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Proc. nº 101/98
1ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – RELATÓRIO
1. P... intentou, no Tribunal Administrativo de Macau, acção de indemnização contra o Território de Macau pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de MOP 1.020.687,30, acrescida dos juros vencidos e vincendos até ao efectivo pagamento.
Alegou, para tanto, que fora «recrutada à República ao abrigo do artigo 69º do Estatuto Orgânico de Macau e do artigo 22º do Decreto-Lei nº
53/89/M, de 28 de Agosto, pelo Gabinete do Governador de Macau», tendo sido colocada na TDM, entre 1 de Novembro de 1990 e 31 de Maio de 1991, enquanto aguardava a finalização do seu processo de contratação; e que essa contratação, como técnica auxiliar especializada, veio a ser autorizada pelo então Secretário Adjunto para a Educação e Administração Central em 23 de Abril de 1991, mas não se chegou a concretizar, vindo posteriormente a ser inviabilizada, por despacho do Governador de Macau de 22 de Maio de 1992, em que se entendeu «revestir grave ilegalidade a celebração de um contrato com efeitos retroactivos». Considerou, assim, que aquela actuação da Administração «violou o direito subjectivo da A. à colocação num serviço público do Território (...), bem como o direito ao provimento e investidura no lugar», o que a constituiria no direito a ser indemnizada pelo montante peticionado.
Na sua contestação, para além de impugnar a matéria vertida pela Autora, o Ministério Público, apoiando-se no Decreto-Lei nº 28/91/M, de 22 de Abril (Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual das Entidades Públicas), e em abundante jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, alegou ainda que, tendo em conta um despacho de «visto» do Secretário-Adjunto para a Comunicação, Turismo e Cultura, datado de 30 de Junho de 1991, sobre proposta do Director do Gabinete de Comunicação Social, que desaconselhava a referida contratação, «a A. deveria ter suscitado a anulação do acto (...) ainda antes da propositura da acção de indemnização, devido à sua hipotética ilegalidade», sendo certo que «à A. apenas era permitido pedir na presente acção a reparação dos danos emergentes do acto que não haviam sido objecto de apreciação e conhecimento através da execução da decisão anulatória do acto ilícito (obtida em sede de recurso contencioso)».
2. Notificada para o efeito, veio a Autora juntar aos autos cópia da petição de interposição do recurso contencioso, em que se requeria a anulação do despacho de 30 de Junho de 1991, do Secretário-Adjunto para a Comunicação, Turismo e Cultura. Por despacho de 24 de Janeiro de 1995, o Juiz do Tribunal Administrativo ordenou a suspensão dos autos até decisão final daquele recurso, nos termos do disposto no artigo 279º, nº 1, do C.P.C..
Posteriormente, foi junta aos autos certidão da decisão proferida naquele recurso contencioso, que o rejeitou, por falta de objecto. Considerou-se aí que «o acto do Governador de Macau de 22-5-92, embora implicitamente, revogou o acto recorrido, e bem assim o acto de 23-4-91. Aquele acto, porque não impugnado, não obstante a notificação da recorrente, firmou-se assim na ordem jurídica como caso decidido ou resolvido».
Por sentença de 23 de Abril de 1997, o Tribunal Administrativo de Macau, considerando verificada a «excepção peremptória» prevista no nº 2 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 28/91/M, absolveu o Território de Macau do pedido formulado.
Considerou-se nessa decisão o seguinte:
Ora, o que o aresto do S.T.A. procurou enfatizar ou demonstrar, e bem, foi que quando a recorrente o impugnou, já ele não existia na ordem jurídica, por ter sido revogado pelo despacho do Senhor Governador de 22 de Maio de 1992. E disse mais o acórdão: disse, acertadamente outra vez, que a revogação operada pelo despacho do Governador se estendia à própria «autorização», de 23.
4. 91, entretanto suspensa pelo tal 'visto', ao negar toda a hipótese de contratação sob pena de «grave ilegalidade».
Concordamos com tal asserção e com os fundamentos encontrados, que se prendem com a revogação implícita. [...]
O que é verdade é que destruído o acto de 30. 6. 91 ('visto') pelo despacho do Governador ora em análise, obviamente o recurso interposto no S.T.A. só podia ter a sorte que teve, por falta de objecto (cit. Ac. S.T.A., 11.10.79, in A.D. nº 217/1).
