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Procº 408/98
1ª Secção Consº Vítor Nunes de Almeida
I - RELATÓRIO
1. - P... foi acusado, no 1º Tribunal Territorial Militar, da prática de um crime de furto, previsto e punido pelo artigo 201º, nº1, alínea d), do Código de Justiça Militar (CJM)e 30º, nº2 e 79º, ambos do Código Penal de 1982, na versão de 1995.
Proferido o respectivo libelo acusatório, o arguido veio a ser julgado no 3º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, tendo o Colectivo que compunha tal tribunal decidido, por acórdão de 18 de Dezembro de 1997, julgar a acusação procedente e provada e, em consequência, condenado o arguido na pena de seis meses de prisão militar, com base no artigo 201º, nº1, alínea d) do CJM, com referência ao artigo 30º, nº2 do Código Penal (CP).
Não se conformando com o assim decidido, o arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal Militar, invocando a inconstitucionalidade do artigo 201º do CJM, enquanto prevê e pune como crime essencialmente militar os furtos realizados em vários locais, por intermédio de cartão multibanco, tendo os factos praticados como única conexão com as forças armadas a qualidade pessoal de militar dos agentes envolvidos.
2. - O Supremo Tribunal Militar (STM), por acórdão de 26 de Março de 1998, decidiu negar provimento ao recurso interposto e confirmar o acórdão recorrido, com o desconto de três dias de prisão disciplinar que o arguido tinha sofrido pelos factos provados.
Ainda não conformado, o arguido resolveu interpor recurso para o Tribunal Constitucional, para apreciação da interpretação feita pelo tribunal recorrido do nº1 do artigo 201º do CJM, na redacção do Decreto-Lei nº 141/77, de 9 de Abril.
Neste Tribunal, quer o arguido quer o Ministério Público apresentaram alegações.
O arguido concluiu as suas pela forma seguinte:
'A) O furto de cartão multibanco, efectuado por militar, e o levantamento posterior, em Caixas Multibanco, de quantias pertencentes a militar, utilizando tal cartão, não afecta inequivocamente interesses de carácter militar. B) Tal conduta não tem com a instituição castrense qualquer conexão relevante, não existindo nexo causal entre a conduta punível e algum dever militar, ou interesses militares relevantes de defesa nacional. C) Um militar que furta dinheiro de caixas multibanco, deve estar sujeito às mesmas regras que qualquer cidadão que furte dinheiro por intermédio de cartão multibanco das referidas caixas. D) A prática de tais factos não constitui crime essencialmente militar. E) O artigo 201º do CJM em conjugação com o artigo 1º do mesmo código, é inconstitucional, por ofensa do artigo 215º da CRP (revisão de 1989), enquanto aí, se qualifica como crime essencialmente militar, o furto, efectuado por militar, de um cartão multibanco pertencente a militar e posterior levantamento de quantias em caixas multibanco, utilizando tal cartão. F) Na sequência de revisão constitucional de 1997, foi alterada e remunerada a Constituição, passando os tribunais militares a ter competência para o julgamento dos crimes estritamente militares. G) A qualidade de militar, não é suficiente para caracterizar a existência de crime estritamente militar, tendo em atenção que com a aprovação da constituição de 1976, foi a natureza do crime que passou a caracterizar o crime essencialmente militar ou estritamente militar.
16. O artigo 201º do CJM em conjugação com o artigo 1º do mesmo código, é inconstitucional, por ofensa do artigo 213º da CRP (na redacção da revisão de
97), enquanto aí, se qualifica como crime essencialmente militar, o furto, efectuado por militar, de um cartão de débito Visa Electron e posterior levantamento de quantias de caixas multibanco utilizando tal cartão.'
Pelo seu lado, o Ministério Público formulou as seguintes conclusões:
1º
'Pode qualificar-se como sendo essencialmente militar o crime de furto, cometido por um militar em detrimento de outro, dentro das instalações militares e em grosseira violação do especial dever de lealdade e respeito entre militares, com quebra da relação de confiança que tem necessariamente de existir entre quem está ao serviço das Forças Armadas, numa mesma unidade.
2º Nestas circunstâncias, o cometimento do crime de furto – para além de traduzir violação do direito de propriedade – implica lesão de bens jurídicos próprios da comunidade militar, abalando a coesão e disciplina das Forças Armadas, valores essenciais à realização das tarefas de defesa nacional que lhes estão cometidas.
3º A norma incriminadora do furto militar, ao sancionar tal crime sempre e necessariamente com pena privativa de liberdade (inclusivé nos casos em que o arguido já não está ao serviço efectivo das Forças Armadas) – ao passo que a norma correspondente do direito penal comum autoriza, segundo as circunstâncias, o julgador a sancionar o furto com prisão ou multa – viola os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade.
4º Na verdade, a imposição necessária ao arguido de uma pena privativa da liberdade, em quaisquer circunstâncias, não pode justificar-se em função da tutela dos valores típicos da comunidade militar, traduzindo solução legislativa arbitrária e discricionária.
5º Termos em que deverá proceder o recurso, pelos fundamentos atrás referidos.'
