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Processo nº 417/98
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - C..., identificado nos autos, arguido no processo nº 1744/1997 do 3º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, detido em 12 de Dezembro de 1997, submetido a interrogatório judicial no dia imediato e indiciado pelo prática de um crime de burla agravado, previsto e punido nos artigos 217º e 218º, nºs. 1 e
2, alínea a), com referência ao artigo 202º, alínea b), todos do Código Penal, veio arguir a nulidade desse primeiro interrogatório, convocando o disposto nos artigos 119º, alínea c), e 123º do Código de Processo Penal (CPP), por lhe ter sido nomeado defensor oficioso sem antes o magistrado judicial lhe ter perguntado ?formal e solenemente? se tinha advogado, só na hipótese negativa havendo lugar àquela nomeação, de outro modo se desrespeitando o disposto no nº
3 do artigo 32º da Constituição da República (CR). A arguida nulidade foi julgada improcedente por despacho de 19 do mesmo mês, tendo o arguido interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, recebido a subir imediatamente, em separado (na sequência de reclamação apresentada). A Relação, por acórdão de 24 de Março último, negou provimento ao recurso. Do assim decidido, interpôs o arguido recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo a apreciação da ?constitucionalidade ou ilegalidade? das normas dos artigos 61º, nº 1, alínea d), e 62º, nº 2, do CPP, na interpretação acolhida pelas decisões proferidas nos autos, que tem por violadora do disposto no nº 3 do artigo 32º da CR. Com efeito, observa, ?a interpretação adoptada pelo Tribunal 'a quo' e pelo Tribunal 'ad quem' do artigo 62º-2 e do artigo 61º-1-d), ambos do CPP, pressupõe que o Juiz tem o poder (direito de escolha de defensor ao arguido) de colocar um qualquer defensor, de sua escolha, ao arguido, suscitando a sua colocação na bancada da sala de audição em 1º interrogatório, sem sequer ao menos informar o arguido do nome do defensor e de lhe perguntar: aceita este Sr. Dr. ... como defensor? e de conferir oficiosamente tempo prévio, antes de qualquer tipo de perguntas, para conferenciar com tal defensor. Trata-se, pois, de interpretação que é chocante e nega na prática, qualquer efeito útil e prático à defesa e ao estatuto do defensor, transformando-o numa mera e triste figura de simbólica presença formal, o que atenta frontalmente com o sagrado 'direito à defesa'
(artigo 32º-1 da CRP) de qualquer cidadão num Estado de Direito democrático.'
2. - Recebido o recurso neste Tribunal Constitucional, alegaram oportunamente o recorrente e o Ministério Público, como recorrido. O primeiro formulou as seguintes conclusões:
?1.- Conforme consta, nomeadamente de forma expressa, da douta decisão de fls.
64 a 66 dos autos de inquérito, o MMo. Juiz que presidiu ao 1ºinterrogatório do arguido, não lhe perguntou previamente se aceitava o advogado que resolveu escolher-lhe, nem tão pouco lhe indicou, previamente o seu nome. E nem lhe conferiu tempo, oficiosamente, para, previamente, conferenciar com o defensor nomeado. Pelo que, foi olvidado que é ao arguido que está atribuído o direito de escolha do seu defensor, uma vez que no acto, se limitou a impor-se-lhe um defensor escolhido pelo Juiz que se encontrava no local.
2.- Ainda que, como se afirma a folhas 65 dos autos de inquérito: de que o arguido teria sido informado, antes do dia 13.12.1997, de que podia escolher defensor, isso não pode implicar que o MMo. Juiz no dia 13 de Dezembro de 1997, não tivesse que lhe perguntar, se nesse dia, tinha ou não advogado de sua confiança. Caso o arguido dissesse que não tinha, o MMo. Juiz poderia e deveria indigitar-lhe mandatário (mesmo contra a sua vontade na única hipótese dele recusar qualquer nomeação de defensor), mas antes teria, sempre, que lhe perguntar se aceitava - tinha algo a opôr -determinado mandatário por ele escolhido e nomeado, dizendo-lhe o nome e conferindo prazo oficioso para conferenciarem em privado, antes do início da diligência.
3.- Os factos narrados nas conclusões 1ª e 2ª constituem verdade material uma vez que não se expressa na acta da diligência de audição do arguido em 1º interrogatório terem sido realizados pelo Juiz de Instrução.
4.- A douta decisão de 1ª Instância e o acórdão do TRL, em face da interpretação que fizeram dos artigos 61º-1-d), 62º-2 e 64º-1-a) todos do CPP, violaram os direitos do arguido - quando ao direito de escolha de defensor - que lhe advém do artigo 32º nº 3 da Constituição da República Portuguesa. Ou seja, adoptaram uma interpretação violadora da norma vertida no artigo 32º-3 da CRP.
5.- Pelo que devem julgar-se inconstitucionais os artigos 61º-1-d), 62º nº 2 e artigo 64º-1-a) todos do Código de Processo Penal na interpretação implícita feita ao MMo. Juiz do TIC de Lisboa e pelo acórdão do TRL, no sentido de que entenderam ter o Juiz poderes para nomear um qualquer defensor ao arguido, de escolha do Juiz, sem antes ser confirmado que o arguido não tinha advogado de sua confiança e na hipótese negativa lhe expressar, v.g.: ?está aqui o Sr. Dr. Fulano tal (indicando o nome) que lhe vou nomear defensor para este acto, aceita ou tem algo a opôr a que este Sr. Dr. seja seu defensor??
Só com o assentimento do arguido ou na hipótese de ele recusar a nomeação fosse de que defensor fosse (e não tendo advogado de sua confiança) poderia o Juiz nomear defensor ao arguido de sua escolha. O que não ocorreu nestes autos.
6.- O Mmo. Juiz do TIC de Lisboa e o acórdão do TRL, entenderam que devia apenas ser colocado ali na bancada um defensor (nomear formalmente um), escolhido pelo Juiz, e o arguido se não concordasse que o dissesse. Entendeu ainda o MMo. Juiz e o TRL que não tinham, oficiosamente, que lhe conferir espaço de tempo, para, antes de começar o interrogatório do arguido, poderem - o defensor e o arguido, que se viram pela primeira vez na vida naquele acto - conferenciar em privado. Pelo menos, para saberem os respectivos nomes e contactos. É que ?O direito à assistência (de defensor) consiste no direito ao apoio e à consulta do defensor em todos os actos processuais, o que implica o direito de comunicação com ele
(defensor) (cfr. Acórdão do TC nº 7/87, ponto 2.6.)? - anotação à CRP anotada, artigo 32º, de Vital Moreira e Gomes Canotilho. O que no caso não foi respeitado.
7.- Foram violadas com o douto despacho do TIC de Lisboa e como o acórdão do TRL, através de errada aplicação/interpretação, as seguintes disposições legais: artigo 61º-1-alínea d); artigo 62º nº 2 e 64-1 a) todos do CPP.
8.- Devendo tais disposições legais serem julgadas inconstitucionais, na interpretação/aplicação adoptada, por violação da norma e princípio constitucional contidos no artigo 32º-3 da CRP. Termos em que, com os melhores de direito e o douto suprimento de patrocínio, devem julgar-se inconstitucionais as normas acima indicadas, na interpretação adoptada, ordenando-se às instâncias a reformulação das decisões em face do juízo de inconstitucionalidade que se requer, assim se fazendo, como se espera a costumeira.?
O Senhor Procurador-Geral Adjunto, por sua vez, remata assim, ao concluir as respectivas alegações:
?1º- O arguido tem o direito à escolha de defensor, a ser por ele assistido em todos os actos do processo e a comunicar, mesmo em privado, com ele.
2º- Nos casos em que a lei determina a obrigatoriedade de assistência de defensor, este só será designado pelo Juiz se o arguido não exercer o seu direito de escolha.
3º- A lei ordinária não prevê, nem a Constituição impõe, que o juiz pergunte ao arguido se aceita o defensor que nomeou, nem que lhe confira, oficiosamente, tempo para com ele conferenciar.
4º- Termos em que deverá negar-se provimento ao recurso.? Foram os vistos substituídos nos termos da parte final do nº 2 do artigo 707º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69º da Lei nº 28/82. Cumpre apreciar e decidir.
II
1. - Constitui objecto do presente recurso de constitucionalidade a interpretação que o acórdão recorrido deu às normas da alínea d) do nº 1 do artigo 61º e do nº 2 do artigo 62º, ambos do CPP, que assim prescrevem:
?Artigo 61º
(Direitos e deveres processuais)
1.- O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e, salvas as excepções da lei, dos direitos de:
(...) d) Escolher defensor ou solicitar ao tribunal que lhe nomeie um;
(...).?
?Artigo 62º
(Defensor)
(...)
2.- Nos casos em que a lei determinar que o arguido seja assistido por defensor e aquele o não tiver constituído ou o não constituir, o juiz nomeia-lhe defensor, de preferência advogado ou advogado estagiário; mas o defensor nomeado cessa as suas funções logo que o arguido constituir advogado.
(...).? No caso sub judicio - primeiro interrogatório judicial de arguido detido - ao qual indubitavelmente, deve assistir o defensor - cfr. alínea a) do nº 1 do artigo 64º e nº 2 do artigo 141º do CPP - considera o arguido que a interpretação feita, quer na 1ª Instância, quer na Relação, daqueles preceitos normativos viola o disposto no nº 3 do artigo 32º da CR, nos termos do qual ?o arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória?.
