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Proc. nº 166/98 Cons.Sousa e Brito
(Cons.Messias Bento)
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. J. B. recorre, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de Outubro de 1997, que negou provimento ao recurso por si interposto do acórdão da 4ª Vara Criminal do Porto, que o condenou a 16 (dezasseis) anos de prisão efectiva, como autor material de um crime de tráfico agravado de estupefacientes
(previsto e punível pelos artigos 21º, nº 1, e 24º, alíneas b), c) e j), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro) e de um crime de branqueamento agravado
(previsto e punível pelos artigos 23º, nº 1, e 24º, alíneas b), c) e j) do mesmo Decreto-Lei nº 15/93).
Pretende ver apreciada a inconstitucionalidade das seguintes normas:
(a). dos artigos 410º, nº 2, e 433º do Código de Processo Penal;
(b). do artigo 129º, nº 1, do mesmo Código;
(c). do artigo 374º, nº 2, do dito Código;
(d). do artigo 1º, nº 1, alínea f), do citado Código;
(e). dos artigos 21º, nº 1, 23º, nº 1, e 24º, alíneas b), c) e j), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.
Alega o recorrente que 'a questão das inconstitucionalidades foi suscitada, quer na motivação, quer nas alegações de recurso do acórdão'.
Neste Tribunal, o recorrente apresentou alegações, formulando as seguintes conclusões:
1. Só através dos factos provados e não provados se poderá aferir qualquer dos vícios previstos no art. 410º, al. b) e c) do C.P.P., quanto ao texto decisório.
2. No Acórdão da 1ª instância não se vislumbra a fundamentação dos factos não provados, omissão que deveria constituir nulidade conforme art. 379º al. a) do C.P.P.;
3. Na enumeração dos factos dados como provados e não provados, omitiu o Tribunal matéria alegada pela defesa, mais propriamente no seu artigo 6º a 8º e
18º a 20º da contestação, com interesse para influir na decisão da causa, pelo que foi violado o disposto nos artigos 32º nº1 e 5 da C.R.P.;
4. Quer o Tribunal da 1ª instância quer o S.T.J. ao confirmar aquele Acórdão decidindo que a 1ª instância tinha feito aplicação correcta das normas contidas no artigo 374, fez errada interpretação das normas contidas naquele preceito porque violadoras do artigo 32º nº 1 e 5 da CRP no sentido em que foram aplicadas pelas anteriores instâncias, estando feridas de inconstitucionalidade material.
5. O Acórdão deu como provado determinados factos que nem sequer constam da acusação ou da pronúncia e com os quais o arguido não foi confrontado, impedindo-o pois de exercer o contraditório; Nem se constacta da acta do julgamento que tivesse sido dado cumprimento ao vertido nos artigos 358º, 359º do C.P.P.;
6. Por que os factos foram vertidos no acórdão, não podem ser inócuos e como tal tiveram interesse para a Decisão, e consequentemente para a condenação do arguido em termos de agravamento da pena aplicada.
7. O arguido ao não ter tomado anteriormente conhecimento dos factos que influiram para agravar a medida da pena, ainda que dentro da mesma moldura penal, e não se ter podido defender quanto aos mesmos foi prejudicada no seu direito de defesa, artigo 32º nº 1 da CRP; neste sentido Acórdão do Trib. Const.
279/95 e 445/97.
8. O Acórdão recorrido fundamentou a sua convicção em: relatos de diligências externas, vigilâncias, informações de serviço, declarações e depoimentos escritos e relatos de conversas informais. a) Relatos de diligências externas e informações de serviço são meras declarações juntas aos autos pelas testemunhas que entretanto depuseram em audiência, não podendo pois serem consideradas como meios de prova, vedado que é a leitura dos depoimentos das testemunhas fora dos casos legalmente considerados, que ficam a constar de acta, o que não foi o caso. b) Foram valoradas conversas informais de fls. 539 a 540, 578 a 580 conforme se verifica a fls. 55 do acórdão, tidas com arguidos enquanto detidos e não presos. c) Foram valoradas conversas informais de fls. 738-739 sobre o que se 'ouviu dizer' sem identificarem a quem se ouviu dizer e sem as mesmas terem sido confirmadas. d) Foram também utilizadas como meios de prova certidões de inquéritos de processos alheios ao presente processo por conterem declarações e depoimentos escritos, referindo-se alguns desses depoimentos a pessoas que nem sequer foram arroladas como testemunhas ou ouvidas nos presentes autos; e outras declarações referem-se aos arguidos, apesar dos mesmos terem estado presentes em audiência. e) Nas actas não se verifica que tenha sido dada autorização para a sua leitura e justificação legal nos termos dos artigos 357º e 356º nº 8 do C.P.P.
