionais que podem razoavelmente justificar um tratamento diferenciado relativamente àquele que se veio estabelecer para os funcionários parlamentares.
Verificada, como está, a existência de justificações racionais e bastantes para a existência daqueles regimes especiais, a decisão de inclusão dos mesmos num tecto salarial máximo superior ao constante das normas em causa constitui uma opção do legislador, não censurável por este Tribunal, no plano do confronto com o princípio da igualdade.
22. Assim, conclui-se que as normas constantes do artigo
11º da Lei nº 2/92, de 9 de Março, e do artigo 9º da Lei nº 30-C/92, de 28 de Dezembro, não violam o princípio da igualdade, contido no artigo 13º da Constituição.
C – Eventual violação do princípio da confiança
23. Pretende ainda o requerente que as normas sob apreciação violam o princípio da confiança, ínsito naquele outro do Estado de Direito, pois entende que se verifica uma verdadeira redução do vencimento até então auferido por aqueles funcionários (e não um mero congelamento daquele vencimento), e esta diminuição de vencimentos efectivamente auferidos por certos funcionários, viola as legítimas expectativas dos mesmos, ou seja, implica uma mudança na ordem jurídica, e consequentemente, nas situações de facto daqueles sujeitos, de forma irrazoável e inesperada, com a qual os funcionários em causa não podiam nem deviam contar. Argumenta ainda que inexistem quaisquer outros interesses ou objectivos mais ponderosos ou de superior importância ou grau constitucional que possam justificar tal sacrifício para os sujeitos afectados.
Vejamos, pois.
24. Naquele Parecer nº 16/92 da Procuradoria-Geral da República, já citado, entendeu-se, nomeadamente, o seguinte:
Pressuposta na consulta está a possibilidade de produção actual de efeitos da norma referida sobre as componentes remuneratórias, em termos de determinar, por aplicação imediata, a redução das remunerações efectivas de alguns elementos do pessoal da Assembleia da República.
A garantia da irredutibilidade dos vencimentos da função pública não tem, autonomamente, directa protecção constitucional, nem se estrutura, a se, com a dimensão de um princípio constitucional.
A função pública rege-se, contudo, segundo uma arquitectura normativa clara e segura, desde a definição das condições de ingresso, acesso, direito à carreira, responsabilidade funcional e disciplinar e escalas remuneratórias, integrando um estatuto funcional típico. A relação de emprego público, nesse complexo próprio de direitos, regalias, deveres e responsabilidades, distingue-se da relação de emprego comum típica das relações laborais privadas.
[...]
A componente remuneratória própria e caracterizadora de cada categoria integra um elemento fundamental do respectivo estatuto e, nessa medida, a confiança essencial na manutenção do estatuto típico da relação funcional compreende a integralidade e a não redutibilidade remuneratória
A garantia da integralidade remuneratória resulta, porém, não de qualquer autónomo princípio de irredutibilidade (inscrito ao nível fundamental), ou mesmo de protecção de 'direitos adquiridos' - como se referiu, um princípio vago, abstracto, sem suficiente densidade normativa -, mas da circunstância de uma modificação estatutária, com semelhante conteúdo, traduzir uma violação intolerável, inadmissível e demasiado acentuada do princípio da confiança ínsito na ideia do Estado de Direito democrático.
[...]
Como se salientou, o quadro remuneratório do pessoal da Assembleia da República comporta, como núcleo estatutório essencial, o vencimento que a cada categoria couber, segundo o regime vigente em geral para a função pública.
Este núcleo, subjectivizado em cada funcionário, assume uma dimensão estatutária fundamental inerente à respectiva categoria e à natureza da relação de emprego público; o direito que confere e a expectativa quanto à sua integralidade e intocabilidade estão claramente no âmbito do conteúdo normativo constitucional do princípio da confiança. A redução normativa deste elemento estatutário revelar-se-ia salvo circunstâncias excepcionais, intolerável, violando em medida demasiado acentuada e inadmissível aquele princípio.
Juízo tão seguro não é, porém, admissível quando estejam em causa outros elementos, cuja concretização material depende de definições de modelos organizatórios, por natureza não imutáveis.
Nesta medida, quanto a esses elementos, não se poderá já acentuar a subjectivização de direitos, (da concretização de direitos) em termos definitivamente imutáveis.
Como se salientou, as compensações previstas no regime definido no artigo 52º da LOAR, são estabelecidas em função de uma determinada concretização do regime especial de trabalho, mas apenas isso.
Dependendo do modelo organizatório definido, e sendo função desse modelo e das suas exigências específicas, não se podem considerar como subjectivizadas em termos imutáveis, de modo que alguma alteração imposta possa ser considerada imprevista, intolerável, ou violando de maneira acentuada, inadmissível e opressiva o princípio da confiança ínsita no princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2º da Constituição.
Deste modo, e enquanto apenas afectando as componentes remuneratórias suplementares fixadas na concretização do disposto no artigo 52º do LOAR, a norma do artigo 11º, nº 1, da Lei nº 2/92 não pode ser considerada como portadora de disciplina que afecte aquele princípio.
Não se pode deixar de referir o voto de vencido do Procurador-Geral Adjunto, Dr. Fernando João Ferreira Ramos, em sentido contrário quanto a esta questão, e que se transcreve pela forma seguinte:
Ora, em meu entender, não existe qualquer fundamento material razoável que permita distinguir, para estes efeitos, entre vencimento-base e remuneração suplementar.
1.2. O pessoal da Assembleia da República tem um regime especial de trabalho, a que pode corresponder uma remuneração suplementar.
Mas uma vez definido e fixado esse especial regime de trabalho, verificados em concreto os pressupostos de atribuição da remuneração suplementar em função dessa especificidade, o estatuto do respectivo pessoal passou a integrar o direito a essa componente remuneratória enquanto se mantiver o condicionalismo que determinou a sua atribuição.
A partir desse momento, aquele pessoal passou, justificadamente, a confiar na continuidade desse suplemento, que, assim, se consolidou na respectiva esfera jurídica, enquanto permanecerem as necessidades e exigências específicas do regime de trabalho estabelecido.