É bom de ver que o douto acórdão tem uma mensagem: a recorrente deveria, isso sim, era ter recorrido do despacho do Senhor Governador.
[...]
(...) Se tivesse impugnado contenciosamente esse acto, tudo se poderia ter alterado. Podia, efectivamente, alcançar pleno êxito e desse modo obter obter uma decisão anulatória que lhe abriria necessariamente as portas à pretendida contratação ou, em sede de execução de julgados, no mínimo, à fixação da indemnização pelos prejuízos sofridos (cfr artº 7º, D. L. nº 256-A/77, 17 de Junho). (...)
Ao não o pôr em crise em recurso contencioso, a autora inviabilizou não apenas a contratação, como a hipótese de se ressarcir por todos os prejuízos sofridos por causa dele (cfr. Afonso R. Queiró, in R.L.J., ano 120, pág. 307; M. Caetano, 'Manual', II, 10ª ed, pag. 1235).
Na medida em que não foi atacado, tal acto fixou-se na ordem jurídica como caso decidido ou caso resolvido e, com isso, a sua eventual ilegalidade não pode mais ser apreciada, [...]
E com isso tornou-se insubsistente a obrigação de indemnizar e a autora perdeu o direito à reparação.
3. Inconformada, a Autora interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Superior de Justiça de Macau.
Nas suas alegações, sustentou que o nº 2 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 28/91/M, à semelhança do artigo 7º do Decreto-Lei nº 48.051, de 21 de Novembro de 1967, de idêntico teor, vigente no ordenamento jurídico da República, deveria ser interpretado no sentido de se reconhecer que, mesmo não tendo havido recurso contencioso do acto ilegal, «a acção é o meio idóneo para o administrado poder ressarcir-se daqueles prejuízos que nunca seriam eliminados por via do contencioso anulatório, mesmo que nele tivesse vencimento», louvando-se no ensinamento de Marcello Caetano, que contrapôs ao de Afonso Queiró, sendo que este último teria sido o adoptado na sentença recorrida. E, para o caso de assim se não entender, suscitou a questão da inconstitucionalidade da norma contida no nº 2 do artigo 8º do Decreto-Lei nº
28/91/M, «porquanto ao excluir o direito à reparação dos danos que podiam ter sido evitados através da interposição de recurso, não se limita a definir a extensão da obrigação de indemnizar, configurando uma restrição arbitrária de direito fundamental consagrado no artigo 22º da Constituição», sendo que a Constituição «restringe no artigo 18º qualquer limitação arbitrária aos direitos fundamentais».
Nas suas contra-alegações, o Ministério Público entendeu o seguinte:
Ora, a disposição contida no nº 2 do artº 8º do Dec. Lei nº 28/91-M, não configura qualquer restrição ao normal exercício do direito fundamental consagrado no referido artº 22º. Limita-se, isso sim, a estabelecer formas de acesso a essa mesma reparação e correspondente responsabilização das entidades públicas devedoras.
Trata-se, pois, de uma norma que apenas pretende regular o modo de obtenção da reparação devida pela prática de algum acto dela gerador, não contendo qualquer restrição àquele direito ou mecanismo que tenda mesmo à impossibilidade de o exercitar.
Por acórdão de 23 de Outubro de 1997, o Tribunal Superior de Justiça de Macau negou provimento ao recurso, entendendo que não se verificava a inconstitucionalidade suscitada, nos termos seguintes:
É que, contrariamente ao argumentado pela agravante e como atrás já se deixou explicitado, a aludida excepção peremptória não concretiza, em termos absolutos, uma causa extintiva do direito de indemnização da autora, mas antes uma mera limitação da medida da reparação correspondente ao dever de indemnizar, introduzida apenas por razões de celeridade e economia processuais e que o legislador deixa à diligência do lesado exercitar ou não, com a consequente penalização se por negligência sua o deixar de exercer.
Quer dizer, o núcleo essencial do direito de indemnização, conferido pelo artº 22º da CRP, fica intocável, sendo apenas limitado se o lesado, por negligência sua, o deixar de exercitar pelas formas e prazos indicados na lei ordinária.
4. Inconformada, a recorrente interpôs então recurso para o Tribunal Constitucional, «nos termos e para os efeitos da alínea b) do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro», para apreciação da questão da inconstitucionalidade da «norma constante do nº 2 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 28/91/M, porquanto ao excluir o direito à reparação dos danos que podiam ter sido evitados através da interposição de recurso de anulação, não se limita a definir a extensão da obrigação de indemnizar, consagrando uma restrição arbitrária do princípio geral em matéria de direitos fundamentais – a responsabilidade do Estado por danos resultantes do exercício das funções políticas, legislativa, administrativa e jurisdicional – consagrado no artigo
22º da Constituição».
Já neste Tribunal, a recorrente concluiu as suas alegações pela forma seguinte:
1 – A decisão de que se recorre aplica uma norma que padece de inconstitucionalidade material, porquanto o nº 2 do artigo 8º do Decreto-Lei nº
28/91/M, de 22 de Abril, contém uma verdadeira excepção peremptória com valor de
'caso decidido', restritiva do direito à indemnização por actos de gestão da Administração, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo de outrem.
2 – A legislação em vigor no Território de Macau, em sede de responsabilidade da Administração por actos de gestão pública deverá ser interpretada correctivamente, se necessário for, e de acordo com os princípios constitucionais, nomeadamente com os princípios ínsitos no artigo 22º da Constituição.
3 – E se a interpretação de acordo com a Constituição não pode ter vencimento por existência de norma do nº 2 do artigo 8º do citado normativo, então esta norma deverá ser expurgada do ordenamento jurídico, por sendo lesiva dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, constitucionalmente garantidos, ser materialmente inconstitucional.
O Ministério Público, por sua vez, formulou as seguintes conclusões:
A norma constante do nº 2 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 24/91/M, de
22 de Abril, vigente no Território de Macau, ao limitar o âmbito da obrigação de indemnizar da Administração do Território em função de um juízo da causalidade, reportado aos danos alegados – excluindo-a quanto aos que radicam directa e exclusivamente na falta de interposição do recurso contencioso, visando a anulação do acto administrativo – não constitui restrição ao princípio consignado no artigo 22º da Constituição da República Portuguesa.
Na verdade, tal regra constitui mero afloramento do princípio geral segundo o qual o montante da indemnização poderá ser reduzido em função dos comportamentos do lesado que possam ter concorrido para a produção ou agravamento dos danos – constituindo conduta negligente, dotada de tal virtualidade, a que se traduz em permitir a consolidação do acto anulável, em consequência da sua não tempestiva impugnação contenciosa.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTOS
5. A norma em causa, o artigo 8º do Decreto-Lei nº 28/91/M, de 22 de Abril de 1991, dispõe o seguinte:
1. O dever de indemnizar, por parte da Administração do Território e demais pessoas colectivas públicas, titulares dos seus órgãos, e dos seus agentes, não depende do exercício pelos lesados do direito de recorrer do acto ilegal causador do dano e subsiste quando o dano perdurar apesar da anulação do acto ilegal e da execução da sentença anulatória.
2. O direito destes à reparação não se manterá em caso de o dano ser imputável à falta de interposição de recurso ou à negligente conduta processual do lesado.
Por sua vez, o artigo 22º da Constituição da República determina:
O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.
O que a recorrente entende é que a transcrita norma do nº 2 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 28/91/M constitui uma restrição arbitrária e inadmissível ao direito à indemnização por actos de gestão pública da Administração consagrado no citado artigo 22º da CRP, restrição essa resultante do condicionamento desse direito à prévia interposição do recurso contencioso.
A este propósito, entende o Ministério Público nas suas alegações, após notar a semelhança do preceito normativo em causa com o artigo 7º do Decreto-Lei nº 48051, de 21 de Novembro de 1967, que do que se trata é da existência «de um verdadeiro ónus de impugnação daquele acto» lesivo. E refere:
Por sua vez, tal 'ónus de impugnação' decorre da circunstância de o recurso contencioso estar estruturado em função da anulação dos actos recorridos
(artº 6º do ETAF), devendo, consequentemente, ser interposto pelo lesado legítimo, dentro do prazo legal, sob pena de preclusão e de sanação da invalidade, que carece sempre de ser jurisdicionalmente apreciada para produzir efeitos. A necessidade de impugnar o acto anulável radica, deste modo, no facto de a não impugnação tempestiva produzir, afinal, a sanação ou convalidação da própria invalidade.
(...)
É que tal norma, assim interpretada, não constitui verdadeira e excepcional restrição ou exclusão do direito à indemnização do lesado, mas – como atrás se referiu – simples concretização do princípio geral – vigente quanto a qualquer obrigação de indemnizar – segundo o qual o montante indemnizatório a atribuir ao lesado é decisivamente condicionado pelos factos negligentes a este imputados e que possam ter contribuído causalmente para a produção ou agravamento dos prejuízos. E sendo evidente que, quando se vier a concluir que tais danos radicam, afinal, de forma directa e imediata, inteiramente na culposa omissão do lesado – que os poderia ter inteiramente removido se tivesse impugnado o acto lesivo, tal facto – culpa corrente do lesado – pode perfeitamente funcionar como impeditivo da própria obrigação de indemnizar.
6. O que no acórdão recorrido se entendeu foi que a norma do artigo
8º, nº 2, do Decreto-Lei nº 28/91/M, não integra «uma causa extintiva do direito de indemnização da autora, mas antes uma mera limitação da medida da reparação correspondente ao dever de indemnizar».
Pois bem, o que naquele artigo 22º da Constituição se postula é a regra da responsabilidade civil do «Estado e demais entidades públicas, (...) por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício». No dizer de J. J. Gomes Canotilho (Anotação ao Acórdão de 9 de Outubro de 1990, do Supremo Tribunal Administrativo, em Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 124º, pág. 86), ali não apenas se estabelece «a garantia institucional da responsabilidade directa do Estado ('responsabilidade solidária') como se reconhece o direito do particular à reparação indemnizatória e/ou compensatória no caso de lesão de direitos, liberdades e garantias».
Ora, no que se refere à conformidade do artigo 7º do Decreto-Lei nº
48.051 – recorde-se, em tudo idêntico à norma ora em apreciação – com o preceituado no artigo 22º da Constituição, escreveu José Luís Moreira da Silva
(Da Responsabilidade Civil da Administração Pública por Actos Ilícitos, em Responsabilidade Civil Extracontratual da Administração Pública, coordenação de Fausto de Quadros, Almedina, Coimbra, 1995, págs. 161 e segs.): No que diz respeito à responsabilidade por actos de gestão pública ilícitos, o Decreto-Lei nº 48051 apresenta ainda uma última dificuldade de compatibilização com a Constituição actual. Referimo-nos ao artigo 7º daquele, que exclui a obrigação indemnizatória no caso de o dano ser imputável à falta de interposição de recurso ou a negligente conduta processual por parte do particular.
É necessário, no entanto, interpretar convenientemente este artigo. E, vimos já, que dessa interpretação não poderá resultar restrição ao conteúdo do artigo 22.º da Constituição, atenta a sua natureza. Assim, não é possível considerar que o artigo 7.º do Decreto-Lei nº 48051 transfere para o particular o ónus da existência de responsabilidade por parte da Administração, pois o princípio geral constante dos artigos 2.º e 3.º do diploma poderia ser afastado por incúria do particular. A Constituição afirma o princípio geral da responsabilidade da Administração Pública, independentemente da conduta do particular posterior à prática do acto danoso ilegal. Esta interpretação do artigo 7.º do Decreto-Lei nº 48051 seria, pois, inconstitucional. No entanto, consideramos que a interpretação correcta da parte final deste artigo é outra e essa, totalmente constitucional. Isto é, o que o artigo 7.º, citado, pretende é reafirmar um princípio geral da responsabilidade civil no direito privado. Com efeito, o artigo 570.º do Código Civil diz-nos que quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para o agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base no gravidade das culpas de ambas as partes e nas suas consequências, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída. O artigo 7.º fala concretamente em que o direito à reparação 'só substituirá na medida'. Ou seja, o direito à indemnização existe com a prática da acto ilícito, mas o quantum indemnizatório terá que ser 'medido' de acordo com a eventual concorrência de culpa do lesado no agravamento do dano. A interpretação correctiva que teremos de fazer ao artigo 7.º, deriva apenas de que o dano causador da obrigação de indemnizar por parte da Administração resulta da prática do acto ilícito e não da negligência processual do particular. Esta negligência poderá apenas agravar o dano. Isto porque não existe responsabilidade da Administração sem dano, como vimos atrás. Importa também referir, no seguimento, que continuará a existir responsabilidade da Administração por um acto ilegal que entretanto tenha sido convolado por decurso do prazo para interposição de recurso sem o mesmo ter sido feito, desde que tenha existido dano.
7. Da leitura do texto transcrito resulta, desde logo, que as dúvidas de constitucionalidade não atingem a norma em causa, quando interpretada de modo a traduzir uma mera limitação à determinação do quantum indemnizatório.
Efectivamente, o que o citado autor ali contesta – em sintonia, aliás, com o alegado pela ora recorrente – é uma certa interpretação jurisprudencial do artigo 7º do Decreto-Lei nº 48.051, em certo momento dominante no STA, segundo a qual a falta de interposição do recurso contencioso implicava a não subsistência do direito à reparação dos danos sofridos (cfr. Acórdão de 14 de Outubro de 1986, Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, Ano XXVI, nº 306, pág. 795; e Acórdão de 12 de Fevereiro de
1986, no Recurso nº 20.651, Apêndice ao Diário da República, de 16 de Novembro de 1989, pág. 559). Mas já o mesmo autor aceita uma outra interpretação da mesma norma, a qual viria a triunfar, mais tarde, no mesmo STA, pelo menos desde o Acórdão de 30 de Maio de 1995 (Apêndice ao Diário da República, de 20 de Janeiro de 1998, pág. 4722), aresto em que se afirmou: Afigura-se porém que a limitação ao ressarcimento dos danos emergentes de acto ilegal estabelecida no aludido preceito resulta, não tanto da responsabilidade de reparação desses danos em sede de execução de sentença anulatória – como geralmente se tem entendido – mas da possibilidade que o administrado tem de impedir, que os danos se produzam ou continuem a produzir-se.
Basta notar que a execução do julgado pode terminar com a fixação de uma indemnização pecuniária, mormente quando se conclua que há causa legítima de inexecução ou não possa ter lugar já a reintegração natural. E o processo executivo poderá mesmo extinguir-se se entretanto tiver sido proposta acção de indemnização ou o Tribunal para ela remeter as partes por considerar a matéria de complexa indagação.
Não faz sentido que se coloque obstáculo ao ressarcimento de prejuízos resultantes de acto ilegal com base na possibilidade de tais prejuízos serem reparados por via da execução de sentença anulatória proferida no recurso contencioso, quando a sequência lógica dessa execução poderá ser a propositura autónoma de uma acção de indemnização.
De resto, se se atender a que os danos indemnizáveis poderão ser virtualmente reparados por via da execução de sentença anulatória nas situações em que o facto ilícito causador dos danos seja um acto contenciosamente recorrível, a exigência da prévia interposição do recurso contencioso, nesses casos, resultaria na inutilização do princípio geral definido na primeira parte do artº 7º.
O entendimento que permite conciliar as duas regras contidas na norma do artº 7º, conferindo um efeito útil ao aludido princípio da autonomia da acção ressarcitória, parece ser o que situa a limitação no ressarcimento dos danos no
âmbito do nexo de casualidade, e, portanto, no plano dos pressupostos da responsabilidade civil. Nesta óptica, a segunda parte do artº 7º configuraria apenas um caso de exclusão ou diminuição da responsabilidade quando a negligência processual do lesado tenha contribuído para a produção ou agravamento dos danos.
Estamos aqui perante uma situação equivalente à prevista no artº 570º do Código Civil, em que a concorrência da culpa do lesado para a produção do dano gera a redução, ou mesmo a exclusão, da indemnização que era devida pelo lesante.
Segundo esta interpretação, o administrado responde pelos prejuízos pelos quais possa considerar-se co-responsável por se ter abstido de interpor recurso contencioso ou pedido de suspensão de eficácia que os poderia ter evitado. Configura-se aqui uma actuação culposa do lesado – consubstanciada na omissão de uma conduta que poderia também ter impedido a produção dos danos. É essa circunstância que, constituindo uma das causas do dano, segundo o princípio da causalidade, desonera a Administração do dever de indemnizar.
(....)
Sendo assim, pode afirmar-se que a norma do artº 7º do Decreto-Lei nº
48.051 não estabelece um regime de caducidade do direito de indemnização ou uma excepção peremptória fundada no caso decidido ou caso resolvido, por falta de oportuna impugnação do acto administrativo. O que está em causa não é o direito
à propositura da acção ressarcitória, mas o montante dos danos indemnizáveis, tendo em conta uma eventual co-responsabilidade do lesante e do lesado no resultado danoso.