2. - O preceito assume-se, na verdade, como expressão e concretização das garantias de defesa que o processo criminal deve assegurar, por exigência do nº
1 do mesmo artigo 32º. A esta luz, pode afirmar-se que o direito do arguido a ser assistido por um defensor em todos os actos do processo não se basta com a simples presença física deste, pois implica a possibilidade de o arguido comunicar com ele
(nesse sentido já a Comissão Constitucional se pronunciou, como se colhe do acórdão nº 164, publicado no Apêndice ao Diário da República, de 31 de Dezembro de 1979, e a jurisprudência do Tribunal Constitucional corroborou, do que são exemplo os acórdãos nºs. 7/87 e 127/88, publicados no Diário da República, I Série, de 9 de Fevereiro de 1987, e II Série, de 5 de Setembro de 1988, respectivamente), sendo a assistência obrigatória em determinados casos e fases. Assim ocorre com o primeiro interrogatório judicial do arguido detido, essencialmente orientado ao controlo da verificação dos requisitos justificativos da detenção e da subsequente eventual aplicação de alguma das medidas de coacção legalmente previstas (como recentemente se sublinhou no acórdão nº 372/98, por publicar), fase processual em que o juiz desempenha intervenção predominante, não obstante a assistência do Ministério Público e do defensor (nº 2 do artigo 141º do CPP), que sempre tem o direito de arguir nulidades (nº 6 do mesmo preceito), competindo ao juiz, inclusivamente, informar o arguido dos seus direitos, entre os quais está o de escolher defensor ou solicitar ao tribunal que lhe nomeie um [nº 4 daquele artigo 141º e alínea d) do nº 1 do artigo 61º]. A presença do defensor, neste primeiro interrogatório, configura-se, na perspectiva garantística, como meio de controlo da legalidade e de assistência técnica ao arguido para que este possa ser informado adequadamente das consequências jurídicas da sua actuação (cfr., a este propósito, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, Lisboa, 1993, págs. 222 e 228). A importância dessa assistência sempre este Tribunal o reconheceu, ainda à luz do Código de 1929 e da legislação posterior - como o Decreto-Lei nº 35 007, de 13 de Outubro de 1945 - na defesa dos direitos do acusado, suprindo o juiz a passividade deste, nomeando-lhe um defensor oficioso, perante a não constituição de advogado (cfr. acórdão nº 148/85, publicado no Diário citado, II Série, de 18 de Dezembro de 1985).
3. - Ponderando o concreto caso, há que reconhecer a dificuldade em o identificar como exemplo de controlo normativo de constitucionalidade, subtraindo-o à área do recurso de amparo, ou equivalente, inexistente no nosso ordenamento jurídico. Com efeito, não competindo ao Tribunal Constitucional a apreciação da constitucionalidade de uma decisão judicial, qua tale, nem sempre se apresenta singela a tarefa de traçar uma nítida linha divisória entre o controlo de uma norma jurídica aplicada por um tribunal, designadamente quando se está em face de uma determinada dimensão interpretativa, e o de uma decisão judicial de carácter processual que, por si e de forma autónoma, se considere violadora de direitos, liberdades ou garantias. Não será difícil, na verdade, defender que, mais do que um controlo normativo, se pretende apresentar ?queixa? de um acto do juiz - o que conduziria, inevitavelmente, a não ser possível conhecer do objecto do recurso.
Entende-se, porém, estar-se no limite da interpretação, proporcionando-se uma apreciação jurídico-constitucional do modo como o tribunal valorou os factos que deu como provados e os subsumiu ao enquadramento legal, em sede ora insindicável. Ora, tendo presente os parâmetros constitucionais contidos no artigo 32º da CR - maxime nos seus nºs. 1 e 3 - verifica-se que o tribunal recorrido entendeu inexistir qualquer nulidade no modo como foi dado cumprimento às exigências legais, nomeadamente considerando o artigo 62º do CPP como ?integral e escrupulosamente cumprido?. A esse desiderato chegou o tribunal após uma valoração contextual assim sintetizável: o recorrente, não pondo em causa os factos indiciadores do crime de burla agravada, arguiu a nulidade do primeiro interrogatório judicial e, consequentemente, de todo o processado seguinte, nomeadamente a busca domiciliária realizada, porque o juiz não teria perguntado ao arguido, formal e solenemente, se tinha defensor (não suscitou, pois, a questão de o juiz não lhe haver oficiosamente concedido tempo para conferenciar com o defensor nomeado); no entanto, resulta dos autos que, a quando da detenção do arguido, foi-lhe dado conhecimento dos seus direitos e deveres, nos termos dos artigos 58º e 61º do CPP, como também lhe foi permitido telefonar, nos termos dos artigos 260º e
194º, nº 3, do mesmo Código, sendo observado o disposto nos artigos 64º, nº 1, alínea a), e 62º, nº 2, com a nomeação do defensor que assistiu ao acto. Não se surpreende motivo para censurar, jurídico-constitucionalmente, a interpretação feita pelo tribunal dos factos dados como provados: o juízo feito, a partir da verificação da disciplina processual vigente, alicerça-se numa dimensão normativa vocacionada abstractamente e, como tal, constitucionalmente sindicável; do mesmo passo, e independentemente da sua aplicação concreta, assume-se como interpretação não lesiva das garantias de defesa.
III
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso.
Lisboa, 15 de Julho de 1998 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Beleza Messias Bento José de Sousa e Brito Luis Nunes de Almeida