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II - FUNDAMENTOS:
3. - Segundo o recorrente, a decisão recorrida fez uma interpretação inconstitucional da norma do artigo 201ºdo CJM. De facto, em seu entender, tal norma, enquanto prevê e pune como crime essencialmente militar os furtos realizados em vários locais, por intermédio de cartão multibanco, tendo os factos praticados como única conexão com as forças armadas a qualidade pessoal de militar dos agentes envolvidos é inconstitucional por ofender o estabelecido no artigo 215º, nº1 da Constituição (Revisão Constitucional de
1989).
Esta questão foi já objecto de apreciação por este Tribunal, ainda que a respeito de outras normas do CJM (artigo 207º, declarado inconstitucional com força obrigatória geral pelo Acórdão nº271/97, in 'Diário da República', Iª Série-A, de 15 de Maio de 1997)
O entendimento que sustentou esta decisão é perfeitamente transponível para o caso dos autos.
Vejamos.
Integrado na antiga tradição nacional de as Forças Armadas disporem de tribunais próprios, o Código de Justiça Militar, aprovado pelo Decreto-Lei nº 11.292, de 26 de Novembro de 1925, manteve o princípio do foro pessoal dos militares.
A Constituição de 1976 impôs um corte com a tradição, determinando a substituição do foro pessoal pelo foro material. De acordo com o texto constitucional, a jurisdição dos tribunais militares determina-se pela natureza do crime, que se há-de reconduzir ao seu carácter essencialmente militar. Assim, o cidadão, militar ou civil, só estará sujeito àquele foro enquanto violador de interesses especificamente militares; caso assim não suceda, será competente o foro comum.
O nº1 do artigo 215º da Constituição (Revisão Constitucional de 1982 - antes, nº1 do artigo 218º), estabelece que 'compete aos tribunais militares o julgamento dos crimes essencialmente militares', não se definindo o conceito utilizado. A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem procurado identificar o núcleo essencial do referido conceito, afirmando que 'a Constituição exige que o legislador se mantenha no âmbito estritamente castrense, só podendo submeter à jurisdição militar aquelas infracções que afectem inequivocamente interesses de carácter militar e que por isso mesmo hão-de ter com a instituição castrense uma qualquer conexão relevante, quer porque exista um nexo entre a conduta punível e algum dever militar, quer porque esse nexo se estabeleça com os interesses militares da defesa nacional' (v. Acórdãos nºs 347/86, 449/89, 660/84, 967/96 e 271/97).
Não poderão assim entrar na definição de crimes essencialmente militares os crimes comuns em que a única ligação com a instituição castrense seja a qualidade de militar do seu agente ou qualquer outro elemento acessório, o que parece postular a existência de uma conexão estrutural entre o fundamento da punibilidade da conduta e os interesses da instituição militar ou da defesa nacional.
4. - No caso em apreço, P... foi condenado por ter tirado a um camarada um cartão multibanco e, de posse do respectivo código, ter procedido a levantamentos de dinheiro variados, num total de 283.085$00 da conta do referido colega, dinheiro que veio a devolver, ou seja, pela prática de um crime de furto, na forma continuada, sendo o arguido e o ofendido militares.
Para fundamentar a competência e o enquadramento jurídico da matéria, escreveu-se na decisão recorrida:
'Na verdade, nesta hipótese em que o lesado é a instituição militar ou é um militar, são directamente violados os deveres militares de fidelidade, lealdade e camaradagem, violação atentadora dos valores da coesão e da segurança. Atinge-se, por esta forma, directa e primacialmente, a disciplina e a segurança das Forças Armadas e os bens jurídicos que as tutelam.'
Daqui concluiu a decisão recorrida que a conduta do recorrente afectava interesses de carácter militar, pelo que se integrava na previsão normativa do artigo 201º, nº1, alínea d), do CJM.
Ora, os factos que vêm referenciados nos autos e que estiveram na base da condenação do recorrente indiciam que, no caso, os bens jurídicos violados não foram bens jurídicos militares. A respectiva qualificação pelo STM derivou claramente da qualidade dos agentes: ambos militares e em cumprimento de serviço militar.
Porém, a conduta ilícita, em si mesma, atenta contra os mesmos valores e interesses sociais que estão na base da incriminação do correspondente crime comum de furto. O que a decisão recorrida considera especificamente militar tem a ver unicamente com a qualidade militar do respectivo agente.
Assim sendo, a norma do CJM que prevê e pune o crime de furto por militar a outros militares como crime essencialmente militar, com fundamento em que tal crime assenta na particular qualidade pessoal do agente e não na natureza objectiva e intrinsecamente militar dos valores lesados pela conduta ilícita, que também não afectam interesses respeitantes à defesa nacional, não pode deixar de ser considerada inconstitucional por contrariar a norma do nº1 do artigo 215º da Constituição (Revisão Constitucional de 1989). III - DECISÃO:
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide julgar inconstitucional a norma constante do artigo 201º, nº1, alínea d), do Código de Justiça Militar, aprovado pelo Decreto-Lei nº 141/77, de 9 de Abril, enquanto qualifica como essencialmente militar o crime de furto de bens pertencentes a militares, praticado por outros militares, por violação dos artigos 213º e 215º da Constituição e, em consequência conceder-se provimento ao presente recurso, revogando-se o acórdão recorrido quanto ao nele decidido quanto à questão de inconstitucionalidade. Lisboa,1999.01.19 Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa