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Processo n.º 224/12
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A fls. 6575 destes autos foi proferida a DECISÃO SUMÁRIA n.º 176/2012, do seguinte teor:
[...] A. recorre de acórdão proferido na Relação de Lisboa, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 de 15 de novembro (LTC), visando as normas dos artigos 30º e 77º do Código Penal, 'com a interpretação desigual que lhes conferiu o Tribunal recorrido'. Sustenta que a decisão recorrida é inconstitucional, 'nos termos do artigo 204º da Constituição'. Fundamenta o pedido sustentando que a Relação interpretou e aplicou as normas indicadas de forma 'oposta e distinta' da que fizera em outros casos. Assim, aplicando as mesmas normas de forma distinta, a Relação teria violado o princípio da igualdade 'e da reciprocidade' na aplicação de leis penais a distintos arguidos, o que violaria os artigos 13º e 204º da Constituição.
Acontece que o recurso de fiscalização concreta disciplinado pela alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, tem caráter exclusivamente normativo, nele não cabendo a apreciação direta de decisões judiciais. Todavia, o presente recurso visa, essencialmente, sindicar a decisão recorrida por ter aplicado de forma errónea o direito, o que, nos termos expostos, é inadmissível.
Decide-se, por isso, não conhecer do objeto do recurso.[...]
2. Inconformado, o recorrente reclama nos seguintes termos:
A. arguido e recorrente com sinais nos autos supra identificados vem, nos termos do art. 78º-A, nº 3, da LTC, reclamar da decisão sumária nº 176/2012 que indeferiu o recurso do mesmo conforme o disposto no art. 78º-A, nº 1, da LTC.
A nossa reclamação é interposta pelos seguintes termos e fundamentos:
“Acontece que o recurso da fiscalização concreta disciplinado pela al. b) do nº 1 do art. 70º da LTC, tem caráter exclusivamente normativo, nele não cabendo a apreciação direta de decisões judiciais. Todavia o presente recurso visa, essencialmente, sindicar a decisão recorrida por ter aplicado de forma errónea o direito, o que nos termos expostos é inadmissível”.
Analisando em abstrato o conceito expendido na decisão sumária aqui reclamada, somos convictos em concordar que a fiscalização ao abrigo do art. 70º, nº 1, al. b), da LTC, tem caráter exclusivamente normativo. Contudo é errada a conclusão de que por via disso este douto TC está impedido de sindicar as decisões dos Tribunais, visto que no passado já o fez, nomeadamente nos Ac. 279/95 e 445/97 (entre alguns outros) onde se consideram essas decisões do STJ aí sindicadas como “normas” para termos e efeitos da fiscalização aí operada pelo TC.
Aliás, tal como se explica aí nesses Ac. do TC, o conceito de “norma” a que se referem nomeadamente os art. 277º, nº 1, e 281º da CRP, pode ser extensivo a algumas decisões judiciais tais como os Ac. de fixação de jurisprudência prolatados pelo STJ.
Este entendimento (tal como aí se explica) tem vindo a ser prosseguido pelo TC desde o seu Ac. 26/85 de 26/04/1985.
Contudo no nosso caso em concreto, tal conceito torna-se irrelevante já que, contrariamente ao que afirma a citada decisão sumária, nunca foi nossa intenção sindicar a decisão recorrida nem esse é o objeto do nosso recurso.
O objeto do nosso recurso é aquele que está claramente definido no ponto 1º do mesmo, onde se lê:
“O recurso destina-se à apreciação da inconstitucionalidade da norma constante dos art. 30º e 77º do CP (quando aplicados conjuntamente e por referência aos art. 217º, 218º e 256º do CP), com a interpretação desigual que lhes conferiu o Tribunal recorrido”.
Assim o que se requer aqui a este douto Tribunal é a fiscalização do conteúdo desta norma em termos de se sindicar a inconstitucionalidade da mesma, e não a das decisões onde esta foi aplicada.
A verdade e que nos termos do art. 75º-A da LTC a interposição de recurso ao abrigo do art. 70º, nº 1 do mesmo diploma legal, é feito através de “singelo e lacónico” requerimento onde basta indicar qual a alínea do citado normativo ao abrigo da qual o mesmo é interposto e qual a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie, deixando-se a questão de se fundamentar e motivar o recurso e deste extrair-mos as devidas conclusões para uma fase posterior do mesmo (cfr o disposto no art. 79º da LTC). Pelo menos, e salvo melhor opinião, estas são as ilações que nós tiramos da leitura dos citados normativos.
Pelo que o arguido identifica claramente como objeto do recurso todo o citado no ponto 1º do mesmo, e afirma que a interpretação que o Tribunal recorrido fez desta norma é inconstitucional por violação dos princípios da igualdade e da reciprocidade na aplicação das leis, vertidos no art. 13º da CRP.
