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Proc. nº 581/98
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 3ª secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1 - Por decisão do Tribunal Judicial da Comarca de São João da Madeira, transitada em julgado, foi o arguido - ora recorrente - H..., condenado pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, p.p. pelos artigos 11º, nº 1, alínea a), Do Decreto Lei nº 451/91, de 28 de Dezembro, e 217º e 218º, nº1, do Código Penal, na pena de 9 meses de prisão e na interdição do uso de cheque pelo período de 18 meses.
2 - Na sequência da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 316/97, de 19 de Novembro, que alterou o Decreto Lei nº 451/91, de 28 de Dezembro, o Ministério Público promoveu o arquivamento dos autos por aplicação do art. 2º do Código Penal, pretensão que veio a ser indeferida com o fundamento em que da sentença não resulta inequivocamente que o cheque dos autos foi emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador, entendendo-se, pois, que o caso sub judice não se encontra abrangido por aquele diploma legal.
3 - Também o ora recorrente requereu, com o mesmo fundamento, o arquivamento dos autos, tendo sido negada essa pretensão, agora com o fundamento em que tendo já sido apreciada essa questão estava prejudicada a sua reapreciação.
4 - Inconformados, Ministério Público e arguido recorreram para o Tribunal da Relação do Porto que, por decisão de 25 de Março de 1998, rejeitou os recursos por manifesta improcedência.
5 - É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1, do artigo 70º, da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso de constitucionalidade. Pretende o recorrente ver apreciada a questão da constitucionalidade da interpretação dada pela decisão recorrida ao nº 2 do artigo 2º do Código Penal, bem como a constitucionalidade (conquanto superveniente) do art. 11º do Decreto Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro.
6 - Já neste Tribunal foi o recorrente notificado para apresentar alegações, o que fez, tendo concluído nos seguintes termos:
'1 - A constatação de se não ter provado a ocorrência de determinado facto ou circunstância, é o reconhecimento declarado da não prova, do infundado é o in dubio. Este, de acordo com o princípio in dubio pro reo, decorrente da presunção da inocência do arguido, consagrado no nº 2 do artigo 32º da CRP, norma que de acordo com o artigo 18º nº 1 e 3 também da CRP é directamente aplicável, vinculando as entidades públicas e privadas, não permite a existência de leis que lhe diminuam a sua extensão e alcance bem como, não respeita apenas à prova dos factos, no sentido da audiência de julgamento, mas antes impõe, face a uma qualquer nova lei que venha restringir a incriminação de uma conduta, a sua imediata descriminalização se se verificar a não confirmação de um pressuposto de punibilidade. Sendo esta a interpretação que o citado artigo 32º da CRP impõe para o nº 2 do artigo 2º do Código Penal, aliás, de acordo com o comando que se contém no nº 4 do artigo 29º também da CRP.
2 - A aplicação directa, imediata, daquele princípio, constitui uma garantia nuclear de defesa do arguido, incluindo-se nestes termos no nº 1 do mesmo artigo
32º.
3 - Aliás, a não ser assim, violar-se-á também o princípio da igualdade, consagrado no nº 1 do art. 13º da CRP, face a um outro qualquer Tribunal que perante a mesma conduta, se tenha dado ao trabalho de verificar das condições de tempo em que a mesma se tenha processado - o que aliás já decorria do disposto na al. b) do nº 3 do art. 283º do C.P.P.
4 - Face aos princípios e às normas constitucionais que se vêm invocando, mormente o princípio da presunção da inocência do arguido, artigo 32º, nº 2, e da aplicação rectroactiva da lei penal mais favorável, artigo 29º, nº 4, quem tem, se o entender dever fazer, de interpor recurso de revisão, em relação à carência, nos factos provados na sentença, de uma condição objectiva de punibilidade, é o Ministério Público e o assistente, já que o arguido beneficia de uma presunção de inexistência daquela condição. A alínea d) do artigo 449º do Código Penal, para onde remete o acórdão recorrido, só faz sentido em relação a factos incriminatórios que lá estejam e não devessem estar e a causas de exclusão da culpa que lá não estejam e devessem estar!
5 - A nova redacção do Decreto Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, veio, definitivamente, demonstrar que a circulação fiduciária do cheque, enquanto moeda privada - a única razão porque se justificava a protecção jurídico penal - deixou, para a comunidade jurídica, de ser considerado um bem jurídico susceptível de tutela penal.
É inelutável a realidade jurídico-social de que o bem jurídico que a incriminação por emissão de cheque sem provisão visava salvaguardar, foi claramente desvalorado pela comunidade jurídica enquanto bem jurídico-criminalmente susceptível daquela protecção. A nova redacção do Decreto Lei nº 454/91 apenas veio confirmar esse facto. Nestes termos, deve considerar-se inconstitucional, a interpretação que no acórdão recorrido se dá ao nº 2 do artigo 2º do Código Penal, enquanto se entenda que dela decorre a necessidade de o arguido fazer prova da inexistência de uma condição objectiva de punibilidade que não conste da sentença e que lhe cumpra o ónus de interpor recurso de revisão para o fazer; Bem assim, deve considerar-se inconstitucional, de todo, a prisão por emissão de cheque sem provisão, por descriminalização da respectiva conduta'.
7 - Notificado para responder, querendo, às alegações do recorrente, o Ministério Público apresentou contra-alegações, que concluiu da seguinte forma:
'1º - Não deverá conhecer-se do recurso quanto à interpretação do artigo 2º, nº
2, do Código Penal, que o recorrente põe em causa por, em seu entender, ser incompatível com a Constituição, porque tal interpretação não foi acolhida pela decisão recorrida.
2º - Também não deverá conhecer-se da suscitada questão da inconstitucionalidade do Decreto Lei nº 454/91, por, uma vez que se considerou não haver lugar à sua aplicação, não ter sido apreciada pela decisão recorrida'.
8 - Notificado o recorrente para responder, querendo, à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, veio este dizer, a concluir, o seguinte:
'1 - Resulta bem evidente, quer do que se diz sob II e III nas alegações, quer das 1ª a 4ª conclusões, que a interpretação do nº 2 do art. 2º do Código Penal que se pretende seja declarada inconstitucional é a seguinte:
«Na sentença condenatória, já transitada, não foi dado como provado ter sido o cheque emitido em data posterior à que do mesmo consta. Logo, não é aplicável ao caso a regra do art. 2º do Código Penal, isto é, a lei nova que vem restringir o
âmbito da incriminação». Defende o recorrente, também com clareza, impor a CRP uma interpretação diversa, no sentido de que a carência, na sentença condenatória, de uma condição objectiva de punibilidade face à nova lei que criminaliza a conduta, deverá ter como efeito, por força do nº 2 do art. 2º do Código Penal, a imediata cessação da execução e dos efeitos penais de condenação, por se ter de considerar a conduta descriminalizada face à aludida carência.
2 - Acontece no entanto que o acórdão recorrido avançou uma solução para o que indubitavelmente poderia ser uma injustiça. O recorrente, sendo certo que à evidência atacou a interpretação referida na precedente conclusão, por a considerar inconstitucional, no pedido, adiantou-se, acabando por transmitir a ideia de que a interpretação que verberava era, não aquela, mas a própria via de solução que em rigor, como bem salienta o Ministério Público, não é uma interpretação da norma, mas a via de solução apontada, em consequência daquela interpretação.
3 - Não obstante, aquele pedido demanda tão-só uma interpretação restritiva, pois como se disse na precedente conclusão desta resposta, é fácil de ver que o mandatário do recorrente, levado por aquele afã de demonstrar a inconstitucionalidade de tudo, quer da interpretação da norma que da via solução apontada...'magis dixit quam voluit', tendo acabado por salientar a última 'a via da solução' em detrimento da primeira 'a interpretação da norma para que, face à injustiça a que se tende, a Relação não quis deixar de apontar um eventual «remédio»'. Interpretação restritiva do pedido que pelos motivos expostos pode e, salvo melhor e certamente mais douta opinião, deve ser feita.
4 - Ainda que assim se não entenda, deveria o Exmo. Conselheiro-Relator, por si ou sugestão dos Exmos. Conselheiros-Adjuntos, nos termos do nº 4 do art. 69º do CPC, em relação ao Exmo. Conselheiro-Relator, no âmbito da competência que lhe atribui a alínea b) do artigo 700º do CPC, aplicável expressamente por força do disposto no artigo 79º-B da Lei 28/82, de 15 de Novembro, na redacção da Lei nº
85/89, de 7 de Setembro, e de acordo com o argumento a maiori ad minus - convidar o recorrente a corrigir e ou esclarecer o pedido, não podendo é, nunca, por aquele motivo, deixar de se conhecer do objecto do recurso.
5 - O argumento de que não se aplicou a nova redacção do Dec. Lei nº 454/91 é absolutamente falso, pois que em parte alguma se viu a pretensão da manutenção da privação da liberdade de um indivíduo por força de uma lei (ou redacção) que não está em vigor. Foi obviamente aplicada a nova redacção do Dec. Lei nº
454/91, mal, para manter o arguido preso.
6 - De qualquer forma, julgávamos totalmente esclarecida esta questão, através do que se disse na conclusão 5 -, in fine, das alegações onde se explicita que o que se põe em causa, considerando-a inconstitucional, é a incriminação por emissão de cheque sem provisão, face à nova realidade axiológico normativa, expressa na nova redacção operada pelo Decreto Lei nº 316/97, de 19 de Novembro. Ademais, nos termos do nº 1 do art. 71º e da al. b) do nº 2 do art. 72º da LTC o que permite trazer as questões a este Alto Tribunal é o facto de a inconstitucionalidade ter sido suscitada nas instâncias e não o de ter sido apreciada. Termos em que devem improceder ambas as questões prévias suscitadas pelo Ministério Público, conhecendo-se do objecto do recurso como é de direito e de justiça'.
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II - Fundamentação
8 - O recurso previsto na al. b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional pressupõe, além do mais, que: a) o recorrente tenha suscitado, durante o processo e de forma processualmente adequada, a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica - ou de uma sua interpretação normativa -, e que; b) não obstante, a decisão recorrida a tenha aplicado - a norma ou a interpretação normativa - no julgamento do caso. Quanto ao pressuposto de admissibilidade do recurso referido em a), constitui desde há muito jurisprudência assente neste Tribunal que a inconstitucionalidade de uma norma jurídica só se suscita durante o processo, e de forma processualmente adequada, quando tal se faz em tempo e em termos de o tribunal recorrido ficar a saber que tem essa questão para resolver e, consequentemente, a poder e dever decidir. Tal implica, em suma, que a questão seja suscitada de forma clara e perceptível
(nesse sentido, entre muitos outros, os Acórdãos nºs 269/94, 102/95 e 595/96 in Diário da República, II Série, de 18 de Junho de 1994, II Série, de 17 de Junho de 1995
e II Série, de 22 de Julho de 1996, respectivamente), antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a mesma inconstitucionalidade respeita; ou seja: em regra, antes da prolação da sentença (veja-se, entre muitos nesse sentido, os Acórdãos nºs 62/85, 90/85 e 450/87, in Acórdãos do T.C., 5º vol., p. 497 e 663 e 10º vol., pp. 573, respectivamente). Quanto ao pressuposto de admissibilidade do recurso referido em b) tem-se dito, fundamentalmente, que essa admissibilidade está condicionada por uma efectiva aplicação, como ratio decidendi e não simples obiter dictum da norma - ou interpretação normativa - cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo (nesse sentido, entre muitos, os Ac. 284/94 e 367/94, in Acórdão do T.C., 27º vol., pp. 809 e ss. e 28º vol., pp. 147 e ss., respectivamente).
9. Uma vez enunciada, em termos genéricos, a forma como este Tribunal tem interpretado os pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade com fundamento na alínea b), do nº 1, do artigo 70º, da Lei do Tribunal Constitucional, que no caso estão em discussão, cumpre agora ver de que forma é que o que se disse se aplica ao caso que é objecto dos autos.
9.1. - Quanto ao artigo 2º, nº 2, do Código Penal:
O recorrente pretende que esse normativo é inconstitucional, quando interpretado no sentido de que dele 'decorre a necessidade de o arguido fazer a prova da inexistência de uma condição objectiva de punibilidade que não conste da sentença e que lhe cumpra o ónus de interpor recurso de revisão para o fazer'. O mencionado artigo 2º, n.º 2, dispõe: O facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções; neste caso, e se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais. Simplesmente, nas alegações para a Relação, o recorrente não suscitou a inconstitucionalidade dessa interpretação do artigo 2º, n.º 2, do Código Penal, ou de qualquer outra. Ao menos, não a suscitou, de forma clara e perceptível. Não tendo o recorrente suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade do artigo 2º, n.º 2, do Código Penal, na interpretação que pretende ver apreciada por este Tribunal, não importa sequer decidir se, como sublinha o Ministério Público, o acórdão recorrido não aplicou tal normativo com essa interpretação. De facto, à falta dessa suscitação, não é possível conhecer do recurso interposto, enquanto o mesmo tem por objecto tal normativo.
9.2. Quanto à norma do artigo 11º do Decreto Lei nº 454/91, na redacção que lhe foi dada pelo Dec. Lei 316/97, de 19 de Novembro: Pretende ainda o recorrente ver apreciada por este Tribunal a questão da inconstitucionalidade (superveniente) do art. 11º do Decreto Lei nº 454/91, de
28 de Dezembro, na medida em que mantém a criminalização, em certas situações, da emissão de cheque sem provisão. Nesse sentido disse o recorrente no requerimento de interposição do recurso: 'A norma do artigo 11º do decreto Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, ainda que não na sua versão primitiva, é agora inconstitucional, na medida em que viola o artigo 204º, por força do disposto nos artigos 8º, nº1 (em consonância com o art. 1º do Protocolo Adicional nº 4 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 16/09/93) e dos nºs 1 e 2 do artigo 27º, ambos da CRP, face à agora clara intenção do legislador de, através dela, reinstituir a «prisão por dívidas», tendo desvalorizado, enquanto bem susceptível de protecção jurídico penal, a circulação fiduciária do cheque'.
Vejamos então, em primeiro lugar, se o recorrente suscitou essa questão perante o Tribunal recorrido. Disse o recorrente nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação do Porto:
'Por último, mas não menos importante, é o facto da nova lei ser inaplicável, por inconstitucional, na medida em que repõe a «prisão por dívidas», banida do nosso país no final do século XVIII por se considerar inadmissível face aos princípios jurídico-constitucionais de direito internacional geral ocidental'. Não obstante, na mesma peça processual, disse o recorrente a concluir: 'Logo, ao manter a punição e a prisão por um crime que sabemos já não ser, o meritíssimo violou o art. 204º, por força do disposto nos artigos 8º, nº1, e 27º nºs 1 e 2, todos da CRP, inconstitucionalidade, também, que fica expressamente invocada'. O recorrente hesita assim entre arguir a inconstitucionalidade do art. 11º do Decreto Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro (na versão que resulta do Decreto Lei nº 316/97, de 19 de Novembro) e a inconstitucionalidade da própria decisão judicial. Porém, a ser este último o sentido da arguição do recorrente, não poderia conhecer-se, também nesta parte, do objecto do recurso, uma vez que, como tem sido por várias vezes afirmado por este
Tribunal, objecto do recurso de constitucionalidade são as normas jurídicas e não as decisões judiciais. Admitindo, contudo, que o recorrente suscitou a questão da constitucionalidade do art. 11º, nº1, do Decreto Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro (na versão que resulta do Decreto Lei nº 316/97, de 19 de Novembro), a verdade, porém, é que mesmo nesta hipótese continua a não ser possível conhecer do objecto do recurso, por não ter sido a norma cuja constitucionalidade é contestada aplicada pela decisão recorrida. Como sublinha o próprio acórdão recorrido, citando o parecer do Ministério Público junto do Tribunal da Relação, 'é igualmente despropositada a invocação da inconstitucionalidade da nova redacção do Decreto Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, introduzida pelo Decreto Lei nº 316/97, de 19 de Novembro. Tal diploma não foi aplicado ao caso em apreço (sublinhado nosso), baseando-se o indeferimento da pretensão formulada ... na sua inaplicabilidade'. Assim, não pode este Tribunal, também nesta parte, conhecer do objecto do recurso.
III - Decisão Por tudo o exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em oito unidades de conta. Lisboa, 29 de Julho de 1998 José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Beleza Messias Bento Luis Nunes de Almeida