1.3.Assim sendo, fazendo a remuneração suplementar parte integrante do vencimento, (e contando, aliás, para todos os efeitos, designadamente os de aposentação - artigo 52º, nº 3 da LOAR) - verificando-se entre aquela e o regime especial de trabalho que determinou a sua criação uma relação incindível, penso não haver uma razão válida para extrair do princípio da confiança conclusões diferentes quando referenciado ao vencimento-base ou à remuneração suplementar.
Ou seja: não descortino um fundamento material razoável que permita a distinção acolhida no parecer, pois entendo que a remuneração suplementar é também, tal como a remuneração base, merecedora de uma especial tutela do princípio da confiança.
Mais concretamente: a redução dessa componente remuneratória revela-se igualmente intolerável e inadmissível, afectando em medida acentuada a confiança que um certo núcleo de pessoal depositou na continuidade de uma relação constituída, e seus efeitos, violando nessa medida o princípio da confiança ínsito no Estado de Direito.
25. A norma constante do artigo 11º da Lei nº 2/92 importou inquestionavelmente uma efectiva redução dos montantes auferidos pelos funcionários afectados, após a sua entrada em vigor.
Como concluímos na análise anteriormente feita ao princípio da igualdade, os principais afectados pela norma foram os funcionários da Assembleia da República, os quais auferem, a título de suplemento remuneratório, um acréscimo de aproximadamente 80% sobre o seu vencimento.
Ora, aos cargos de director-geral ou com remuneração de base equivalente, correspondia, no ano de 1992, o vencimento ilíquido de 480.000$00; a aplicação a este montante da fórmula referida para o cálculo da remuneração suplementar devida, nos termos dos artigos 52º e 53º da LOAR, levava a uma remuneração global ilíquida de 850.000$00, portanto significativamente superior ao limite imposto pelo artigo 11º da Lei nº 2/92, ou seja, ao vencimento-base do Primeiro-Ministro, que se cifrava em 738.900$00 para o mesmo ano de 1992, como já ficou exposto (supra, nº 15). E, em consequência, foram, a partir da entrada em vigor da norma impugnada, efectivamente efectuadas as deduções correspondentes àquelas remunerações por forma a contê-las no limite previsto pela norma em causa.
Conclusão inevitável é a de que estes agentes viram as suas remunerações afectadas, na forma de uma redução efectiva e significativa, face aos montantes já anteriormente percebidos, a partir da referida data.
Assim, a norma em questão, ao estabelecer aquele tecto salarial indicado, veio afectar situações constituídas em momentos anteriores ao da sua entrada em vigor. Não estando no campo de uma verdadeira retroactividade, deparamos com uma situação de produção de efeitos para o futuro que atinge situações e direitos constituídos e desenvolvidos no passado e que continuam a existir. De resto, nada encontramos nem na norma em si, muito menos em qualquer elemento externo, que nos permita concluir que a norma apenas pretenderia visar as novas situações de trabalho que se viessem a constituir após a sua entrada em vigor. Pelo contrário, a sua aplicação pretendeu ser imediata e a todas as situações existentes.
Por outro lado, a norma constante do artigo 9º da Lei nº 30-C/92, ao estabelecer igual limite para o ano de 1993, já não veio estabelecer um regime novo, ou um limite mais baixo face ao anteriormente já estabelecido, mas veio mantê-lo para o futuro. Ou seja, esta norma veio manter a redução já efectuada pela norma anterior, na medida em que o valor da soma do vencimento e da remuneração suplementar destes funcionários, mesmo com as actualizações salariais decorrentes da Portaria nº 1164-A/92, de 18 de Dezembro, continua a ser inferior ao montante que recebiam anteriormente, ou seja, antes da aplicação da norma constante da Lei nº 2/92.
Com efeito, um director-geral ou equiparado da AR, no ano de 1993, teria direito a uma remuneração base, após o aumento salarial previsto para esse ano, no montante de 504.000$00, e a uma remuneração suplementar no valor de
388.500$00; sendo o vencimento base do Primeiro-Ministro para esse mesmo ano no montante de 775.800$00, por via da norma em causa, esses funcionários viram assim descontada uma parcela da sua remuneração, à semelhança do já efectuado pela norma anterior, ou seja, a relativa a 1992, a fim de conter o seu total no limite ou «tecto» salarial fixado pela norma impugnada. E esta remuneração, efectivamente recebida pelos funcionários afectados, era, pois, inferior ao montante que tinham auferido de Janeiro de 1992 até à entrada em vigor do limite em causa, no decurso do mesmo ano.
26. Perante a constatação de uma efectiva diminuição das quantias auferidas pelos funcionários afectados pelas normas, a questão que se coloca é a de saber se tal afectação será constitucionalmente válida.
Ora, ainda que se não possa afirmar que o estabelecimento de um limite máximo como o que foi introduzido pelas normas em apreço seja uma inovação ou algo de estranho ao estatuto da função pública, todavia, ao imporem uma efectiva redução dos montantes anteriormente auferidos pelos funcionários nelas referidos, as normas em causa podem ter afectado, nessa medida, as legítimas expectativas desses mesmos funcionários.
Paradigmático da actual temática é o que se escreveu no Acórdão nº
303/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 17º vol., págs. 87 e segs.:
Ora, pergunta-se, aquela diminuição no montante do vencimento é algo de constitucionalmente válido, presente o princípio do Estado de direito democrático?
[...] Neste princípio está, entre o mais, postulada uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas.
Por isso, a normação que, por sua natureza, obvie, de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela Lei Básica [cfr. Acórdãos da Comissão Constitucional nºs 463 e 437, de 13 de Janeiro de 1983 e 26 de Janeiro de 1982 – Apêndice ao Diário da República, de 18 de Janeiro de 1983, 78, idem, de 23 de Agosto de
1983, 133 (o primeiro também no Boletim do Ministério da Justiça, nº 314, p.
141), Parecer da mesma Comissão nº 27/79 (Pareceres da Comissão Constitucional,
9º vol., p. 115) e Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 11/83, 10/84, 17/84,
86/8, 89/84 e 93/84 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1º vol., p. 11, 2º vol., p. 285, idem, p. 375, 4º vol., p. 253, idem, p. 153).
Consoante o que se referiu no dito Acórdão deste Tribunal nº 17/84,
«o cidadão deve poder prever as intervenções que o Estado poderá levar a cabo sobre ele ou perante ele e preparar-se para se adequar a elas. Ele deve poder confiar em que a sua actuação de acordo com o direito seja reconhecida pela ordem jurídica e assim permaneça em todas as suas consequências juridicamente relevantes. Esta confiança é violada sempre que o legislador ligue a situações de facto constituídas e desenvolvidas no passado consequências jurídicas mais desfavoráveis do que aquelas com que o atingido podia e devia contar. Um tal procedimento legislativo afrontará frontalmente o princípio do estado de direito democrático.»
Daí que se possa falar em que os cidadãos tenham, fundadamente, a expectativa na manutenção de situações de facto já alcançadas como consequência do direito em vigor.
Mas, se não obstante esse alcance, normação posterior vier, acentuada ou patentemente, alterar o conteúdo dessas situações, é evidente que a confiança dos cidadãos no ordenamento jurídico ficará fortemente abalada, frustrando a expectativa que detinham da anterior tutela conferida pelo «direito» (cfr. citado Acórdão nº 86/84).
No que diz respeito à possibilidade de diminuição dos vencimentos dos funcionários públicos, conquanto que sem directo enfoque constitucional, sustentam diferentes posições Marcelo Caetano e Mário Esteves de Oliveira.
Assim, o primeiro (Manual de Direito Administrativo, 1980, II vol., p. 759) doutrinou que «quando a lei altera a categoria do lugar, entende-se que não pode fazê-lo de modo que corresponda menor vencimento à nova categoria, pois isso importaria para o funcionário uma degradação ou baixa de posto que só se concebe como grave sanção penal» enquanto que o segundo (Direito Administrativo, I vol., 1980, pp. 366 e 367) refere que «a mais importante característica do regime jurídico das situações estatutárias é a de que os direitos e deveres que as integram são em cada momento, para cada um dos sujeitos, aqueles que a lei ou regulamento autorizado definem...».
E, mais adiante, exemplifica o citado autor: «...um funcionário que foi provido como terceiro-oficial no momento em que a tal categoria correspondia
à letra M e um vencimento de dez mil escudos na tabela do funcionalismo, só terá direito a reclamar da Administração o pagamento mensal de 10.000$00 enquanto, nos termos da lei, for essa a letra correspondente à categoria de terceiro-oficial e aquele o vencimento que cabe a tal letra. Se, por força da lei, os terceiros oficiais passarem para a letra N ou se à letra M passar a corresponder um vencimento de 9.000$00 os direitos dos terceiros-oficiais, como direitos integrantes de uma situação estatutária, passam a ter o conteúdo actual desta».
Colocadas estas referências jurisprudenciais e doutrinais, cabe volver a atenção para a questão que ora se analisa, ou seja, a de saber se a objectiva diminuição de vencimentos [...] é algo susceptível de violar o princípio da confiança.
[...]
A questão residirá, assim, em saber se aquela afectação se reveste de jeito inadmissível, arbitrário ou excessivamente oneroso, sendo que o primeiro daqueles modos - a inadmissibilidade -, se é implicante de uma mudança na ordem jurídica, com repercussão nas situações de facto já alcançadas, com a qual, razoável e normalmente, os cidadãos destinatários das normas preexistentes e das que operaram a modificação, não podiam e deviam contar, terá também de ser completado com a circunstância de a mutação normativa afectadora das expectativas não ter sido imposta por prossecução ou salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e que, na dicotomia com os afectados, se postem em grau tal que lhes confira prevalência, pois, se não se postarem, haverá então falta de proporcionalidade e, logo, uma forma de arbítrio
(veja-se, sobre o ponto, o Acórdão nº 287/90, ainda inédito).
27. A questão consistirá então em apurar se as normas questionadas vieram traduzir uma afectação inadmissível ou excessivamente onerosa da convicção e expectativa dos funcionários por elas afectados, quer pela não verificação – e, sublinhe-se, pela não invocação – de quaisquer alterações objectivas das respectivas condições de trabalho e pela inexistência de qualquer situação de interesse geral, público ou social que se pudesse sobrepor à protecção da confiança, quer por traduzirem uma mutação na ordem jurídica com a qual se não poderia normal e razoavelmente contar.
Mas, para tanto, necessário se torna apurar previamente se as expectativas dos funcionários afectados, criadas à sombra da ordem vigente até esta alteração, eram material e objectivamente fundadas, eram suficientemente claras e certas e dispunham de consistência bastante. Isto é, pergunta-se se aqueles funcionários eram legítimos detentores de expectativas de continuarem a auferir uma remuneração estável, efectivamente consolidada, merecedora de justificada tutela e insusceptível, pois, em princípio, de se ver reduzida no seu quantitativo.
A resposta só poderá ser positiva.
É que, tendo aqueles funcionários atingido um determinado nível remuneratório, é inquestionável que nos mesmos se criou uma convicção ou legítima expectativa quanto ao percebimento daquela remuneração suplementar. Nem
é a sua natureza de remuneração suplementar que «justifica» ou legitima um diferente tratamento da questão.
Como se fez notar no voto de vencido que o Procurador-Geral Adjunto Dr. Fernando João Ferreira Ramos juntou ao já mencionado Parecer da Procuradoria-Geral da República, o pessoal da AR tem um regime especial de trabalho, o qual, uma vez fixado e definido, «verificados em concreto os pressupostos de atribuição da remuneração suplementar em função dessa especificidade», passou a integrar o respectivo estatuto, pelo menos «enquanto se mantiver o condicionalismo que determinou a sua atribuição». E, nestes termos, «fazendo a remuneração suplementar parte integrante do vencimento» e existindo uma «relação incindível» entre aquela remuneração e o regime especial de trabalho, não se verifica a existência de «uma razão válida para extrair do princípio da confiança conclusões diferentes quando referenciado ao vencimento-base ou à remuneração suplementar». Este entendimento encontra, aliás, particular arrimo no preceituado no nº 3 do artigo 52º da LOAR, onde claramente se afirma que aquela remuneração suplementar «faz parte integrante do vencimento, contando para todos os efeitos, designadamente os de aposentação».
Nesta conformidade, tem de se concluir que, por força do estabelecido na própria disposição legal que a previa, se estava perante uma remuneração acessória com um regime especial que lhe conferia uma particular estabilidade e consistência, o que justificava a expectativa do seu integral recebimento por banda dos funcionários afectados. Ora, o que aconteceu foi que, por via da norma em causa, a remuneração global dos funcionários por ela abrangidos foi objecto de uma redução substancial e com efeitos imediatos, o que também se afigura particularmente relevante.
Aliás, se é certo que, apreciando casos de supressão de certas remunerações acessórias, este Tribunal não se pronunciou pela inconstitucionalidade dessas medidas, não é menos certo que, nesses casos, salientou que não podia ocorrer violação do princípio da confiança porque não havia daí resultado qualquer diminuição da remuneração global dos funcionários atingidos, uma vez que o quantitativo da extinta remuneração acessória havia sido integrado ou no vencimento ou noutra remuneração acessória – assim aconteceu com o suplemento de condição militar no Acórdão nº 786/96 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 34º vol., págs. 48-49) e com o abono para falhas dos tesoureiros da Fazenda Pública no Acórdão nº 37/01 (Diário da República, II Série, de 9 de Março de 2001).
Por outro lado, não se descortinam – nem sequer foram invocados – quaisquer motivos que pudessem aqui «justificar» a adopção da medida com efeitos retrospectivos, nomeadamente particulares razões de interesse público ou uma qualquer alteração objectiva e concreta das condições de trabalho do pessoal afectado.
Assim sendo, estão verificados os pressupostos para que se deva considerar atingido o princípio da confiança – pressupostos que, no que ora interessa, foram deste modo enunciados no já citado Acórdão nº 786/96:
O princípio da protecção da confiança exprime uma ideia de justiça que aprofunda o Estado de direito democrático. Segundo ela, o Estado não pode legislar alterando as expectativas legítimas dos cidadãos relativamente às respectivas posições jurídicas, a não ser que razões ponderosas o ditem (cfr. Gomes Canotilho, ob. cit., pp. 371 e segs.) Prevalecem, neste último caso, a necessidade e o valor dos fins almejados, perante a segurança e a solidez das expectativas. Mas tal sacrifício das expectativas deve ser previsível para os cidadãos atingidos e não desproporcional à lesão dos interesses subjacentes ou, dito de outro modo, exigível (cfr. Acórdão nº 287/90, Diário da República, II Série, de 20 de Fevereiro de 1991).
Mas haverá lesão de expectativas que implique a violação do princípio da confiança?
Pressuposto de tal violação é a validade das expectativas. Isso não implica, necessariamente, que estas correspondam a direitos subjectivos, mas apenas que tenham um fundamento jurídico. E, por outro lado, não bastam quaisquer expectativas tuteladas juridicamente para que se justifique a intervenção do princípio da confiança. A validade das expectativas impõe que a previsibilidade da manutenção de uma posição jurídica se fundamente em valores reconhecidos no sistema e não apenas na inércia ou na manutenção do status quo.
Deste modo, terá de ser objectivamente previsível que se mantenha uma certa regulamentação jurídica no plano dos factos, por não haver indícios de futura alteração legislativa, e também no plano dos valores jurídicos, por não se vislumbrar a sua precariedade no momento em que se constitui a situação jurídica. Assim, deve reunir-se uma perspectiva privatística do investimento na confiança com uma perspectiva publicista da validade das expectativas por serem legitimamente fundadas (cfr. Acórdão da Comissão Constitucional nº 437, de 26 de Janeiro de 1982, Boletim do Ministério da Justiça, nº 314, pp. 141 e segs.).
Posto isto, necessariamente se conclui que a redução da remuneração global operada pela norma constante do artigo 11º da Lei nº 2/92 constituiu uma inadmissível, porque excessiva e onerosa, afectação das legítimas expectativas e direitos dos destinatários da norma, ou seja, dos agentes ou funcionários em exercício de funções aquando da sua entrada em vigor, na medida em que sofreram uma tal redução da sua remuneração global.
Quer isto dizer que se não contesta o facto de o legislador ter fixado um novo limite máximo da remuneração global, com eficácia para o futuro, mas tão-só a circunstância de o ter feito por forma a que os funcionários que auferiam uma remuneração global superior a esse limite terem visto essa remuneração ser abruptamente reduzida. Daí que a inconstitucionalidade da norma não se possa estender ao segmento que a torna aplicável ao pessoal que tenha entrado em funções após a sua entrada em vigor, já que este pessoal – caso eventualmente exista – não possuía qualquer expectativa digna de tutela, nos termos apontados, por aplicação do princípio da confiança, dado não ter obviamente sofrido qualquer redução nas suas remunerações globais.
Em suma: deve concluir-se pela inconstitucionalidade da norma em causa, apenas na medida em que operou uma redução da remuneração global auferida por pessoal por ela abrangido e que se encontrava já em exercício de funções à data da sua entrada em vigor.
28. Em relação à norma constante do artigo 9º da Lei nº 30-C/92, é evidente que a situação apresenta diferentes contornos. Desde logo, porque esta norma é posterior à norma do artigo 11º da Lei nº 2/92, definindo um regime idêntico ao dessa norma anterior; ou seja, ao regulamentar a matéria, estabeleceu uma situação com a qual os funcionários afectados já contavam, ou já deviam contar, não introduzindo qualquer inovação face à situação anterior, ou seja, a instituída pela mencionada norma do artigo 11º da Lei nº 2/92.
Mas, como já verificámos, esta norma veio manter a redução já operada pela norma anterior, ou seja, pela norma constante do artigo 11º da Lei nº 2/92. Isto é, veio mantê-la em termos de, na prática, os funcionários afectados, mesmo após a aplicação das actualizações salariais para esse ano – e para os anos seguintes – continuarem a auferir remuneração global inferior à que já auferiam no momento da entrada em vigor da Lei nº 2/92.
Consequentemente, a inconstitucionalidade verificada relativamente à norma do artigo 11º da Lei nº 2/92 implica logicamente a inconstitucionalidade parcial da norma constante do artigo 9º da Lei nº 30-C/92, na medida em que esta manteve a redução por aquela operada, redução que se continuou a verificar no futuro.
A declaração da referida inconstitucionalidade implica, para os funcionários abrangidos, no anos de 1993 e seguintes, um «congelamento» da respectiva remuneração global naquele montante que já auferiam anteriormente à entrada em vigor do artigo 11º da Lei nº 2/92, até que, por via de reajustamentos extraordinários ou de actualizações anuais, o vencimento do Primeiro-Ministro tenha atingido aquele mesmo montante. A partir desse momento, o disposto no artigo 9º da Lei nº 30-C/92 deve ser tido como plenamente aplicável aos funcionários afectados.
Em conclusão: a norma constante do artigo 9º da Lei nº 30-C/92 encontra-se ferida de inconstitucionalidade, mas apenas na medida em que manteve a diminuição efectiva da remuneração global de certos funcionários, operada pelo artigo 11º da Lei nº 2/92 a partir da sua entrada em vigor.
29. Sendo assim, e uma vez que pelo menos em relação às normas em causa não se verifica a sua inconstitucionalidade total, haverá que prosseguir na análise das restantes questões enunciadas, ainda que não suscitadas pelo requerente, a saber, a da eventual natureza laboral das normas impugnadas, e a da sua natureza de cavaliers budgétaires.
D - Da eventual natureza laboral das normas impugnadas
30. As normas em causa neste processo, ao determinarem o limite máximo (ou tecto salarial) da remuneração de certos funcionários, parecem reportar-se a matéria do âmbito laboral.
E, se tiverem tal natureza, e face ao artigo 56º, nº 2, al. a), da Constituição, que confere às associações sindicais o direito de «participar na legislação de trabalho», não constando tal audição da elaboração da Lei do Orçamento, estariam aquelas normas feridas de inconstitucionalidade formal.
31. Mas, na verdade, aquelas normas, como resulta do seu âmbito de aplicação, atrás delimitado, têm por destinatário um certo núcleo de pessoal da Administração Pública, e mais concretamente, apenas certo pessoal dirigente: alguns directores-gerais ou equiparados, ao nível das chefias externas, o pessoal dos gabinetes e os chefes de gabinete dos grupos parlamentares, ou seja,
«funcionários» cujo estatuto «assenta numa especial relação de confiança» e aos quais compete «cumprir o indirizzo politico» dos órgãos de soberania e que, por isso, se encontram numa situação muito semelhante «ao que sucede com os chamados funcionários políticos», pelo que não parece que a eles se devam aplicar as normas atinentes às relações de trabalho subordinado, concretamente as normas atinentes à audição das organizações representativas dos trabalhadores relativamente à elaboração da legislação de trabalho, porquanto não se trata de uma pura relação laboral (cfr. Acórdão nº 86/84, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4º vol., págs. 81 e segs.).
Tendo em vista o escopo da protecção constitucional conferida pelo artigo 56º, nº 2, al. a), da Constituição, conclui-se que não se estende a mesma quer ao pessoal dirigente ou equiparado, quer àqueles funcionários políticos, não se colocando, pois, em relação a eles o problema da participação das organizações representativas dos trabalhadores. Assim o entendeu, aliás, este Tribunal, no seu Acórdão nº 146/92, de 8 de Abril (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º volume, págs. 613).
Com efeito, o estatuto deste tipo de pessoal ou agentes assume características específicas, determinadas pelas funções respectivas, pela estrutura orgânico-funcional em que se integram, pelo conteúdo de direitos que o exercício de tais funções lhes comete, pela forma e prazo das nomeações e provimentos, por exemplo. Inerente ao recrutamento ou nomeação de pessoal para estes cargos está a especial confiança (inclusive, política) da entidade nomeante, sendo a existência desta o factor determinante para o provimento e manutenção de tais cargos.
Não se pode, pois, remeter ou assemelhar o estatuto destes funcionários ao estatuto dos trabalhadores subordinados em geral, perante as especificidades referidas. Assim, não gozam as chefias externas dos direitos de estabilidade no emprego e de manutenção do lugar tradicionalmente referidos ao trabalho subordinado, por exemplo.
32. Não revestindo estas normas, portanto, uma específica natureza laboral, não se verifica por essa banda qualquer inconstitucionalidade.
E - Dos «cavaliers budgétaires»
33. As normas em causa colocam outra questão que não pode ser ignorada, e que é a da sua específica natureza enquanto cavaliers budgétaires, nome sob o qual a doutrina e a jurisprudência referem as normas incluídas na lei do orçamento do Estado, mas que não possuem directa relação com matéria financeira ou orçamental.
Tanto aquele artigo 11º da Lei nº 2/92, como o artigo 9º da Lei nº
30-C/92, vêm inseridos no Capítulo III do respectivo Orçamento do Estado (para
1992 e para 1993, respectivamente) capítulos esses sob a epígrafe geral
«Recursos Humanos», os quais incluem diversas disposições relativas à função pública.
Estas normas não apresentam um carácter puramente orçamental, antes visam a regulamentação jurídica do estatuto remuneratório de certos funcionários e agentes. Ou seja, nada dispõem relativamente a matéria de receitas e despesas, não se descortinando nas mesmas directa projecção financeira.
Não dizendo directamente respeito a receitas ou a despesas, tais normas não participam claramente da natureza específica da lei do orçamento, pelo que se pode questionar a justeza da sua inserção na mesma.
34. Um aspecto que desde logo se coloca é a questão do princípio da anualidade orçamental, decorrente do artigo 108º da Lei Fundamental; é que, obedecendo o orçamento a este princípio, e sendo as normas dele constantes de carácter financeiro, relativas a um período anual específico e determinado, enquadrado nas opções e objectivos económico-financeiros acolhidos para tal período, estes cavaliers budgetaires têm, se não sempre, quase sempre, um carácter plurianual ou mesmo de duração indeterminada, reportando-se pois, a períodos distintos do abrangido pelo orçamento em causa, para além da sua falta de incidência financeira.
Deste aspecto não decorre por si a inconstitucionalidade da inclusão destas normas na Lei do Orçamento, já que o que assim se refere é uma das características destes cavaliers que os diferencia das normas estritamente orçamentais; como também se pode ler no Acórdão nº 461/87 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 10º vol., págs 181 e segs.):
É que, em rigor, este [o princípio da anualidade do Orçamento] só será violado quando a uma certa previsão de receita ou de despesa do Orçamento -
à previsão de uma receita do respectivo mapa; ou à dotação de certas verbas de um mapa de despesa - se atribuir uma duração plurianual.
O verdadeiro problema estará, sim, em saber se, atenta a natureza deste tipo de normas e a matéria a que se reportam serão passíveis de serem legitimamente incluídas na lei orçamental, perante a natureza específica desta
última.
35. Com efeito, constituem as normas em apreço verdadeiros cavaliers budgétaires ou riders.
Sendo certo que não existe no nosso ordenamento jurídico-constitucional qualquer proibição expressa de inclusão destas normas, por alguns denominadas de extravagantes, na lei do orçamento, tem sido discutida, doutrinal e jurisprudencialmente, a constitucionalidade ou inconstitucionalidade dessa inclusão.
Na doutrina, temos, por um lado, as posições defendidas por A. Lobo Xavier («'Enquadramento Orçamental' em Portugal: Alguns problemas», na Revista de Direito e Economia, ano IX, 1983, pp. 24 e segs.) e Teixeira Ribeiro (Os Poderes Orçamentais da Assembleia da República, Coimbra, 1987, separata do Boletim de Ciências Económicas, vol. XXX), admitindo a inserção de tais normas no orçamento; e, por outro, as de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª ed., vol. 1º, p. 472), pugnando pela inconstitucionalidade destas normas, em qualquer situação, e ainda a de Carlos Blanco de Morais (Algumas reflexões sobre o valor jurídico de normas parasitárias presentes em leis reforçadas pelo procedimento, em Nos 25 Anos da Constituição da República Portuguesa. Evolução constitucional e perspectivas futuras, AAFDL, 2001), que se pronuncia no sentido da inconstitucionalidade formal dessas normas.
36. Antes de analisarmos a jurisprudência constitucional nacional, importa a este respeito fazer uma, ainda que breve, resenha de alguma jurisprudência constitucional estrangeira sobre esta matéria dos cavaliers budgétaires, que melhor ajudará a compreender e delimitar a mesma.
A jurisprudência constitucional espanhola apenas admite a inclusão deste tipo de normas nas leis orçamentais dentro de estritos limites; esta posição encontra-se delineada na STC nº 76/1992, de 14 de Maio de 1992, publicado em «Boletín Oficial del Estado» nº 144, de 16 de Junho de 1992, regularmente citado pela jurisprudência constitucional posterior, e no qual se pode ler:
Segundo este artigo [134º, nº 2, da Constituição Espanhola], trata-se da lei que em cada ano aprova o Orçamento Geral do Estado incluindo a totalidade das despesa e das receitas do sector público estatal e a consignação do custo dos benefícios fiscais que afectem os impostos do Estado. E uma vez que o Orçamento é um instrumento da política económica do Governo, a Lei do Orçamento foi qualificada por este Tribunal, além do mais, como «veículo de direcção e orientação da política económica» (STC 27/1981, fundamento jurídico 2º, e
65/1987, fundamento jurídico 4º).
Tratando-se de uma lei que não é só um conjunto de previsões contabilísticas (STC 65/1987, fundamento jurídico 4º), mas também um veículo de direcção e orientação da política económica que corresponde ao Governo, não só pode - e deve - conter a previsão de receitas e as autorizações de despesas, como também pode estabelecer «disposições de carácter geral em matérias próprias da lei ordinária estatal (com excepção do disposto no número 7º do artigo 134º da C.E.) que tenham directa relação com as previsões de receitas e as autorizações de despesas do Orçamento ou com os critérios de política económica geral em que se sustentam» (STC 63/1986, fundamento jurídico 12). Assim pois, as leis anuais de Orçamento têm um conteúdo mínimo, necessário e indisponível (STC
65/1987, fundamento jurídico 4º), constituído pela expressão contabilizada de receitas e a autorização de despesas, e um conteúdo possível, não necessário e eventual que pode afectar matérias diversas desse núcleo essencial constituído pela previsão de receitas e autorização de despesas.
[...]
Em suma e com base na doutrina exposta devemos concluir que para que a regulamentação, por uma Lei do Orçamento, de uma matéria diferente do seu núcleo mínimo, necessário e indisponível (previsão das receitas e autorização de despesas) seja constitucionalmente legítima é necessário que essa matéria tenha relação directa com as despesas e receitas que integram o Orçamento ou com os critérios de política económica de que esse Orçamento é instrumento e que, para além disso, a sua inclusão na dita lei esteja justificada, no sentido de que seja um complemento necessário para a melhor compreensão e para a melhor e mais eficaz execução do Orçamento e, em geral, da política económica do Governo.
O cumprimento destas duas condições resulta, pois, necessário para justificar a restrição das competências do poder legislativo, própria das Leis de Orçamento, e para salvaguardar a segurança jurídica que é garantida pelo artigo 9º, nº 3 da C. E., isto é, a certeza do Direito que exige que uma lei de conteúdo constitucionalmente definido, como é a Lei do Orçamento Geral, não contenha mais disposições do que as que correspondem à sua função constitucional
(artigos 66, nº 2, e 134º, nº 2, da C. E.).
37. Também a jurisprudência constitucional francesa tem, de forma constante, adoptado uma posição restritiva quanto a estas matérias estranhas ao conteúdo essencial da Lei do Orçamento, só as admitindo quando se verifique uma conexão, no seu alcance e conteúdo, com as matérias financeiras e fiscais próprias daquela lei; e, em consequência, tem declarado inconstitucionais todas as normas constantes de Leis do Orçamento que não possuam por si próprias, pelo seu objecto e conteúdo, conexão directa com o conteúdo das Leis do Orçamento, constitucionalmente definido.
Assim, de forma reiterada, o Conselho Constitucional tem afirmado que esse tipo de disposição não possui qualquer relação com as despesas ou as receitas do Estado, ou não possui as características de uma disposição de natureza fiscal; e que assim ela é estranha ao objecto das leis de finanças
(Decisão nº 94-315 DC, cit. em L’Actualité Juridique-Droit Administratif (AJDA), nº 4-20 de Abril de 1995, pág. 337; Decisão nº 97-395 DC, cit. em L’Actualité Juridique-Droit Administratif (AJDA), nº 2-20 de Fevereiro de 1998, pág. 126). Como se pode ler, nomeadamente, na Decisão nº 91-302 DC, de 30 de Dezembro de
1991 (Recueil de jurisprudence constitutionnelle 1959-1993, décisions réunies par L. Favoreu, Paris, 1994, págs. 476 e segs.):
Considerando que o artigo 106 não se reporta directamente à determinação das receitas e despesas do Estado; que não tem por finalidade organizar a informação e o controle do Parlamento sobre a gestão das finanças públicas ou de impor aos agentes dos serviços públicos responsabilidades pecuniárias; que também não se inclui no âmbito das previsões da terceira alínea do artigo 1º da Lei nº 599-2 nos termos das quais «as leis de finanças podem igualmente conter todas as disposições relativas à repartição, à taxa e às modalidades de cobrança dos impostos de qualquer natureza»;
[...]
Considerando que resulta do exposto que o artigo 106º é estranho ao objecto da lei das finanças; que, em consequência, este artigo foi adoptado de forma irregular; que, desde logo, sem necessidade de examinar os meios invocados em contrário, o artigo 106º deve ser declarado não conforme à Constituição;
[...]
38. O ordenamento constitucional alemão, por seu turno, proíbe expressamente a inclusão de normas estranhas ao objecto da Lei do Orçamento, no artigo 110º, nº 4, da Constituição (Bepackungsverbot):
(4) Na Lei do Orçamento apenas podem ser incluídas disposições relativas às receitas e às despesas do Estado e ao período para o qual o Orçamento é elaborado. O Orçamento pode prever que as disposições apenas tenham eficácia aquando da entrada em vigor da Lei do orçamento seguinte ou em momento posterior mediante a autorização prevista no artigo 115º.
Presidiu ao estabelecimento desta disposição a intenção expressa de não permitir a utilização do Orçamento para introdução de outras matérias estranhas ao mesmo, nomeadamente como forma de expressão ou de cedência a exigências ou pressões exercidas sobre o Parlamento.
39. No tocante à jurisprudência constitucional nacional, o citado Acórdão nº 461/87 concluiu pela não inconstitucionalidade das normas cujo objecto é alheio à matéria orçamental (cf. ainda, no mesmo sentido, o Acórdão nº
358/92, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 23º vol., págs. 109 e segs.).
Como se pode ler nesse Acórdão nº 461/87:
Trata-se de um problema bem conhecido da prática constitucional e da doutrina, quer no nosso, quer noutros ordenamentos. E um problema que nalguns destes encontra resposta constitucional expressa, que se traduz na delimitação precisa das normas susceptíveis de serem inseridas na lei orçamental (assim, o artigo 110º, nº 4, da Grundgesetz da República Federal da Alemanha) ou na proibição de nesta se inscreverem disposições de certo tipo com certo alcance
(assim, o artigo 81º, nº 3, da Constituição italiana).
Entre nós, porém, não se depara com qualquer preceito expresso da Constituição similar aos referidos. E daí que a doutrina viesse entendendo não ser constitucionalmente questionável a inserção na lei do orçamento de normas sem imediata incidência financeira ou normas «não orçamentais», um procedimento que se compreenderia tanto melhor quanto deve considerar-se superada uma concepção puramente «formal» daquela lei (assim, J.M. Cardoso da Costa,est. cit.[Sobre as Autorizações Legislativas da Lei do Orçamento, separata dos Estudos em Homenagem ao Prof. Teixeira Ribeiro, Coimbra, 1982], p. 19 e segs., e A. Lobo Xavier, «'Enquadramento Orçamental' em Portugal: Alguns problemas», na Revista de Direito e Economia, ano IX, 1983, pp. 24 e segs.). Isto, fosse qual fosse o juízo que a correspondente prática devesse merecer sob o ponto de vista doutrinal ou da clareza do exercício das competências constitucionais e até da clareza do ordenamento jurídico (um juízo, aliás, não negativo, para ambos os autores citados, no tocante a normas que tenham ainda a ver com o delineamento do programa financeiro da lei orçamental, como serão, v. g., as que exprimam a sua vertente fiscal).
Contra este entendimento - mas sem o pôr definitivamente em causa -, ponderou-se, todavia, que ele poderia conduzir, afinal, a uma limitação da competência legislativa da AR. É que, como a iniciativa da lei do orçamento pertence ao Governo, e só a este poderá pertencer, consequentemente, a iniciativa da alteração dessa lei, o alargamento dela para além das matérias que preencham a função orçamental virá a traduzir-se numa restrição da liberdade de iniciativa parlamentar (assim, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª ed., vol. 1º, p. 472). Só não seria assim - ressalvam os autores citados - se «pudesse entender-se, o que não é fácil, que nessas matérias a lei poderia ser alterada nos termos gerais».
O argumento, porém, não é probante, como, por último, demonstrou o Prof. Teixeira Ribeiro (Os Poderes Orçamentais, cit., p. 6) É que a dificuldade em consentir que se mantenha a iniciativa parlamentar para a alteração da lei do orçamento em matérias «não orçamentais» é só «a de destrinçar tais matérias das restantes», e, portanto, «simples dificuldade de ordem prática».
Daí que - concluindo como o mesmo autor - não deva considerar-se atentatório da Constituição, com base na razão assinalada, «o inserimento no articulado do Orçamento de disposições estranhas à administração orçamental».
Ora, não sendo por essa razão, por outra realmente não se vê que a Constituição obste ao procedimento referido. E tanto menos quando se trata de um procedimento com uma longa tradição entre nós (vindo já do período do constitucionalismo monárquico e passando por todos os que se lhe seguiram), que só justificaria ver precludido pela Constituição em vigor se nesta existisse disposição clara nesse sentido. Ora, como começou por salientar-se, tal não sucede.
Poderá a prática em questão ser discutível, e até censurável, seja do ponto de vista doutrinário, seja do da técnica da legislação. De todo o modo, não o é de um ponto de vista jurídico-constitucional.
40. Adoptando posição completamente contrária, refira-se o voto de vencido do então Conselheiro Vital Moreira, neste Acórdão, o qual escreveu o seguinte:
A lei do orçamento é, pois, uma lei específica. O seu regime constitucional não se compadece com a inserção de matérias alheias ao objecto constitucional da lei do orçamento, ou seja, de matérias que devam ser objecto de lei comum. Pois de duas, uma: ou valeria para esses enxertos estranhos também o regime específico da lei do orçamento (inalterabilidade, salvo por proposta do Governo, anualidade, etc.), e então a AR ficaria ilegitimamente limitada na sua liberdade de alteração legislativa em matérias constitucionalmente «livres»; ou se admitiria - como se admite no acórdão - que nessas áreas a lei do orçamento fica sujeita ao regime comum, e então cai-se, necessariamente, na descaracterização da lei do orçamento, que passaria a ser lei do orçamento e lei de tudo o mais que, por motivos de conveniência e oportunidade política, a maioria de cada momento resolvesse introduzir na lei do orçamento.
[...]
Não é difícil antecipar que, com a generalização deste expediente, a lei do orçamento passaria a ser um veículo de promoção de «golpismo legislativo», de aprovação de soluções que, em iniciativa legislativa autónoma, não seriam aprovadas ou não o seriam nos mesmos termos, ou não o seriam sem publicidade crítica. Com o aproveitamento dessa faculdade, a lei do orçamento passaria a ser não apenas a lei do orçamento, mas também a lei de revisão geral anual da ordem jurídica, com possibilidades de intromissões em todas as áreas desta.
[...]
Nem se diga que a Constituição é omissa a este respeito, pois considero que não é preciso grande esforço de interpretação do artigo 108º da CRP para concluir que a lei do orçamento é a que aprova o Orçamento do Estado e que o Orçamento está constitucionalmente definido no mesmo preceito constitucional.
41. Finalmente, uma outra posição, dita intermédia, e subscrita pelo então Conselheiro deste Tribunal, José Martins da Fonseca, entende que se deverá averiguar da existência daquela conexão mínima entre essas normas e os preceitos financeiros característicos da lei orçamental, ou seja, apurar se as disposições em causa (cavaliers) se relacionam com a repartição de receitas e com a efectivação de despesas num determinado ano económico.
Como se pode ler na declaração de voto por este então Conselheiro junta ao citado Acórdão nº 461/87:
À licitude constitucional de inclusão na lei do orçamento de disposições não orçamentais não pode deixar, porém, de estabelecer-se um limite. E esse é o de que tais disposições hão-de ter algum relacionamento com a matéria orçamental, com a função do Orçamento, com a finalidade da respectiva lei. É de exigir, pois, que as questões versadas nessas normas - para ser legítima a sua inserção nesta lei - tenham a ver directa ou, pelo menos, indirectamente (e isto já é conceder) com a sua matéria e finalidade; quanto àquelas que não tenham qualquer ligação com esta matéria, não poderão constar do Orçamento. E isto porque, sendo o Orçamento uma lei especial que só pode ser alterada por proposta do Governo, o alargamento do seu âmbito para além das matérias que preenchem a sua função vem a traduzir-se, em relação às matéria excedentes, numa limitação da competência da AR e da liberdade da iniciativa parlamentar. (cf. A. Lobo Xavier, no local citado, a fl. 232).
A abertura consentida pela orientação vencedora retira ao Orçamento a sua própria natureza. O Orçamento é, por definição, um mapa de previsão de receitas e despesas. Se nele se pudessem incluir normas de toda a natureza, sem a mínima conexão com a matérias que preencham a sua função, seria o caos.
42. As normas em questão surgem, material e funcionalmente, como independentes da elaboração e aprovação do Orçamento do Estado, não possuindo a tal directa natureza ou incidência financeira stricto sensu, não se lhes descortinando, pois, directa conexão com as previsões orçamentais.
No entanto, quando se entenda dever continuar a seguir-se a jurisprudência firmada por este Tribunal no citado Acórdão nº 461/87, tal circunstância não é determinante, não devendo concluir-se pela inconstitucionalidade das normas em questão, com fundamento na sua natureza de cavaliers budgétaires.
De todo o modo, ainda que se entenda que tem que haver uma conexão mínima entre o cavalier e a lei do orçamento (por se considerar inadmissível que se aproveite a lei do orçamento para regular matérias em tudo a ele absolutamente estranhas, como o seriam, por exemplo, a regulamentação dos regimes de bens no casamento, ou do sistema de recursos em processo civil), atentar-se-á que, no presente caso, estamos perante hipótese diversa, na medida em que se não pode considerar como absolutamente estranha à lei do orçamento a matéria atinente ao regime salarial da função pública, até pela dependência destes funcionários ao Estado, pelo que, pelo menos indirectamente, se conexiona com a matéria orçamental, já que o montante relativo aos salários da função pública se enquadra numa das rubricas de despesas do orçamento.
Assim, sempre se poderá detectar essa conexão entre o estabelecimento de limites máximos às remunerações da função pública com a previsão de despesas do orçamento.
Acresce, por fim, o facto de a inclusão deste tipo de normas nos diversos orçamentos do Estado ser uma prática habitual ou reiterada, como aliás disso dão conta os vários acórdãos deste Tribunal que sobre tais matérias têm sido proferidos, com uma ampla tradição remontando ao constitucionalismo monárquico e que se não encontra excluída pelo actual texto constitucional, pelo que deve ser aceite tal inclusão orçamental, nos termos supra expostos.
Assim, e independentemente de outras considerações, não se tem por ilegítima a inclusão das normas em causa na lei do orçamento.
III – DECISÃO
43. Nestes termos, decide-se: a. declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 11º da Lei nº 2/92, de 9 de Março (Lei do Orçamento do Estado para 1992), na medida em que operou uma redução da remuneração global auferida por pessoal por ela abrangido e que se encontrava já em exercício de funções à data da sua entrada em vigor, por violação do princípio da confiança,
ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição; b. declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 9º da Lei nº 30-C/92, de 28 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 1993), na medida em que manteve a referida redução da remuneração global auferida pelo mesmo pessoal antes da entrada em vigor da Lei nº 2/92.
Lisboa, 9 de Abril de 2002 Luís Nunes de Almeida Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Bravo Serra Artur Maurício (com a declaração de que votei igualmente a violação do princípio da igualdade na linha do que se defendeu no citado Parecer PGR nº 16/92, com as inerentes comparências a nível dos termos decisórios). Guilherme da Fonseca (com a mesma declaração de voto do Exmº Consº. Artur Maurício) José Manuel Cardoso da Costa