9. O Tribunal ao ter formado a sua convicção com base nestes meios de prova, que foram confirmados pelo acórdão do STJ violou os princípios da oralidade, imediação e contraditório, tendo feito errada interpretação do artigo 129º nº 1 do CPP, interpretação essa ferida de inconstitucionalidade material por violação dos princípios consagrados no artigo 32º da CRP.
10. O arguido foi condenado pela prática do crime p e p artigo 21 nº 1 e 24º al. b), c) e j); e artigo 23º nº 1 al. a) e art. 24º b) c) j) do DL 15/93. O arguido praticou o crime de tráfico (art. 21º), obtendo lucros e consequentemente com esses lucros fez compras e pôs em nome de familiares. Os dois crimes estão totalmente interligados sendo um causa e outro efeito e fazendo parte do mesmo comportamento.
11. No caso concreto o crime de branqueamento surge dentro de uma mesma resolução que é o efeito do crime pelo arguido praticado (tráfico de estupefacientes), pelo que só deve ser condenado por um único crime, o mesmo se diga quanto às agravantes porque foi duplamente condenado quanto a ambos os crimes.
12. Todavia e mesmo que assim se não entenda, tendo a arguido sido condenado pelo crime p e p art 23º com a agravante da al. j) do art. 24º do DL 15/93 deixará esta agravante de subsistir, na medida em que os restantes membros que com ele constituíram o bando dele foram absolvidos, em virtude de terem sido absolvidos do crime p e p do artigo 23º, donde concluir que não pode continuar a militar contra o recorrente a agravante da al. j).
13. Tendo o arguido sido duplamente condenado quanto aos crimes e às agravantes violou o Tribunal o princípio consignado no nº 5 do art. 29º da CRP, ou seja o princípio 'Ne bis in idem'.
14. O arº 410º não permite o reexame da matéria de facto; As alíneas do nº 2 do artº 410º, circunscreve a reapreciação de facto ao 'texto da decisão recorrida';
15. Não sendo os factos quesitados, não permitem que se descubra o vício mesmo quando a decisão em si enferma de irregularidades na ponderação da prova recolhida em audiência;
16. Quando a matéria de direito de não apresenta como controversa o cidadão recorrente encontra limitado na sua legítima expectativa de ver o seu caso reexaminado sob o aspecto fáctico;
17. As disposições combinadas dos arts. 432º, al. c) 433º, 410º, nºs 2 e 3 do C.P.P. estão feridas de inconstitucionalidade por violação do duplo grau de jurisdição ex vi artº 32º, nº 1, da C.R.P. artº 11º, nº 1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, recebido e elevado a princípio constitucional pelo artº 16º nº 2 da C.R.P. e do artº 14º, nº 5 do Pacto Internacional dos Direitos Cívicos e Políticos de 16 de Dezembro de 1966, aprovado pela Lei nº
29/78 de 12 de Junho e artº 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aprovado pela Lei 65/78 de 13 de Outubro.
8. Assim sendo, devem as normas referentes aos arts. 410º e 433º do Cód. Proc. Penal serem declaradas inconstitucionais, até porque a nova C.R.P., revista em Setembro, consagra claramente esse duplo grau de jurisdição ao afirmar no nº 1 do artº 32º que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa incluindo o recurso.
19. Na C.R.P. revista e anotada por Jorge Lacão é o próprio a afirmar expressamente que a inclusão da garantia do recurso entre as garantias de defesa constitucionalizou no domínio do processo penal o duplo grau de jurisdição. Nestes termos, deve ser dado provimento ao recurso, devendo as normas invocadas serem julgadas inconstitucionais quando interpretadas e aplicadas como o foram pelas anteriores instâncias.
O Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal, nas suas alegações formulou as seguintes conclusões:
1º - O recorrente não suscitou, de modo processualmente idóneo e adequado, durante o processo, podendo fazê-lo, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa relativamente ao preceituado nos artigos 129º, nº 1, 374º, nº 2, alínea f) do nº 1, todos do Código de Processo Penal, bem como dos artigos 21º,
23º e 24º do Decreto-Lei nº 15/93.
2º - Na verdade, limitou-se o arguido, na motivação do recurso que apresentou perante o Supremo Tribunal de Justiça, a pugnar pela tese da nulidade do acórdão do colectivo, imputando-lhe directamente a violação de normas e princípios do processo penal, bem como do princípio constitucional das garantias de defesa, consignado no artigo 32º da Lei Fundamental, o que manifestamente não traduz suscitação idónea e adequada de uma questão de inconstitucionalidade normativa.
3º - O acórdão recorrido não faz do artigo 129º, nº 1, do Código de Processo Penal a interpretação censurada pelo Acórdão nº 213/94 deste Tribunal, já que não considerou relevantes para a fundamentação da decisão de facto os depoimentos cuja validade era questionada.
4º - Não deverá, pois, nesta medida, conhecer-se do recurso interposto.
5º - Não padecem da apontada inconstitucionalidade, conforme jurisprudência reiterada deste Tribunal, as normas constantes dos artigos 410º, 432º e 433º do Código de Processo Penal.
6º - Termos em que deverá, quanto a este aspecto, ser o recurso julgado improcedente.
Ouvido o recorrente sobre a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, veio ele dizer que se deve conhecer do recurso por si interposto.
2. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. A questão prévia:
3.1. Entende o Ministério Público que a única questão de inconstitucionalidade normativa que o recorrente suscitou nas alegações para o Supremo Tribunal de Justiça foi a dos artigos 432º, c), 433º e 410º, nº 2, do Código de Processo; e que, por isso, só dela deve o Tribunal conhecer.
Quanto às demais normas - disse -, o recorrente não suscitou a sua inconstitucionalidade durante o processo, podendo fazê-lo. Ao que acresce que o acórdão recorrido não aplicou o artigo 129º, nº 1, do Código de Processo Penal, com a interpretação julgada inconstitucional por este Tribunal.
3.2. Segundo o recorrente, este Tribunal não pode deixar de conhecer das questões de inconstitucionalidade que constituem objecto do recurso 'com fundamento em que não foram formalmente invocadas'. A isto acresce - diz - que ele 'equipara a situação dos autos à versada no acórdão' nº 213/94; que foi
'apanhado de surpresa' com o facto de o Supremo Tribunal de Justiça ter entendido que as provas por si questionadas 'não serviram de suporte efectivo à decisão proferida sobre a matéria de facto'; e que a interpretação feita pelo Supremo Tribunal de Justiça dos artigos 23º e 24º, alínea j), do Decreto-Lei nº
15/93 foi imprevista, pois os seus familiares foram 'absolvidos de agirem em bando' consigo no crime de branqueamento e o acórdão recorrido continuou a puni-lo 'como se continuasse a agir com os familiares em bando'.
3.3. Vejamos, então:
3.3.1. Quanto ao artigo 129º, nº 1, do Código de Processo Penal:
Na motivação do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, disse o recorrente: 'Foram valoradas informações de fls. 738-739 sobre o que 'se ouviu dizer' sem identificar e sem serem confirmadas as mesmas' (conclusão 14). Acrescentou: 'Ao utilizar estes meios de prova violou o tribunal artigos [...]
129º [...] CPP e 32º da CRP' (conclusão 15).
Disse ainda: 'Foram também utilizados como meios de prova certidões de inquérito alheios, por conterem declarações e depoimentos escritos'
(conclusão 16). 'Alguns dos depoimentos referem-se a pessoas que não foram arroladas nem ouvidas nos presentes autos e outras declarações referem-se a arguidos' (conclusão 17).
Há-de convir-se que, considerar violado o artigo 129º, nº 1, não é um modo processualmente adequado de suscitar a inconstitucionalidade de tal norma.
Tendo o recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, sempre essa suscitação se tornava necessária para que o tribunal pudesse conhecer do recurso, na parte em que ele tem por objecto a norma em causa. Tal não se verificando, procede nesta parte, a questão prévia suscitada pelo Ministério Público.
Ainda, porém, que o recurso tivesse sido interposto ao abrigo da alínea g) do nº 1 do mencionado artigo 70º, continuava a não poder conhecer-se do recurso, uma vez que o acórdão recorrido não aplicou o dito artigo 129º, nº
1, com o sentido que o acórdão nº 213/94 deste Tribunal julgou inconstitucional
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27, pp.571, ss.).
De facto, neste aresto (o acórdão nº 213/94), julgou-se inconstitucional a norma do mencionado artigo 129º, nº 1, 'enquanto interpretada pelo acórdão recorrido no sentido de admitir que possa servir como meio de prova o depoimento que resultar do que se ouviu dizer a pessoa determinada quando a inquirição desta pessoa não for possível por impossibilidade de ser encontrada, mesmo que esta pessoa seja um co-arguido e o depoente seja um agente de polícia judiciária que com ela contactou quando, na situação de detida, aguardava o primeiro interrogatório judicial' (p.593).
Ora, o acórdão recorrido entendeu que os depoimentos, cuja licitude o recorrente questionava, não serviram de fundamento à decisão da 1ª instância. Ao invés, disse que nada permite inculcar que 'os depoimentos, declarações reduzidas a escrito, informações de serviço e relatos de diligências externas feitas pelos senhores agentes policiais' tenham tido qualquer relevo.
3.3.2. Quanto ao artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal:
Na dita motivação de recurso, o recorrente disse, a este propósito
(conclusão 4), que, 'no acórdão não se vislumbra fundamentação dos factos não provados, omissão que constitui nulidade [...], pelo que o acórdão deve ser anulado - artigos [...] 374º, nº 2, [...] do CPP']. E acrescentou: 'Na enumeração dos factos dados como provados e não provados, omitiu o Tribunal matéria alegada pela defesa [...] com interesse para influir na decisão da causa, pelo que foi violado o disposto nos artigos 32º, nºs 1 e 5, da CRP [...] e 374º, nº 2, do CPP' (conclusão 5).
Como se vê, também este artigo 374º, nº 2, o recorrente considerou ter sido violado, e não que seja inconstitucional.
Não tendo sido suscitada a inconstitucionalidade de tal norma, não pode o Tribunal conhecer do recurso, na parte em que esta a tem por objecto.
Procede, assim, também, nessa parte, a questão prévia suscitada.
3.3.3. Quanto ao artigo 1º, nº 1, do Código de Processo Penal:
Diz o recorrente, na aludida motivação do recurso, que 'o acórdão recorrido deu como provados determinados factos que nem sequer constam da acusação ou da pronúncia e com os quais o arguido não foi confrontado, impedido pois de exercer o contraditório' (conclusão 6). E acrescenta: 'porque vertidos no acórdão tiveram interesse para a decisão, e por tal para a condenação do arguido em termos de agravação da moldura penal' (conclusão 7). 'Não se verificando a ressalva do artigo 359º, nº 2, do CPP, ocorreu - disse - uma alteração substancial dos factos descritos na pronúncia, ao tomar-se em conta no acórdão recorrido aquela factualidade, artigo 359º, nº 1, CPP, pelo que está ferido de nulidade o acórdão ora recorrido'.
Como se vê, o recorrente não faz nenhuma referência à inconstitucionalidade de uma qualquer interpretação da alínea f) do nº 1 do artigo 1º do Código de Processo Penal, que nem sequer refere. Quando muito, ao acusar de nulo o acórdão, o que ele pretende dizer é que, no caso, não se observou o que a lei prescreve para o caso da alteração substancial dos factos.
Ora, no recurso da alínea b), é necessário que o recorrente suscite, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma que pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.
Por isso, o Tribunal não pode conhecer dele, enquanto tem tal norma por objecto, procedendo, assim, nessa parte, a questão prévia suscitada.
Registe-se ainda, que carece de sentido a invocação dos acórdãos nºs
279/95 e 445/97 deste Tribunal, feita pelo recorrente na alegação apresentada neste Tribunal (cf. conclusão 7); cf. também o requerimento de interposição do recurso).
De facto, de um lado, o recurso não vem interposto ao abrigo da alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, mas sim ao abrigo da sua alínea b). E, de outro, a situação que ele diz verificar-se no caso (dar o acórdão recorrido como provados factos que não constam da acusação ou da pronúncia) não se reconduz à interpretação do artigo 1º, nº 1, alínea f), do Código de Processo Penal, conjugado com outros preceitos do mesmo Código, que o acórdão nº 279/95 julgou inconstitucional e que o acórdão nº 445/97 veio a declarar inconstitucional, com força obrigatória geral.
Na verdade, no acórdão nº 279/95 (publicado no Diário da República, II série, de 28 de Julho de 1995), decidiu-se: Julgar inconstitucional - por violação do princípio constante do artigo 32º, nº
1 da Constituição - o disposto no artigo 1º, alínea f), do Código de Processo Penal, conjugado com os artigos 120º, 284º, nº 1, 303º, nº 3, 309º, nº 2, 359º, nºs 1 e 2 e 379º, al. b), e interpretado nos termos constantes do Assento 2/93, como não constituindo alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), mas tão-só na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídico-penal dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que o arguido seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa.
E, no acórdão nº 445/97 (publicado no Diário da República, I-A série, de 5 de Agosto de 1997) o Tribunal 'declara inconstitucional, com força obrigatória geral - por violação do princípio constante do nº 1 do artigo 32º da Constituição -, a norma ínsita na alínea f) do nº 1 do artº 1º do Código de Processo Penal, em conjugação com os artigos 120º, 284º, nº 1, 303º, nº 3, 309º, nº 2, 359º, nºs 1 e 2 e 379º, alínea b), do mesmo Código, quando interpretada, nos termos constantes do acórdão lavrado pelo Supremo Tribunal de Justiça em 27 de Janeiro de 1993 e publicado, sob a designação de «Assento nº 2/93», na 1ª Série-A do Diário da República de 10 de Março de 1993 - aresto esse entretanto revogado pelo Acórdão nº 279/95 do Tribunal Constitucional -, no sentido de não constituir alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica, mas tão-somente na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídica dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que este seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa'.
3.3.4. Quanto aos artigos 21º, nº 1, 23º, nº 1 e 24º, alíneas b), c) e j), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro:
Na motivação que tem vindo a ser referida, o recorrente disse, quanto a estes preceitos, o seguinte: 'houve errada interpretação da norma contida na alínea j) do artigo 24º do DL nº 15/93' (conclusão 23.); 'o tribunal
[...] fez errada interpretação das alíneas b) e a) do diploma acima citado'
(conclusão 25.); 'foi violado o princípio 'non bis in idem', porquanto ao arguido foi aplicada a dupla agravação da al. j) do artigo 24º quanto à punição referente ao artigo 21º e à punição do artigo 23º, punindo duas vezes pelo mesmo tipo de crime' (conclusão 26.); 'não milita quanto ao recorrente a agravante da al. c) do artigo 24º do DL nº 15/93' (conclusão 29.).
Como se vê, o recorrente não suscitou a inconstitucionalidade destes normativos ou de determinada interpretação que deles foi feita. E tal não se ficou a dever ao facto de ter sido surpreendido com a interpretação que o acórdão recorrido fez desses normativos, pois o que, justamente, ele discutiu foi a questão da interpretação.
Não se verifica, por isso, o pressuposto da suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo.
Por isso, o Tribunal não pode conhecer do recurso, na parte em que tem tais normativos por objecto.
Procede, assim, nesta parte, a questão prévia suscitada.
4. O Objecto do recurso.
O objecto do recurso é, pois, apenas constituído pela questão de constitucionalidade dos artigos 410º, nº 2, e 433º do Código de Processo Penal, pois o recorrente suscitou a sua inconstitucionalidade na motivação do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (cf. conclusão 1.) e este, não obstante essa alegação, aplicou tais normas no julgamento.
É, assim, a questão da legitimidade constitucional das normas que regulam a revista alargada ou ampliada que, aqui, está, uma vez mais, em causa.
5. A questão da constitucionalidade:
As garantias de defesa que o nº 1 do artigo 32º da Constituição assegura no processo criminal ao arguido incluem, em princípio, o direito ao recurso quer da declaração de culpabilidade quer da condenação na pena, e quer quanto à matéria de direito quer quanto à matéria de facto. É certo que, de acordo com a jurisprudência deste Tribunal (nomeadamente no Acórdão nº 401/91, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 20 pp. 153 ss., especialmente 164) garantia do recurso quanto à matéria de facto não implica a repetição da prova em audiência pública perante o tribunal de recurso, porque militam em sentido contrário interesses constitucionalmente protegidos e outros princípios constitucionais, como sejam o próprio interesse na prossecução penal e o princípio da verdade material. Cabe ao legislador definir em pormenor os limites do direito ao recurso, mas não pode restringir tal direito para lá do que é racionalmente necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (nº 2 do artigo 18º da Constituição). Ora não se vê necessidade racional da restrição, expressa no corpo do nº 2 do artigo 410º,
'desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum'.
Note-se que o Supremo Tribunal de Justiça como tribunal de recurso tem presentes os autos e não apenas a decisão recorrida (artigo 406º do Código de Processo Penal). Para julgamento de nulidades que tenham sido invocadas como fundamento do recurso, nos termos do nº 3 do mesmo artigo 410º, terá o Supremo, em muitos casos, que examinar os autos. Isto mesmo foi reconhecido no Acórdão nº
322/93 (Acórdãos cit, 25, pp.375 ss. a p.390), para concluir que no caso paradigmático de não consideração na decisão de escritura pública, de que se juntara certidão aos autos, e que, por hipótese, comprovasse um facto em contradição com os dados no acórdão por provados, teria havido erro notório na apreciação da prova. Só que esta conclusão não é cogente, porque se tem que fazer depender de tal escritura ser invocada na contestação. Do artigo 374º, nº
1, alínea d) e nº 2 conjugado com o artigo 379º, alínea a), só resulta que a sentença é nula se não contiver um 'sumário', feito pelo tribunal que a proferiu, das conclusões da contestação. Pode, pois, a escritura dos autos não ter sido referida na contestação, ou, tendo-o sido, não ter sido referida no sumário das conclusões da mesma feito na decisão recorrida. Em ambos os casos a não consideração da escritura não resultaria do texto da decisão recorrida, pelo que não relevaria para o erro notório na apreciação da prova, nem implicaria falta das menções referidas na alínea a) do artigo 379º, pelo que não fundamentaria a nulidade prevista nessa alínea.
De qualquer modo, sempre o exame dos autos será indispensável para saber se houve condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia (alínea b) do artigo 479º).
Não se vê por que razão qualquer erro detectável na apreciação da prova através do exame dos autos não haja de poder ser fundamento de recurso, como, aliás, o era no regime do Código de Processo Penal de 1929 (artigo 665º). Não é apenas a garantia dos direitos de defesa do arguido que o exige. No mesmo sentido vão aqui o princípio da verdade material e o interesse da prossecução penal. A maior simplicidade ou celeridade da decisão do recurso não são decerto interesses comparáveis.
No mesmo sentido pode invocar-se o regime da modificabilidade da decisão de facto em processo civil, (artigo 712º do Código de Processe Civil). No processo civil a decisão do tribunal de primeira instância sobre matéria de facto pode ser alterada em termos mais amplos que os do Código de Processo Penal e, nomeadamente, sem a restrição de o vício do julgamento sobre o facto resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Não que haja um mandamento constitucional de coerência entre o processo penal e o processo civil. O que há é uma proibição constitucional de restringir o direito ao recurso sobre matéria de facto, que é uma das garantias de defesa do arguido asseguradas pelo nº 1 do artigo 32º da Constituição, para lá do que é racionalmente necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (nº 2 do artigo 18º da Constituição). Ora a circunstância de uma tal restrição não ser considerada necessária em processo civil é certamente um argumento válido para demonstrar a sua desnecessidade em processo penal, se não se encontrarem razões específicas do processo penal para a existência da restrição.
Deve, em consequência, rever-se a jurisprudência anterior deste Tribunal sobre o ponto em crise, firmada por maioria no Acórdão 322/93 e nos que seguiram na sua esteira (Acórdãos nºs 443/93, 359/93, 141/94, 170/94, 171/94,
172/94, 287/94, 399/94, 504/94, 635/94, 55/95 e 177/96). III DECISÃO
Nestes termos, decide-se : a) Julgar inconstitucionais, por violação do artigo 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, as normas resultantes da conjugação do artigo 433º do Código de Processo Penal com o corpo do nº 2 do artigo 410º do mesmo código, na medida em que limitam os fundamentos do recurso a que 'o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum'. b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso, devendo o acórdão recorrido ser reformado em conformidade com o julgamento sobre a questão de constitucionalidade. Lisboa, 2 de Julho de 1998 José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Beleza Messias Bento (vencido, nos termos da declaração de voto junta) Alberto Tavares da Costa (vencido, nos termos da declaração de voto junta) Luís Nunes de Almeida Declaração de Voto
São incontáveis as vezes que este Tribunal teve que apreciar a constitucionalidade das normas dos artigos 410º, nº 2, e 433º do Código de Processo Penal, e sempre ele concluiu, embora com vozes discordantes, pela sua compatibilidade com a Lei Fundamental. Fê-lo, primeiro, no acórdão nº 322/93
(publicado no Diário da República, II série, de 29 de Outubro de 1993), e, depois, em muitos outros que seguiram na sua esteira, designadamente nos acórdãos nºs 356/93, 443/93, 141/94, 170/94, 171/94, 172/94, 287/94, 399/94,
504/94, 635/94, 55/95 e 177/96.
Continuo a não ver razões para alterar tal jurisprudência.
Por isso concluí pela não inconstitucionalidade dos mencionados normativos - e, justamente, pelos fundamentos daqueles arestos, em especial do acórdão nº 322/93, para os quais, agora me remeto. Lisboa, 2 de Julho de 1998 Messias Bento DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido, de harmonia com a jurisprudência que, reiterada se bem que só maioritariamente, até à data, o Tribunal Constitucional tem lavrado, como, exemplificativamente, o demonstram os acórdãos nºs. 399/94, 358/95 e
705/97, entre os que se mantêm por publicar, ou os nºs. 322/93, 170/94, 171/94 e
1164/96, entre os publicados (no Diário da República, II Série, de 29 de Outubro de 1993, 6 e 19 de Julho de 1994 e 14 de Março de 1997, respectivamente).
Diferentemente do regime do Código de Processo Penal de 1929, à luz do actual e sem prejuízo de se reconhecer a delicadeza dos limites
(particularmente no concreto caso), considero que o sistema ainda vigente revela-se idóneo para funcionar como adequada 'válvula de segurança' no controlo de reapreciação de todo o processo silogístico em que a decisão se baseia, seja através dos dados constantes do processo, de pertinência assumida pela peça acusatória, seja mediante a fiabilidade das regras ou máximas de experiência que o julgador, na sequência natural da sua formação profissional como intérprete-aplicador, tomará em consideração, nos limites da sua irredutível margem de apreciação. Como se observou no citado acórdão nº 171/94 (para onde igualmente se remete no tocante à diferenciada perspectiva ontológica dos regimes dos Códigos de 1929 e 1987) esta intervenção é muito mais relevante do que, à primeira vista, poderia entender-se: 'o juiz utiliza para a fixação dos factos e, bem assim, para a aplicação da lei aos factos fixados, os juízos que foi obtendo através da geral experiência da vida ou das regras da ciência, arte ou técnica por si adquiridas, o que se compatibiliza com o âmbito do recurso de revista alargada em causa'. Alberto Tavares da Costa