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Proc. nº 21/95
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I Relatório
1. A. intentou no Tribunal do Trabalho de Portalegre uma acção, emergente de contrato individual de trabalho, com a forma sumária, contra B., pedindo a condenação desta no montante de 14.791.209$00, correspondente ao pagamento de horas extraordinárias que a autora teria prestado ao serviço da ré no período de 1 de Maio de 1976 a 12 de Setembro de 1991.
A autora alegou a inconstitucionalidade das normas constantes do Acordo Colectivo de Trabalho de 1976 (Boletim do Ministério do Trabalho nº 15 de 1976) que lhe impuseram o horário de trabalho de 24 horas (mantido em vigor pelos Acordos Colectivos de Trabalho e Acordos de Empresa posteriores), por violação do disposto no artigo 59º da Constituição.
Por sentença de 17 de Novembro de 1992 a acção foi julgada improcedente, tendo sido a ré, em consequência, absolvida do pedido.
2. Desta sentença interpôs a autora recurso para o Tribunal da Relação, tendo nas respectivas alegações, concluído, no que respeita à questão de constitucionalidade, do seguinte modo:
'(...)
5ª - As cláusulas dos ACTs que impuseram à recorrente períodos de trabalho semanal superiores a 48 horas e 44 horas (recentemente) são ilegais, porque contra legem; e são inconstitucionais, formal e organicamente, porque promanam de um órgão sem poderes regulamentares.
6ª - Tais cláusulas são ainda inconstitucionais porque ao fixarem períodos de trabalho diário que chegou a atingir as 24 horas do dia ofendem os princípios contidos nos artigos da CRP seguintes (versão inicial):
Art. 13º, nº 2. A recorrente foi prejudicada pois prestando serviço
12 e 24 horas/dia auferiu exactamente o mesmo salário que as guardas que trabalharam apenas 9 horas/dia.
Art. 53º, a) e d). Porque para trabalho diferente
(quantitativamente) deveria ter correspondido retribuição diferente. E porque tendo de manter-se no seu posto de trabalho 24 horas/dia infringiu-se o limite de jornada de trabalho que passou a não ter limite; e isso retirou à recorrente o gozo dos seus lazeres e a possibilidade da sua realização pessoal.
Art. 54º, b). Pois a fixação do horário nacional de trabalho é da exclusiva competência do Governo.
7ª - Inconstitucionais são ainda o Art. 6º, nº 2, do D.L.
409/71 e Art. 14º do Dec. 381/72 na parte em que remetem para as convenções colectivas de trabalho competência para fixar períodos de trabalho superiores aos legalmente fixados.
Pela invocada razão é ainda inconstitucional parte do Art.
13º do Dec. 381/72.
Por acórdão de 19 de Outubro de 1993 foi negado provimento ao recurso, tendo-se confirmado, em consequência, a sentença recorrida.
3. Deste acórdão recorreu a autora para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo concluído as suas alegações, no que concerne às inconstitucionalidades normativas suscitadas, da seguinte maneira:
'(...)
11ª - As Cláusulas dos ACTs e AEs que estabeleceram horários de trabalho das guardas de PN de duração diária de 12 horas, superior a 12 horas e permanente são pois ilegais e inconstitucionais.
Ilegais porque:
- Ofendem o princípio da hierarquia das leis (Art. 13º do D.L. 49.408);
- Foram ditadas por um órgão destituído do poder regulamentar visto que o órgão competente para estabelecer horários de trabalho para o sector ferroviário era o Governo através do Ministro das Corporações e Previdência Social e Ministro competente (Art. 1º nº 1 do D.L. 409/71);
- Criam uma situação mais gravosa para certos trabalhadores do que os valores estabelecidos pela lei.
- Aumentam os valores diários e semanais da jornada de trabalho quando o legislador já tinha recomendado a redução de tais valores.
E são inconstitucionais porque:
- Só o Governo podia introduzir adaptações ao D.L. 409/71
(inconstitucionalidade orgânica);
- E só podiam ser feitas essas adaptações por meio de decreto regulamentar e não por instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho
(inconstitucionalidade formal);
- Criam para a recorrente uma situação de discriminação pois auferindo a recorrente o mesmo salário que uma guarda do tipo A, mas tendo de prestar serviço numa jornada de trabalho sem limites, é discriminada;
- Uma jornada de trabalho de 24 horas/dia é ma jornada de trabalho sem limite;
- Com tal horário de trabalho e impedida de se ausentar do local de trabalho ou das suas imediações não lhe foi permitida a sua realização pessoal e familiar.
(...)'
Por acórdão de 16 de Novembro de 1994 decidiu-se 'negar a revista'.
4. Deste acórdão (de 16 de Novembro de 1994) o Ministério Público interpôs, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b) e 72º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, recurso para o Tribunal Constitucional para apreciação da conformidade à Constituição da norma constante da cláusula 80ª, nº 2, alínea c) do Acordo Colectivo de Trabalho celebrado entre a B., e os sindicatos representativos do pessoal ao seu serviço (publicado no B.T.E. nº 22, de 15 de Julho de 1975); da norma constante da cláusula 83ª, nº 2, alínea c), do Acordo Colectivo de Trabalho celebrado entre as mesmas entidades (publicado no B.T.E. nº 15, de 15 de Agosto de 1976); da norma contida na cláusula 86ª, nº 2, alínea c), do Acordo Colectivo de Trabalho celebrado entre as mesmas entidades
(publicado no B.T.E. nº 15, de 22 de Abril de 1978); e da norma contida na cláusula 89ª, nº 2, alínea c), do Acordo de Empresa Colectivo (publicado no B.T.E. nº 3, de 22 de Janeiro de 1981).
A. recorreu para o Tribunal Constitucional do mesmo acórdão
(de 16 de Novembro de 1994), ao abrigo das alínea b) [por lapso a recorrente referiu a alínea h)] e f) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 6º do Decreto-Lei nº 409/71, de 9 de Outubro; e para apreciação da legalidade e da constitucionalidade das normas contidas no artigo 13º do Decreto-Lei nº 381/72, de 9 de Outubro, nas cláusulas 83ª e 86ª do Acordo Colectivo de Trabalho de 1978 e na cláusula 89ª do Acordo de Empresa de 1981.
Junto deste Tribunal a recorrente concluiu as suas alegações pugnando pela inconstitucionalidade e ilegalidade das referidas normas. Fê-lo do seguinte modo:
A - SOBRE A INCONSTITUCIONALIDADE
1ª - As cláusulas dos ACTs que acima se indicaram constituem verdadeiros 'regulamentos delegados' ou mesmo 'autónomos'. E foram criadas à sombra do disposto no Art. 6º, nº 2 b) do DL 409/71, de 27 de Novembro e do Art.
13º do Dec. 381/79, de 9 de Outubro.
2ª - Segundo os arts. 201º e 202º da CRP (respectivamente versão de 1976 e 1982) compete exclusivamente ao Governo, no exercício das funções administrativas, fazer os regulamentos necessários à boa execução das leis.
3ª - Por outro lado, impõe o art. 114º da CRP de 1976 que nenhum órgão de soberania, de região autónoma ou de poder local pode delegar os seus poderes noutros órgãos, a não ser nos casos expressamente previstos não só na Constituição mas também na lei (cumulativamente).
4ª - Por sua vez, o art. 115º, nº 5 da CRP (revisão de 1982) veio proibir os regulamentos delegados ao impôr que nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos. Isto significa a inadmissibilidade, no direito constitucional português vigente de 'regulamentos delegados' ou
'autónomos', em qualquer das suas manifestações típicas.
5ª - O art. 6º, nº 2 b) do DL 409/71 e os arts. 13º e 14º do Dec. 391/72 são pois inconstitucionais por ofensa dos arts. 201º (1976), 202º
(1982), 114º e 115º da CRP.
6ª - E inconstitucionais são ainda as cláusulas 83ª, 84ª e
89ª dos ACTs de 1976 e 1981, porque criados à sombra de normas inconstitucionais e ainda porque, de forma indirecta, ofendem os preceitos constitucionais referidos na conclusão que antecede (5ª).
7ª - Tais cláusulas são ainda inconstitucionais (orgânica, formal e materialmente) porque as alterações a introduzir nas normas do DL
409/71, relativamente às empresas públicas e concessionárias de serviços públicos, só podiam ser feitas pelo Governo, por meio de decreto regulamentar e não por outra via.
Assim o impõe o art. 10º, nº 2, do DL 409/71.
8ª - E são ainda inconstitucionais ao imporem horários de trabalho diários de 12 horas - superior a 12 horas, e 'permanente' pois a recorrente ao ser-lhe negada a possibilidade de se ausentar do seu posto de trabalho ou das suas proximidades tais normas convencionais violaram o art. 53º b) e d) da CRP por imporem uma jornada de trabalho sem limite e por impedirem a trabalhadora da sua realização pessoal, familiar e social.
9ª - E ofendem ainda o art. 54º b) da CRP porque a fixação do horário nacional de trabalho é da exclusiva competência do Governo.
10ª - E considerando que o salário mensal das guardas de PN é igual para todas, como resulta dos vários ACTs, independentemente de trabalharem
9-12 ou mais de 12 horas/dia, a recorrente tendo prestado mais de 9 horas/dia e recebendo o mesmo salário, foi descriminada e prejudicada.
Tais cláusulas são pois inconstitucionais por ofenderem os princípios contidos no art. 13º da CRP.
B - SOBRE A ILEGALIDADE
11ª - Para além de inconstitucionais, o art. 6º, nº 2 b) do DL 409/72 e os arts. 13º e 14º do Dec. 391/72 são ainda ilegais - contra legem - porque ofendem o disposto no art. 10º, nº 2 do DL 409/72 que impõem que as alterações a introduzir no mesmo sejam feitas por uma única via - o decreto regulamentar e não por actos de outra natureza; pelo Governo e não por outros
órgãos diferentes.
12ª - Ilegais são ainda as ditas cláusulas porque ofendem os princípios contidos nas seguintes disposições legais:
a) art. 13º da LCT - DL 49.408, de 21.11.69;
b) art. 4º c) do DL 164-A/76, de 28 de Fevereiro;
c) art. 6º, nº 1 c) do DL 519-C1/79, de 29 de Dezembro, os quais proibem os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho de incluirem quaisquer disposições que importem para os trabalhadores tratamento menos favorável do que o estabelecido por lei.
E um horário de trabalho de 12, superior a 12 ou permanente é menos favorável do que o estabelecido no DL 409/71 e Dec. 381/72 (48 horas/semana e 8 ou 9 horas/dia).
(...)'
A recorrida, por sua vez, contra-alegou, discordando do que a recorrente havia sustentado. Concluiu, então, da seguinte maneira:
'1. A actividade das guardas de passagem de nível deverá ser sobretudo moldada, como refere a cláusula 89ª do ACT de 1981, pelo 'movimento das passagens de nível quanto a peões, veículos e composições ferroviárias'.
2. Trata-se, assim, de uma prestação de trabalho marcadamente intermitente, processando-se ao longo da jornada de forma descontínua em função das efectivas necessidades do tráfego ferroviário, alternando o período de trabalho efectivo com períodos de não trabalho ou inactivos.
3. O esquema de trabalho das guardas de passagem de nível não põe, assim, em causa, o direito ao lazer e ao repouso, nem conduz a qualquer tipo de discriminação, antes se apresentando perfeitamente compatível com o sentido dos artigos 59º e 13º da Constituição da República Portuguesa.
4. O artigo 6º, nº 2, alínea b) do Decreto-Lei nº 409/71, de
27 de Setembro, prevê que, nas hipóteses de trabalho marcadamente intermitente, os limites máximos dos períodos normais de trabalho legalmente fixados possam ser ultrapassados por decreto regulamentar ou instrumentos de regulamentação colectiva.
5. Ao remeter para 'as excepções e adaptações constantes das convenções colectivas de trabalho', o artigo 13º do Decreto-Lei nº 381/72, de 9 de Outubro, limita-se a reproduzir a doutrina da lei geral aplicável, que remete, ela própria, para a contratação colectiva, a duração dos períodos normais de trabalho às situações em que um acréscimo, relativamente aos máximos legais, é permitido, como no caso da intermitência.
6. Semelhante raciocínio vale para o artigo 14º do Decreto nº
381/82.
7. Este tipo de reenvios normativos - regulamentos delegados ou autorizados - só vieram a ser postergados da ordem jurídica portuguesa na sequência do artigo 115º, nº 5 da Constituição, introduzido pela Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro.
8. A inconstitucionalidade superveniente não afecta na sua consistência jurídica os actos anteriormente publicados ao abrigo da norma inconstitucional.
9. Da mesma forma, o princípio do congelamento do grau hierárquico só foi introduzido com a primeira revisão da Constituição, valendo, neste particular, as razões anteriormente apontadas a propósito da inconstitucionalidade superveniente.
10. O reenvio para as convenções colectivas, para além de não infringir qualquer reserva da lei já que essa não existe no domínio em apreço, coadunou-se, já nessa altura, com os princípios da autonomia dos organismos sindicais a que se referem os artigos 55º e 56º da Constituição.
11. Não se verifica, assim, qualquer inconstitucionalidade do artigo 6º, nº 2, alínea b), do Decreto-Lei nº 409/71, dos artigos 13º e 14º do Decreto nº 381/72, e das e das cláusulas 83ª, 86ª e 89ª dos ACTs de 1976, 1978 e
1981, respectivamente.
12. Entre o artigo 1º, nº 2 e o artigo, nº 2, alínea b) do Decreto-Lei nº 409/71, não se verifica qualquer colisão: o primeiro visa a possibilidade de adaptação do diploma às empresas concessionárias de serviço público e às empresas públicas e o outro prevê a possibilidade geral de os limites dos períodos normais de trabalho serem ultrapassados em casos de trabalho acentuadamente intermitente.
13. Quanto ao artigo 13º do Decreto nº 381/72, sendo, como é, legal o reenvio a que procede para a contratação colectiva, de nenhuma ilegalidade padece, o mesmo valendo para o artigo 14º do mesmo diploma.
14. As cláusulas supra referidas dos ACTs têm perfeito suporte na lei - artigos 13º da LCT - não aduzindo os artigos 4º, alínea c) do Decreto-Lei nº 164-A/76 e 6º, nº 1, alínea c) do Decreto-Lei nº 518-C/79, qualquer argumento que possa ser utilizado pela recorrente.'
Por último, o Ministério Público, sustentando a inconstitucionalidade das normas indicadas, concluiu assim as suas alegações:
'1º - Os preceitos inseridos em acordos colectivos de trabalho são normas para efeitos da fiscalização concreta da respectiva constitucionalidade.
2º - O Ministério Público, mesmo que não tenha intervenção principal na causa, tem legitimidade para interpor o recurso a que alude a alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, sempre que haja suscitado durante o processo a inconstitucionalidade da norma aplicada pelo tribunal como suporte da decisão recorrida, como fiscal da legalidade e defensor do interesse público, com fundamento na alínea m) do nº 1 do artigo 3º da Lei Orgânica do Ministério Público (Lei nº 47/86, de 15 de Outubro, com as alterações decorrentes da Lei nº 23/92, de 20 de Agosto).
3º - As cláusulas dos acordos colectivos de trabalho objecto do presente recurso, ao permitirem o estabelecimento, para certos trabalhadores, de uma jornada de trabalho efectiva ou potencialmente permanente - sem estabelecerem um limite máximo para a sua duração - ofendem o disposto nas alíneas b) e d) do nº 1 do artigo 59º da Lei Fundamental.'
5. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
A Legitimidade do Ministério Público
6. Importa determinar previamente se o Ministério Público tem legitimidade para interpor o presente recurso de constitucionalidade, já que não figura como parte principal neste processo .
O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre tal questão, tendo então decidido pela ilegitimidade do Ministério Público para a interposição do recurso de constitucionalidade quando este não intervém como parte principal no processo (Acórdãos nºs 636/94 e 171/95, D.R., II Série, de 13 de Janeiro de 1995 e de 9 de Junho de 1995, respectivamente).
No citado Acórdão nº 636/94, pode ler-se o seguinte passo:
'Ora, no presente caso, o Ministério Público, ao suscitar a questão de inconstitucionalidade - o que fez nos autos de recurso, interposto pelo C. para o Supremo Tribunal de Justiça - não o fez como representante de qualquer das partes do processo.
Partes do processo são, com efeito, o autor e o réu
(respectivamente, recorrido e recorrente perante o Supremo Tribunal de Justiça).
A intervenção do Ministério Público foi, por conseguinte, uma intervenção acessória, como bem decorre do que se dispõe no artigo 10º do Código de Processo do Trabalho, conjugado com o artigo 8º, alínea b), do mesmo Código, combinados ambos com o artigo 5º, nº 1, alínea d), da Lei Orgânica do Ministério Público (Lei nº 47/86, de 5 de Outubro).
Não tendo o Ministério Publico tido intervenção principal no processo, pois que não era parte nele, e tratando-se de um recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional
(isto é, de um recurso de uma decisão que aplicou norma arguida de inconstitucional), não tem ele legitimidade para recorrer para este Tribunal.
No caso de recurso de 'aplicação' duma norma [...], a legitimidade restringe-se compreensivelmente à parte que suscitou a questão de inconstitucionalidade' - escreve J. M. CARDOSO DA COSTA (A Jurisprudência Constitucional em Portugal, 2ª edição, Coimbra, 1992, página 52).
Por isso, nesta espécie de recurso - como escrevem J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, página 1021) -, 'o Ministério Público não tem legitimidade específica para recorrer, salvo quando seja parte e tenha sido ele a arguir a inconstitucionalidade'.
É esta uma solução que bem se compreende.
De facto, a legitimidade para interpor recurso para o Tribunal Constitucional identifica-se, em primeira linha, com a legitimidade para recorrer nos termos gerais [cf. artigo 72º, nº 1, alínea b), já atrás citado]. Pertence, por isso, à parte vencida no processo, ou seja, à parte a quem a decisão foi desfavorável - parte que, por isso, tem interesse em fazê-la revogar ou reformar.
O Ministério Público tem, pois, legitimidade para recorrer para o Tribunal Constitucional, se, no processo, representar uma parte que aí tenha ficado vencida.
Mas, mesmo não representando parte vencida no processo, o Ministério Público, nalguns casos, pode (melhor: deve) recorrer para o Tribunal Constitucional: é o que sucede quando uma decisão judicial recusa aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, a uma norma constante de convenção internacional, acto legislativo ou decreto regulamentar; e, bem assim, quando aplica norma já antes julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional ou pela Comissão Constitucional (cf. o nº 2 do artigo 72º da Lei do Tribunal Constitucional).
Nos dois casos por último apontados, em que o Ministério Público pode recorrer para o Tribunal Constitucional mesmo não sendo parte no processo, a legitimidade para recorrer assenta no facto de ele agir no recurso em defesa de um interesse público objectivo (o interesse da constitucionalidade)
- que é o que não sucede com as partes, que actuam sempre para defender os seus direitos e interesses, ou seja, um interesse subjectivo. E a isto acresce que, estando em causa uma decisão que aplique norma já antes julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, a obrigatoriedade do recurso para o Ministério Público arranca da ideia de garantir o primado da competência deste Tribunal em questões de constitucionalidade - primado que a Constituição consagra (cf. artigos 207º, 211º, nº 1, 212º, nº 1, 223º e 280º da Constituição).
No tocante às decisões que apliquem normas arguidas de inconstitucionais durante o processo, que antes este Tribunal nunca julgou incompatíveis com a Constituição, não se verifica nenhuma das razões capazes de obrigar à intervenção do Tribunal.'
7. Reitera-se a argumentação agora transcrita, pelo que se impõe a conclusão de que o Ministério Público carecia de legitimidade para interpor o recurso de constitucionalidade.
Na verdade, a tese de que o Ministério Público possuirá, no presente processo, legitimidade para interpor o recurso de constitucionalidade assenta numa confusão entre os poderes que lhe são conferidos como assistente e a sua função de fiscalização e defesa da legalidade democrática. Nas suas alegações perante este tribunal o Ministério Público sustenta que os seus poderes excedem os de um 'comum' assistente, precisamente em homenagem à aludida função. Ora, pelo contrário, importa distinguir rigorosamente aqueles dois títulos de intervenção processual.
Como garante da legalidade democrática, o Ministério Público deve, descentralizadamente, interpor recurso de quaisquer decisões judiciais que
'desapliquem' normas com fundamento em inconstitucionalidade ou ilegalidade
[artigos 280º, nºs 1, alínea a), 2, alínea a), e 3, da Constituição e 70º, nº 1, alíneas c), d) e e), e 72º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional] ou que apliquem normas precedentemente julgadas ou declaradas inconstitucionais ou ilegais pelo próprio Tribunal Constitucional [artigos 280º, nº 5, da Constituição e 70º, nºs 1, alíneas g), h) e i), e 72º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional].
No caso vertente, os poderes do Ministério Público confinam-se, efectivamente, aos previstos para o assistente. E, em consequência, fica restringido o objecto do presente recurso ao interposto pela recorrente A..
B Delimitação do objecto do recurso
8. Pretende a recorrente que este Tribunal aprecie a constitucionalidade da norma contida no artigo 6º do Decreto-Lei nº 409/71, de 9 de Outubro; bem como a constitucionalidade e a legalidade das normas constantes dos artigos 13º e 14º do Decreto nº 381/72, de 9 de Outubro (aquela apenas na parte em que ressalva '... as excepções e adaptações constantes da Convenções Colectivas de Trabalho'); das normas contidas nas cláusulas 83ª e 86ª do Acordo Colectivo de Trabalho de 1978; e da norma contida na cláusula 89ª do Acordo de Empresa de 1981.
São várias as questões que importa resolver.
9. A recorrente pretende que este Tribunal aprecie a legalidade das normas constantes dos artigos 13º e 14º do Decreto nº 381/72 e das referidas cláusulas das convenções colectivas indicadas. Porém, no caso sub judicio não se verificam todos os pressupostos necessários ao conhecimento de tal questão de legalidade pelo Tribunal Constitucional.
De facto, para além dos casos, que aqui não estão em causa, de aplicação de 'norma constante de diploma regional' [alínea d)] ou cuja ilegalidade se traduza na 'violação do estatuto de uma região autónoma' [alínea e)] ou na sua contrariedade com uma convenção internacional' [alínea i)], o recurso por ilegalidade, previsto na alínea f) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, só cabe das decisões de outros tribunais que apliquem
'norma constante de acto legislativo', cuja ilegalidade se traduza na 'violação de lei com valor reforçado' [alínea c)].
No recurso da alínea f), conjugado com a alínea c) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional - que é o que interessa nestes autos -, o Tribunal só controla a legalidade reforçada.
Ora, independentemente de o Decreto-Lei nº 409/71 dever ou não merecer o qualificativo de 'lei com valor reforçado' - questão que, neste momento, não interessa sequer considerar -, as normas invocadas não constam de actos legislativos, pois só são tais as leis, os decretos-leis e os decretos legislativos regionais (cf. artigo 115º, nº 1, da Constituição).
Tratando-se de normas constantes de convenções colectivas e de um regulamento - o Decreto nº 381/72 consubstancia um regulamento, não podendo, como resulta do que se disse, ser considerado um acto legislativo [cf., ainda, artigos 115º, nº 6, 202º, alínea c) e 204º, nº 3, da Constituição] -, a sua legalidade não pode ser apreciada por este Tribunal, em virtude de faltar o pressuposto do recurso de legalidade interposto ao abrigo da alínea f) [e, como acontece no presente recurso, c)] do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, isto é, tratar-se de uma questão de legalidade de normas
'constante(s) de acto(s) legislativo(s)'.
Conclui-se, assim, que não pode este Tribunal conhecer o objecto do recurso no que concerne à questão de legalidade das normas invocadas.
10. Estando em causa a apreciação da conformidade à Constituição de normas constantes de convenções colectivas, terá de se tomar em consideração a noção de norma, para efeito de delimitação do objecto do recurso de constitucionalidade. É claro que o nº 4 do artigo 56º da Constituição designa como normas jurídicas as normas constantes de convenções colectivas de trabalho, quando dispõe que 'A lei estabelece as regras respeitantes à legitimidade para a celebração das convenções colectivas de trabalho, bem como à eficácia das respectivas normas'. Assim, a juridicidade de tais normas é indiscutível por estar fundamentada na lei.
Por outro lado, as normas das convenções colectivas de trabalho não só são normas jurídicas, por determinação da lei, como se adequam a um conceito funcional de norma jurídica, para efeitos do controlo de constitucionalidade. Na realidade, regulam os direitos e deveres recíprocos dos trabalhadores e das entidades patronais reconhecidos por contrato individual de trabalho. Deste modo, estas normas têm um objecto especificamente jurídico e, quando estabelecem limites mínimos (condições mais favoráveis aos trabalhadores) até prevalecem sobre as normas estatais, sendo absolutamente imperativas
(artigos 5º e 6º e 14º, nº 1, da Lei da Regulamentação Colectiva de Trabalho).
11. A tudo isto acresce que convenções colectivas e portarias de regulamentação regulam idênticas matérias, o que significa que existe identidade de objecto entre normas estatais e normas convencionais.
Refira-se ainda que, contendo as portarias de extensão
(necessárias por força do princípio da igualdade - artigo 13º da Constituição) normas jurídicas sujeitas ao controlo de constitucionalidade do Tribunal Constitucional, haveria ofensa do princípio da igualdade se as normas das convenções colectivas não estivessem sujeitas aos mesmos critérios de validade, e se os sujeitos por estas abrangidos não tivessem os mesmos direitos e garantias, inclusivamente do ponto de vista da fiscalização concreta da constitucionalidade, que têm os trabalhadores abrangidos pelo regime da convenção colectiva por força da portaria de extensão. Assim, um trabalhador nesta situação poderia interpor recurso de constitucionalidade, ao passo que um outro trabalhador, numa situação absolutamente paritária, não o poderia, apenas por estar directamente abrangido pela convenção colectiva.
12. Por último, importa ter presente que o Código de Processo do Trabalho prevê acções de anulação e interpretação de cláusulas de convenções colectivas de trabalho (artigos 177º e ss.), estatuindo-se que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça sobre tais questões tem ou tinha o valor de assento e como tal é designado (sendo publicado na I Série do Diário da República e no Boletim do Trabalho e Emprego).
Ora, sendo certo que, de acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, os assentos contêm normas susceptíveis de controlo específico da constitucionalidade (cf. Acórdão nº 359/91, D.R., I Série-A, de 15 de Outubro de 1991), seria incorrecto que a norma interpretativa de uma cláusula de convenção colectiva de trabalho fosse uma norma jurídica objecto possível do processo de fiscalização de constitucionalidade, e que a norma que constituía todo o conteúdo da norma interpretativa não o fosse.
13. Conclui-se, assim, que as normas constantes de convenções colectivas de trabalho se devem ter como normas para efeitos do controlo de constitucionalidade cometido a este Tribunal. Assim se entendeu também no Acórdão nº 214/94 (D.R., II Série, de 19 de Julho de 1994), da 1ª Secção, embora exista jurisprudência em sentido contrário da 2ª Secção (cf. Acórdão nº 172/93, de 10 de Fevereiro, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 24).
Ante o exposto, fica o presente recurso circunscrito à apreciação da conformidade à Constituição das normas constantes dos artigos 6º, nº 2, alínea d), do Decreto-Lei nº 409/71, 13º e 14º do Decreto nº 381/72, de 9 de Outubro, e das cláusulas 83ª do Acordo Colectivo de Trabalho de 1976, 86ª do Acordo Colectivo de Trabalho de 1978 e 89ª do Acordo de Empresa de 1981.
C
A questão de constitucionalidade das normas contidas nos artigos 6º, nº 2, do Decreto-Lei nº 409/71 e 13º e 14º do Decreto nº 381/72 e nas cláusulas 83ª do Acordo Colectivo de Trabalho de 1976,
86ª do Acordo Colectivo de Trabalho de 1978 e 89ª do Acordo de Empresa de 1981
14. A questão de constitucionalidade suscitada quanto aos artigos 6º, nº 2, alínea d), do Decreto-Lei nº 409/71 tal como a questão que é suscitada relativamente aos artigos 13º e 14º do Decreto nº 381/72 por violação do artigo 115º, nº 5, da Constituição, está precludida pelo facto de o referido preceito constitucional só ter entrado em vigor em 1982. Na medida em que o artigo 115º, nº 2, só entrou em vigor a partir de 30 de Outubro de 1982, a validade daquelas normas, em face do preceito constitucional nunca poderia ser questionada, pelo facto de as normas constitucionais respeitantes à competência e forma dos actos terem apenas eficácia ex nunc, não afectando os actos praticados antes da sua entrada em vigor (assim se entendeu também no citado Acórdão nº 98/95 deste Tribunal).
15. Todavia, ambas as normas referidas não poderiam sequer afrontar o artigo 115º, nº 5, o artigo 114º, ou até o artigo 202º da Constituição porque o seu conteúdo normativo não confere aos decretos regulamentares ou aos instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho o poder de interpretar ou integrar a sua previsão.
O conteúdo normativo daqueles preceitos legais apenas consiste em prever a possibilidade de as convenções colectivas definirem, nos termos legais, o que seja considerado em concreto trabalho extraordinário
(artigo 14º do Decreto nº 381/72), e em prever a possibilidade de os instrumentos de contratação colectiva ou os decretos regulamentares estabelecerem, na situação descrita no artigo 6º, nº 2, os limites máximos do horário de trabalho.
16. Por outro lado, não se poderá colocar sequer qualquer problema de inconstitucionalidade material das normas em crise, na medida em que elas não determinam nenhum regime concreto de horário de trabalho nem se referem a qualquer critério legal de limitação ou ilimitação dos horários de trabalho. Sendo verdadeiras normas em branco na remissão para outras fontes, o seu conteúdo não pode, por isso mesmo, ser confrontado materialmente com qualquer preceito constitucional. E, para além disso, como já se viu, não valia, antes da entrada em vigor da Constituição, uma exigência de tipicidade das fontes normativas relativamente a tal matéria.
O que se deverá questionar é se é compatível com a Constituição o conteúdo das normas derivadas das cláusulas dos acordos colectivos de trabalho que permitem o estabelecimento de uma jornada de trabalho efectiva ou potencialmente permanente, sem estabelecerem um limite máximo para a sua duração.
Na verdade, a cláusula 83ª do Acordo colectivo de trabalho de
1976 estabeleceu o seguinte:
'2. O número de horas de serviço será o seguinte em função da classificação das passagens de nível:
a) Passagens Nivel Tipo A - 9 horas
b) Passagens Nivel Tipo C - 12 horas
c) Passagens Nivel Tipo P - Permanente
3. Estes horários são considerados sem interrupção, devendo os trabalhadores tomar as refeições nos intervalos que, sem prejuízo para o serviço, mais lhes convierem.'
E os acordos colectivos posteriores apenas se limitaram, no que ao presente juízo de constitucionalidade interessa, a substituir o horário permanente nas passagens de nível tipo P pelo horário 'superior a 12 horas'.
Constituindo objecto do presente recurso a apreciação da conformidade à Constituição das normas dos acordos colectivos que estabeleceram
(inicialmente) um horário de trabalho permanente e, posteriormente, vieram a consagrar um horário de trabalho sem limite superior, coloca-se, claramente, a questão do confronto de todas essas normas com o artigo 59º, nº 1, alínea d), da Constituição.
Ora, estabelece o artigo 59º, nº 1, alínea d), da Constituição que todos os trabalhadores têm direito a um limite máximo da jornada de trabalho.
Por seu turno, a alínea b) do nº 2 do mesmo artigo da Constituição preceitua que incumbe ao Estado a fixação dos limites da duração do trabalho a nível nacional.
Tais estipulações já constavam do texto constitucional originário, tendo havido apenas uma pequena alteração [o artigo 54º, alínea b), da Constituição, na sua redacção inicial, estatuía a incumbência do Estado para a 'fixação do horário de trabalho'].
17. O direito a um limite máximo de jornada de trabalho é um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias e, por isso, beneficia do seu regime (cf., nesse mesmo sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., p. 318 e Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976,
1983, pp. 211-212), pelo que tem aplicabilidade directa, independentemente da eventual intervenção do legislador; vincula imediatamente os poderes públicos e as entidades privadas; sujeita as leis restritivas aos princípios da exigibilidade ou necessidade, da adequação e da proporcionalidade; e vê salvaguardada a extensão do seu conteúdo essencial perante leis restritivas (cf. Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., p. 140).
Na verdade, uma permanente disponibilidade do trabalhador para acorrer a uma qualquer solicitação decorrente da sua actividade profissional consubstanciaria uma privação do período de autodeterminação e de descanso, constitucionalmente inadmissível.
Com efeito, o dever principal que cabe ao trabalhador por força da celebração do contrato de trabalho não compreende apenas o desenvolvimento da actividade laboral, abrange também o seu estado de disponibilidade, para o recebimento de uma concreta indicação no sentido do exercício de uma qualquer prestação conexa com o trabalho devido (cf. Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho, 1991, p. 129 e Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, I, 8ª ed., 1993, p. 95).
Assim, esta disponibilidade do trabalhador tem de ter uma dimensão temporal, o que significa que tem de ter limites, nomeadamente um limite máximo.
18. Não procede o argumento segundo o qual, por se tratar de trabalho 'acentuadamente intermitente', não é necessário o estabelecimento de um limite superior de prestação de trabalho. Se é certo que nos intervalos entre a prestação efectiva de trabalho o trabalhador pode realizar tarefas relacionadas com a sua vida pessoal, também é verdade que durante esses períodos não pode ausentar-se das imediações do local de trabalho e deverá interromper qualquer actividade que esteja a exercer para acorrer a uma solicitação de que seja alvo. Tudo isto significa que o trabalhador, neste tipo de trabalho, com este horário de trabalho, tem de estar permamentemente disponível, ou seja, em permanente cumprimento do dever laboral que sobre si impende.
Se o facto de se tratar de trabalho intermitente poderia permitir um limite superior ao limite dos outros tipos de trabalho, por estarem em causa situações de natureza diferente (pelo que não tem razão a recorrente quando invoca a violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição), tal circunstância não pode, de modo algum, possibilitar o estabelecimento de um horário permanente, ou desprovido de um limite superior (e por isso, potencialmente permanente).
19. Assim, pode afirmar-se que os direitos ao repouso e ao estabelecimento de um limite máximo de jornada de trabalho impõem que a actividade laboral, mesmo a acentuadamente intermitente, esteja temporalmente limitada, não sendo suficiente a possibilidade que o trabalhador tem de exercer actividades pessoais durante os intervalos entre as prestações de trabalho efectivo. A referida possibilidade de aproveitamento para fins pessoais dos intervalos decorre da natureza do trabalho em causa, e, na medida em que cederá mediante qualquer solicitação decorrente da actividade profissional, não pode ser tida como período de descanso para efeito de preenchimento do núcleo essencial do respectivo direito constitucionalmente consagrado.
Tal direito exige que o trabalhador disponha de períodos durante os quais sobre si não impenda o dever de acorrer a qualquer solicitação da entidade empregadora, o que só acontecerá se existir um limite máximo da jornada de trabalho (neste sentido, cf. Monteiro Fernandes, ob.cit., pp. 294 e ss. e 313 e ss.).
III Decisão
15. Ante o exposto, decide-se:
a) Não conhecer o objecto do recurso interposto pelo Ministério Público, em virtude de este carecer de legitimidade processual
[artigo 72º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional];
b) Não conhecer o objecto do recurso no que respeita às questões de legalidade suscitadas, em virtude de as normas questionadas não constarem de actos legislativos [artigo 70º, nº 1, alíneas f) e c), da Lei do Tribunal Constitucional];
c) Não julgar inconstitucionais, nem orgânica nem materialmente, as normas contidas nos artigos 6º, nº 2, alínea d), do Decreto-Lei nº 409/71, de 27 de Novembro e 13º e 14º do Decreto nº 381/72, de 9 de Outubro;
d) Julgar inconstitucionais, por violação das alíneas d) do nº 1 e b) do nº 2 do artigo 59º da Constituição, as normas constantes das cláusulas 83ª do Acordo Colectivo de Trabalho de 1976, 86ª do Acordo Colectivo de Trabalho de 1978 e 89º do Acordo de Empresa de 1981, ao estabelecer um horário de trabalho para as guardas de passagem de nível permanente
(inicialmente) e sem limite máximo (posteriormente);
e) Revogar, em consequência, o acórdão recorrido de acordo com o presente juízo de constitucionalidade.
Lisboa, 14 de Maio de 1997 Maria Fernanda Palma Maria da Assunção Esteves Alberto Tavares da Costa Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Diniz Vítor Nunes de Almeida (vencido conforme declaração de voto que junta)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não me é possível acompanhar, na sua plenitude, a decisão tomada no presente Acórdão.
Assim, embora acompanhe o decidido nas alíneas a), b) e c) do Acórdão, não só não concordei com a decisão tomada na alínea d), na parte em que considera as normas das convenções colectivas como «normas» para efeito de controlo da sua constitucionalidade, como também não subscrevo a fundamentação e a consequente conclusão do raciocínio desenvolvido no respeitante à decisão de julgar inconstitucional as cláusulas 83ª do Acordo Colectivo de Trabalho de
1976, 86ª, do Acordo Colectivo de Trabalho de 1978 e 89ª do Acordo de Empresa de
1981, ao estabelecerem um horário de trabalho permanente (inicialmente) e sem limite máximo (posteriormente), para as guardas de passagem de nível, pelo que, relativamente a estas matérias, votei vencido.
Quanto à primeira questão - a natureza de «norma» dos preceitos convencionais identificados - remeto para o voto de vencido que apendiculei ao Acórdão nº 214/94, 2 de Março de 1994 (in Diário da República, IIª Série, de 19 de Julho de 1994) no qual aderi à noção de que, para efeitos de controlo de constitucionalidade, norma é fonte de direito objectivo no sentido de expressão de uma vontade que unilateralmente se impõe a sujeitos que em relação a ela própria são terceiros, ainda que lhe falte generalidade. Assim, cláusulas acordadas entre sujeitos juridicamente colocados em posição de paridade não cabem neste conceito, salvo se a Constituição ou a lei lhes vierem a conferir uma diferente dimensão, o que lhes transmutaria o fundamento da sua validade enquanto norma, que para elas adviria, agora, não da vontade dos sujeitos que intervieram na sua formação, mas antes da própria ordem jurídica.
A contratação colectiva é e continua a ser um produto da vontade dos contratantes só para eles sendo vinculativa como expressão da autonomia da vontade que o Estado tem de reconhecer ao cidadão, enquanto membro de uma associação. Só que - importa não esquecer - os sindicatos e associações patronais não são associações públicas, pelo que conferir às cláusulas de convenções colectivas - ou, no caso, a cláusulas de um mero acordo de empresa - a natureza de «norma» para efeitos de controlo de constitucionalidade é, afinal, conferir a tais cláusulas a natureza de um acto de autoridade, com eficácia idêntica à de um acto normativo emanado de um autoridade pública no exercício dos seus poderes de império.
Aliás, o argumento tirado das Portarias de extensão, assente no princípio da igualdade, mostra claramente a natureza da mera eficácia inter-partes das normas que se contêm nas convenções colectivas: quando se torna necessário ou vantajoso abranger outros trabalhadores ou entidades patronais que não intervieram na convenção, é indispensável o recurso aos poderes de império do Estado e emitir uma Portaria de extensão para alargar as normas originais da convenção colectiva a esses não intervenientes e, só na medida em que a PE estende tais normas é que estas - e só estas - podem ser apreciadas em controlo de constitucionalidade.
Quanto ao argumento extraído da norma que consagra, em matéria de interpretação das convenções colectivas de trabalho, a competência do Supremo Tribunal de Justiça para proferir Assentos, apenas se dirá que a «norma» resultante do Assento está de algum modo legitimada pelo ius imperii da decisão do Tribunal, não havendo aqui , como na anterior situação, a igualdade material das normas, pois em causa está tão somente a sua natureza formal ou funcional.
Também não posso acompanhar o acórdão na parte em que se julgaram inconstitucionais as normas emanadas das convenções colectivas em causa, por fixarem horários de trabalho para as guardas de passagem de nível de valor superior ao máximo legalmente previsto.
Vejamos porquê.
Entendeu-se que na presente situação as normas sindicadas estabeleciam um horário permanente ou desprovido de um limite superior, e por isso potencialmente permanente (cfr. ponto 18), e que o direito fundamental previsto na Constituição e que vinha posto em crise impõe o estabelecimento de um limite máximo da jornada de trabalho, porque o trabalhador deverá dispor de períodos durante os quais sobre si não impenda o dever de acorrer a qualquer solicitação da entidade empregadora (cfr. ponto 19). Isto porque uma permanente disponibilidade do trabalhador 'consubstanciaria uma privação do período de autodeterminação e de descanso, constitucionalmente inadmissível' (cfr. ponto
17.).
Ainda que, em tese geral, se possam aceitar tais conclusões o certo é que a sua aplicação à situação tipificada nas normas apreciadas peca por um formalismo que me parece excessivo, por nem sequer considerar a específica natureza do trabalho prestado bem como as disposições convencionais que estabelecem um repouso mínimo entre dois períodos normais de trabalho diário consecutivos.
Vejamos, então.
Tudo começa por uma questão de princípio, em contrário do entendimento subliminarmente presente na fundamentação. Este, em termos que simplifico para efeitos de argumentação, vê no trabalho uma escravatura remunerada e nos períodos de repouso e lazer a liberdade enfim subtraída à brutalizante necessidade. Não é assim, e não me parece que seja esta a concepção que está na base do disposto na alínea d) do nº 1 do artigo 59º da Constituição. O trabalho compromete toda a existência do indivíduo e nele, para além dos seus momentos de constrição, também se projecta a dignidade própria da pessoa; da mesma forma os momentos de repouso e de lazer não têm que corresponder, na sua integralidade e no próprio conceito, à libertação redentora.
Mas há que ter em conta as particularidades da situação tipificada. E aí não posso aceitar o esquematismo do raciocínio empreendido, que claramente negligencia a excepcionalidade do caso e as características pouco comuns desta forma de prestação e de organização do trabalho.
Dir-se-ia que a solução seria diferente (e em termos que para mim seriam inaceitáveis), levando a concluir no sentido da não inconstitucionalidade se, estando previsto um limite máximo da prestação de trabalho, a afectação do trabalhador em permanência e sem intermitências ou descontinuidades, durante as 24 horas de cada dia, viesse a ser remunerável a título de alguma das modalidades possíveis de trabalho suplementar, para além do período só formalmente normal. E mais se acentua o ilogicismo se tivermos presente que as passagens de nível de tipo P, para as quais se previu um horário permanente, ou, mais tarde, superior a 12 horas, são precisamente aquelas de menor movimento, as menos exigentes em termos de penosidade e do esforço exigido do trabalhador.
Ora bem, na prestação do trabalho das guardas de nível, há que proceder a distinções: há momentos de trabalho efectivo prestado em termos descontínuos e há momentos de disponibilidade. E quanto a estes, no que respeita pelo menos às passagens de nível de tipo P, os tipos de obrigações são diferentes. O período diurno, entre o nascer e pôr do sol, distingue-se do período nocturno, em que os guardas apenas são chamados a intervir excepcionalmente, em resposta a situações de emergência.
Poderá então dizer-se, para fundamentar um juízo de censuras, que os guardas das passagens de nível não beneficiam de um horário de trabalho préfixado em termos rígidos, que prestam uma actividade de duração variável; no entanto, a Constituição não exclui que tal venha a suceder, precisamente porque nem todo o trabalho poderá, pela força das coisas, ser prestado em condições semelhantes. Todavia a fixação de um limite máximo da jornada de trabalho é constitucionalmente exigida porque não pode conceber-se em caso algum a prestação da actividade em termos que consumam a integralidade das 24 horas de cada dia e impossibilitem qualquer período de repouso diário.
No caso em apreciação, a previsão de horas de serviço em permanência (ou em termos superiores a 12 horas) não corresponde a uma jornada de trabalho sem períodos de repouso. Significa apenas que com essa previsão se procurou obviar às dificuldades de contabilização do trabalho efectivamente prestado fora do horário 'normal', já de si intermitente.
Em meu entender, o que interessa no plano da Constituição é a realidade das coisas e de somenos importância serão expedientes contabilísticos. Repouso e limites máximos da jornada de trabalho são noções interligadas e o que
é decisivo é que seja assegurada, na prática efectiva, a protecção do repouso do trabalhador, ainda que em formas pouco ou nada usuais de organização do trabalho, impostas pela especificidade das actividades a desenvolver. No caso está por provar que não estejam assegurados, aos guardas das passagens de nível, em cada dia, períodos de repouso - interpretada esta noção não nos termos estritos previstos na lei para a generalidade das situações, mas atendendo ao espírito e razão de ser da norma constitucional.
E o que violará certamente a Constituição é a extensão indiscriminada de regimes semelhantes àquele que foi analisado a situações em que não se verifiquem condicionalismos tão próximos quanto possível daqueles que motivaram a solução adoptada. Aí o exame tem efectivamente de ser bastante apertado e exigente. No presente caso, entendo porém que a disciplina normativa adoptada passa nesse exame.
Com efeito, o mesmo Acordo de empresa que estabelece um período normal de trabalho superior a 12 horas para algumas das guardas, estabelece também um princípio essencial para a compreensão do sistema jurídico que a natureza do trabalho em causa gerou. A Cláusula 43ª, no seu nº 2 (AE) estabelece que entre dois períodos normais de trabalho diário consecutivos haverá um repouso mínimo de dez horas, enquanto que a Cláusula 116ª, nº1 garante um descanso semanal de quarenta e oito horas seguidas, normalmente ao sábado e domingo.
Assim, a consideração deste sistema normativo regulador do trabalho das passagens de nível, para além de tais «normas» terem sido discutidas e acordadas após largas discussões entre os representantes dos trabalhadores - que certamente não podem ser acusados de estar a prejudicar as suas camaradas de trabalho - e a entidade patronal -que, como empresa pública que era ao tempo não pode ser acusada de não respeitar os direitos constitucionais dos seus trabalhadores - parece-me justificar a conclusão de que a prática dos horários em causa, mesmo o qualificado de «permanente» ou de
«superior a 12 horas» não viola a Constituição, pois, tais trabalhadoras não poderão ver esse período dilatado para além das 14 horas (em face da exigência de repouso mínimo de 10 horas - clª43ª/2) e, trabalhando cinco dias por semana
(descansam dois dias seguidos, v.g., quarenta e oito horas seguidas - clª116ª/1), pelo que não prestarão mais de 70 horas por semana, o que tendo em atenção a natureza intermitente do trabalho prestado mostra que, podendo porventura haver lugar ao pagamento de algumas horas de trabalho extraordinário, não existe um horário sem limites ou um trabalho permanente que justificaria, esse sim, o julgamento de inconstitucionalidade de norma que o permitisse.
Por todas estas razões não votei a decisão de inconstitucionalização dos preceitos das convenções colectivas em apreço.
Luís Nunes de Almeida (vencido apenas quanto à questão prévia do conhecimento da constitucionalidade das convenções colectivas de trabalho pelo Tribunal Constitucional, nos termos da fundamentação constante do Acórdão nº 172/93).