Contudo considerámos que no nosso requerimento para este TC se deveria ir “mais além” do exigido no art. 75º-A da LTC e tentar explicar e enquadrar a norma que consideramos inconstitucional com o contexto em que foi aplicada, daí fazermos referência à decisão recorrida e à inconstitucionalidade da mesma nos termos do art. 204º da CRP, mas tal como o por nós já exposto o objeto deste recurso não é fiscalizar a decisão que aplicou a norma mas sim o conteúdo da norma aplicada nessa decisão.
Ora tal como bem nos refere o TC no seu já citado Ac. nº 445/97, por vezes casos há em que existe uma sobreposição interpretativa entre a norma e o contexto da decisão onde esta foi aplicada sendo quase impossível dissociar uma da outra.
Assim, que no nosso entendimento no caso presente em que está em causa apenas a violação do art. 13º da CRP (principio da igualdade e da reciprocidade na aplicação das leis) com a interpretação que o tribunal recorrido conferiu à já aludida norma, seria quase impossível levantar esta questão de forma clara e concisa sem nos referirmos ao contexto onde a mesma foi aplicada, já que no nosso modesto entendimento também aqui poderá haver uma sobreposição interpretativa, ou seja, a decisão é inconstitucional porque nela foi aplicada norma inconstitucional e a norma é inconstitucional porque foi interpretada de forma desigual (pelo mesmo Tribunal) e aplicada dessa forma na decisão recorrida.
Contudo voltamos a referir aqui que o objeto do nosso recurso é apenas aquele que está definido no ponto 1º do mesmo e que se destina a fiscalizar a inconstitucionalidade da norma aí invocada e não a da decisão onde esta foi aplicada.
Apesar de não ser objeto do nosso recurso apreciar ou sindicar as decisões onde o mesmo Tribunal recorrido foi aplicando com interpretações desiguais a mesma norma, não podemos deixar de fazer referências às mesmas no nosso requerimento de interposição de recurso já que estas e a forma como foram proferidas são as consequências da aplicação da citada norma inconstitucional que pretendemos ver fiscalizada no nosso recurso.
Assim reafirmamos aqui mais uma vez que apesar de por vezes o conceito de norma tal como vem definido nos art. 277º, nº 1 e 281º da CRP, poder ser extensivo ao conteúdo de decisões judiciais (cfr Ac. do TC por nós já citados) a verdade é que o nosso recurso destina-se apenas a fiscalizar a inconstitucionalidade da norma constante dos art. 30º e 77º do CP (quando aplicados conjuntamente e por referencia aos art. 217º, 218º e 256º do CP), com a interpretação que lhes conferiu o Tribunal recorrido, e não a inconstitucionalidade da decisão onde tal norma foi aplicada.
Face ao exposto afirmamos que o nosso recurso tem por objeto aquele que vem delimitado no ponto 1º do mesmo. Objeto esse que se enquadra completamente nos pressupostos do art. 70º, nº 1, al. b) da LTC, devendo por isso ser aceite e prosseguir para ser devidamente apreciado por este Tribunal já que, contrariamente ao que se afirma na douta decisão sumária nº 176/2012, este não se destina à apreciação direta da decisão judicial recorrida mas, sim, da norma que foi aplicada nessa decisão.
3. O representante do Ministério Público respondeu à reclamação nos seguintes termos:
1º Parece-nos evidente que, como muito bem se decidiu na Decisão Sumária reclamada, o recorrente com o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional visava “sindicar a decisão recorrida por ter aplicado de forma errónea o direito”.
2º Ora, sendo com o requerimento de interposição do recurso que se fixa o seu objeto, não vindo ali enunciado uma questão de inconstitucionalidade normativa e tendo o recurso de fiscalização concreta interposto caráter exclusivamente normativo, estamos perante um objeto inidóneo.
3º Dirimindo os “Assentos” e os Acórdãos uniformizadores da jurisprudência, divergências jurisprudenciais quanto a interpretações normativas, naturalmente que a fiscalização de constitucionalidade da interpretação acolhido nesses arestos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, cabe nas competências do Tribunal Constitucional, não tendo, pois, sentido, a referência que, na reclamação, se faz à jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre tal matéria.
4º Aliás, nessa reclamação, nada de relevante se diz que possa abalar os fundamentos da decisão reclamada, continuando a desconhecer-se, neste momento, qual a dimensão normativa, cuja inconstitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.
5º Poderíamos ainda acrescentar que também na motivação do recurso interposto da decisão proferida em 1.ª instância, a violação de preceitos constitucionais não é imputada a qualquer norma ou interpretação normativa, antes à própria decisão (vd. fls. 6291, 6292 e 6306).
6º Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.
4. Cumpre decidir em Conferência, sem prévios vistos.
É oportuno recordar os termos em que foi requerida a interposição do presente recurso. Disse, então, o recorrente, ora reclamante:
A., arguido com os sinais dos autos supra identificados, vem, nos termos do art. 280.º, nº1 al. b) da CRP e 70º, nº 1, al. b) da Lei 28/82 de 15/11, na versão da Lei 85/89 de 07/09, com as alterações introduzidas pela Lei 13-A/98 de 12/06 (vulgarmente conhecida como Lei orgânica do Tribunal Constitucional), interpor recurso para este Tribunal Constitucional da decisão prolatada pela a Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em 15/12/2011.
1º O recurso destina-se à apreciação da inconstitucionalidade da norma constante dos art. 30º e 77º do CP (quando aplicados conjuntamente e por referência aos art. 217º, 218º e 256º do CP), com a interpretação desigual que lhes conferiu o Tribunal recorrido.
2º Ou seja, de que havendo uma decisão já anteriormente prolatada por esta mesma secção deste Tribunal, em 29/06/20 10, no âmbito do processo 4395/03.6 TDLSB.LI.5, onde se afirma que estão afastados os Acórdãos de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 19/02/1992 e 8/2000, e que passou a haver concurso aparente (com as novas alterações produzidas no art. 256º do CP pela Lei 59/2007) entre os crimes de falsificação de documento e de burla, sempre que o primeiro seja cometido apenas com a intenção de preparar, executar, encobrir ou facilitar o segundo, e condenando-se aí esse arguido em consequência com essa interpretação, podia essa mesma secção desse Tribunal agora no âmbito de decisão recorrida fazer uma interpretação completamente oposta e distinta das mesmas normas jurídicas, no sentido de “se dar o dito por não dito” e afirmar assim que os já aludidos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça não só nunca foram efetivamente afastados como todavia ainda se mantém em vigor e que existiu sempre concurso real e efetivo entre os crimes de falsificação de documento e de burla já que as alterações introduzidas ao art. 256º do CP pela Lei 59/2007 nada de novo trazem nesse sentido, mantendo-se assim as condenações aí aplicadas a estes arguidos à luz dessa incriminação distinta e desigual que o mesmo Tribunal fez das mesmas normas jurídicas.
3º No nosso entendimento, essa interpretação provocou uma desigualdade na forma como o mesmo Tribunal aferiu e aplicou, em processos distintos, as mesmas normas jurídicas; o que, viola o princípio da igualdade e da reciprocidade na aplicação das mesmas Leis Penais a arguidos distintos, principio esse que é defendido pelo art. 13º da CRP, o que desde logo provoca a inconstitucionalidade da decisão recorrida nos termos do art. 204º da CRP.
4.º Esta questão, foi, por nós, levantada de forma processualmente adequada durante o nosso recurso para o Tribunal da relação de Lisboa. Voltando a ser, por nós, posteriormente abordada, e aprofundada, no pedido de aclaração da decisão recorrida, o que desde já aqui se refere para termos e efeitos do plasmado no art. 75º A, nº 2, do já citado diploma legal (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional).
A interpretação mais próxima do texto do citado pedido é aquela que foi adotada na decisão reclamada; pretenderia o recorrente, em suma, fazer sindicar a decisão da Relação por ter interpretado e aplicado as normas indicadas de forma 'oposta e distinta' da que fizera em outros casos; e assim, aplicando as normas de forma distinta, a Relação teria violado o princípio da igualdade 'e da reciprocidade' na aplicação de leis penais a distintos arguidos, o que violaria os artigos 13º e 204º da Constituição.
Desta forma, ao contrário do que afirma o recorrente na reclamação, o que resulta do teor do requerimento de interposição do recurso (o que, aliás, condiz com a suscitação da questão perante o tribunal recorrido), é que a questão de inconstitucionalidade se reporta à «interpretação completamente oposta e distinta das mesmas normas jurídicas, no sentido de “se dar o dito por não dito” e afirmar assim que os já aludidos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça não só nunca foram efetivamente afastados como todavia ainda se mantém em vigor e que existiu sempre concurso real e efetivo entre os crimes de falsificação de documento e de burla já que as alterações introduzidas ao art. 256º do CP pela Lei 59/2007 nada de novo trazem nesse sentido, mantendo-se assim as condenações aí aplicadas a estes arguidos à luz dessa incriminação distinta e desigual que o mesmo Tribunal fez das mesmas normas jurídicas».
Ora, assim definida, a questão tem a ver com a decisão propriamente dita e não com as normas aplicadas. Dito de outro modo: o que resulta deste texto (e é o requerimento em causa que define o objeto do recurso de inconstitucionalidade), é que a desconformidade com a Constituição proveio da atividade do tribunal recorrido ao prolatar a sentença e não da norma por ele aplicada. Deve, pois, concluir-se – conforme se decidiu na decisão sumária em causa – que o objeto do recurso não reveste natureza normativa e não é idóneo para ser conhecido no âmbito do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC.
5 Em face do exposto, decide-se confirmar a decisão sumaria reclamada, e indefere-se a reclamação. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 9 de maio de 2012.- Carlos Pamplona de Oliveira – Maria João Antunes – Gil Galvão.