(...)
Por outro lado, como se deixou já transparecer, a excepção consignada na segunda parte do artº 7º do Decreto-Lei nº 48.051 não caracteriza um pressuposto processual ou uma condição de procedibilidade da acção, mas constitui antes um critério de determinação do montante dos danos indemnizáveis em função da repartição da culpa. Não ocorre pois qualquer restrição ao direito de acção ressarcitória, pelo que não pode dar-se como violado o princípio definido no artº 22º da C.R.P.
8. Ora, poder-se-ia entender que é nesta linha interpretativa que se enquadra o acórdão, ora recorrido, do Tribunal Superior de Justiça de Macau, quando analisa o sentido e alcance do nº 2 do artigo 8º do Decreto-Lei nº
28/91/M, designadamente quando refere, como se viu, que dele não resulta «uma causa extintiva do direito de indemnização da autora, mas antes uma mera limitação da medida da reparação correspondente ao dever de indemnizar».
Mas, se podem ainda restar algumas dúvidas, nomeadamente por igualmente se considerar naquele aresto que «tem-se por verificada tal excepção peremptória», a verdade é que nele se entendeu expressamente que a inexistência de indemnização, in casu, decorre da circunstância de se verificar que a autora,
«se tivesse interposto recurso (...), poderia obter a reparação de todos os danos pedidos na presente acção», e de a mesma não indicar «quaisquer outros danos que não fossem ressarcíveis através da anulação do acto ilegal não recorrido e da execução da respectiva sentença anulatória ou que perdurem apesar da anulação de tal acto». E, destarte, se torna desnecessário dilucidar integralmente as capilares diferenças entre diversas interpretações da norma em apreço, porquanto sempre se atingiria idêntico resultado.
O que verdadeiramente importa é sublinhar que o artigo 22º da Constituição reconhece aos cidadãos o direito à reparação dos danos que lhes forem causados por acções ou omissões praticadas por titulares de órgãos do Estado e das demais entidades públicas, ou por seus funcionários ou agentes, no exercício das respectivas funções, reparação essa que deve ser integral e assumida solidariamente pela Administração. Mas o mesmo artigo 22º não estabelece os concretos mecanismos processuais através dos quais se há-de exercitar esse direito: ponto é que o legislador, ao fazê-lo, não crie entraves ou dificuldades dificilmente superáveis, nem encurte arbitrariamente o quantum indemnizatório.
Ora, a norma em apreço, por um lado, quando interpretada de modo a que, mesmo não tendo havido recurso contencioso, devam ser reparados «aqueles prejuízos que ficariam sempre por reparar, mesmo que o recurso tivesse sido interposto e, portanto, ainda que o acto tivesse sido anulado e a sentença anulatória executada» (Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Vol. II, 9ª ed., reimp., revista e actualizada por Diogo Freitas do Amaral, Almedina, Coimbra, 1980, pág. 1235), permite, desde logo, a reparação de todos os danos não evitáveis através do recurso de anulação.
E, por outro lado, também não impede a reparação dos danos que seriam evitados, caso um tal recurso tivesse sido interposto: apenas remete para a regra geral, segundo a qual a reparação se há-de fazer, em princípio, através da reconstituição natural (cfr. artigo 566º, nº 1, do Código Civil), reconstituição essa que, havendo acto administrativo, pressupõe a respectiva impugnação contenciosa. Também se não pode, pois, dizer que se haja criado, em regra, um entrave ou dificuldade dificilmente superável – como o não é, identicamente, a propositura da acção de indemnização; e, para os casos, seguramente raros, em que tal aconteça, sempre se manterá o direito à indemnização, agora por via da interpretação ultimamente adoptada no STA, tudo se resumindo a uma questão de ónus de prova, com inversão do preceituado no artigo 572º do Código Civil, já que a culpa do lesado no agravamento do dano como que se presume, em função da abstenção na interposição atempada do competente recurso contencioso.
Assim sendo, não se vê que a norma constante do nº 2 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 28/91/M, de 22 de Abril (Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual das Entidades Públicas) entre em colisão com o preceituado no artigo 22º da Constituição da República Portuguesa.
III – DECISÃO
10. Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso.
Lisboa,19 de Janeiro de 1999 Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa