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Proc. nº 307/95
1ª Secção Cons. Rel.: Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - O Tribunal Criminal da Comarca do Porto condenou A. pelo cometimento de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punível pelos artigos 23º e 24º, nº 2, alínea c), do Decreto nº 13 004, de 12 de Janeiro de 1927, com a redacção do artigo 5º do Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro. A pena, de dois anos e nove meses de prisão, foi suspensa pelo tempo de dois anos, sob a condição de, em quatro meses, fazer entrega ao ofendido da quantia de Esc. 2.130.000$00.
O arguido recorreu, sucessivamente, para o Tribunal da Relação do Porto e para o Supremo Tribunal de Justiça, mas sem êxito. Depois, recorreu para o Tribunal Constitucional, impugnando as normas dos artigos 469º, 664º e 665º do Código de Processo Penal de 1929 [esta norma, na interpretação do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934] e do artigo 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 14/84, de 11 de Janeiro.
O Tribunal Constitucional, no acórdão nº 350/91, de 4 de Julho, julgou inconstitucional tão-só 'a norma do artigo 665º do Código de Processo Penal, na interpretação que lhe foi dada pelo Assento de 29 de Junho de 1934', concedendo, assim, em parte, provimento ao recurso e ordenando a remessa do processo ao Supremo Tribunal de Justiça no sentido da reforma do acórdão recorrido segundo aquele julgamento de inconstitucionalidade.
[Aqui, interpôs-se ainda recurso para o Plenário do Tribunal Constitucional, sobre a norma do artigo 664º do Código de Processo Penal, nos termos do artigo 79º-D da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro].
O Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 9 de Junho de 1993, anulou o acórdão da Relação do Porto de 21 de Março de 1990, e ordenou a remessa do processo a essa Relação para que proferisse um novo acórdão, a ter em conta a norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, mas sem a interpretação do Assento.
O Tribunal da Relação do Porto, em acórdão de 12 de Janeiro de 1994, reconsiderou, uma por uma, todas as questões que antes decidira, para sobre elas concluir do mesmo modo. Disse, então, sobre a norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929:
'A última das questões que o recorrente levanta (6ª conclusão) prende-se com os poderes desta Relação pois, segundo diz, 'o Tribunal da Relação poderá e deverá alterar as respostas constantes dos quesitos 26º, 27º, 29º, 46º,
48º e 55º, isto por isso que o Tribunal da Relação deve conhecer, com total amplitude, da matéria de facto).
Nesta sede importa salientar que no anterior Acórdão se aplicou o disposto no art. 665 do Cód. Proc. Penal de 1929, na interpretação dada pelo assento de 29/6/34, interposição essa que veio a ser considerada inconstitucional por Acórdão do Tribunal Constitucional nº 401/91 (D.R., 1ª Série-A, de 8/1/91), que tem força obrigatória geral.
Assim sendo, a limitação imposta ao conhecimento das decisões do Colectivo em matéria de facto, de que falava o Assento, deixou de existir.
Daí que - como se disse no Acórdão desta Relação de 18/3/92, no proc. nº 9230101 - 'não se pense em partir para uma solução que coloque, no mesmo plano, o conhecimento pelo Tribunal da Relação da matéria de facto e de direito decidida pelo Tribunal Recorrido.
É que, diz-se aí, 'como logo se deu conta o T. Constitucional' tratando-se matéria de facto, há razões de praticabilidade e outras (decorrentes da exigência de imediação da prova) que justificam não poder o recurso assumir aí o mesmo âmbito e a mesma dimensão que em matéria de direito; basta pensar que uma identidade de regime, nesse capítulo, levaria, ao limite, a ter de consentir-se sempre a possibilidade de uma repetição integral do julgamento perante o Tribunal de recurso'.
Um pouco além desse passo, aquele douto Acórdão salienta: 'Por
último, é de esclarecer que o que fica dito não poderá ser entendido como significando que outra solução que não seja a repetição da prova em audiência pública perante as relações está em conflito com a Constituição. É que entre o sistema em questão, que na prática e na grande maioria das situações, reduz a zero os poderes das relações nos recursos penais em matéria de facto, e o que ordenasse a repetição da prova em audiência pública perante o Tribunal de Recurso, outros há certamente ... que não porão em causa as garantias de defesa que o processo criminal deve assegurar'.
De tudo isto conclui esta Relação no mencionado Acórdão que se por um lado 'à Relação não está vedado conhecer da matéria de facto, mesmo que no processo não constem todos os elementos que fundamentavam a decisão do Colectivo, por outro haverá que aceitar-se que este Tribunal não se pode impor que perante si proceda à repetição de prova produzida perante o Colectivo, mormente a testemunhal. E daí que a censura a efectuar em tal sede se tenha de basear nos elementos constantes do citado art. 665º 'documentos, respostas aos quesitos e quaisquer outros elementos constantes dos autos', o que implicará sempre um cuidado redobrado uma vez que, além do mais, foi o Tribunal recorrido quem beneficiou da imediação da produção de prova. Tudo isto aponta para que, só com elementos suficientemente capazes de sustentar uma segura convicção, a Relação venha a decidir, em sede de facto, de maneira divergente do Colectivo, nomeadamente quando a convicção deste se tiver baseado em depoimentos perante si prestados'.
Com o critério assim delineado, cremos que as respostas aos mencionados quesitos não poderão alterar-se. Para o concluir bastará lembrar que o Tribunal Colectivo teve ao dispor informações orais colhidas através de declrações prestadas por diversas pessoas (v. acta de fls. 85), naturalmente com influência nas respostas dadas, mas que não chegaram ao conhecimento desta Relação. O mesmo acontecerá com os quesitos respeitantes (...), pois, não sendo os atestados médicos apresentados conclusivos quanto ao momento ou tempo a que se reportam os quesitos, as inrformações daquelas pessoas poderiam ter determinado as respostas.
Deste modo, consideram-se assentes os factos acima indicados, resultantes das respostas aos quesitos'.
Deste acórdão foi interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Alegando, disse o recorrente em dado passo: 'Não foi, certamente, para obter um controlo sobre a matéria de facto por banda da 2ª instância como aquele que foi de facto exercido, que o recorrente tem lutado denodadamente nos presentes autos. Nem foi, seguramente, para que o Tribunal a quo julgasse da forma que o fez, que o Tribunal Constitucional veio a declarar inconstitucionais algumas normas do vetusto Código de Processo Penal de 1929 (...)'. Mas o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 16 de Novembro de 1994, julgou improcedente o recurso e confirmou a decisão recorrida.
Depois, o recorrente viria arguir a nulidade desse acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, por omissão de pronúncia. Disse, de novo, em dado passo:
'(...) ao alegar e concluir da predita forma, como se afigura manifesto, tinha-se em vista referir que, no fundo, o Tribunal da Relação do Porto não fizera uma aplicação iuxta modum do julgado do Tribunal Constitucional que determinou Vas. Exas. a declararem nulo o precedente Acórdão do mesmo Tribunal. Na verdade, tinha-se em vista o entendimento sufragado pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão de 22 de Janeiro de 1992, por último publicado no Boletim do Ministério da Justiça nº 413, 119 ss cujo sumário constante da referida publicação é do seguinte teor:
'I - O artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, relativamente à competência das relações quanto à matéria de facto acolhida nas decisões dos tribunais colectivos continua a estar ferido de inconstitucionalidade, mesmo sem a sobreposição do assento de 29 de Junho de
1934.
II - Sendo, assim, inaplicável pelos tribunais - artigo 207º da Constituição - o referido segmento do preceito e não havendo norma para regular o caso concreto, não podendo o tribunal abster-se de julgar com o fundamento da falta de lei, por um lado, repristinar-se a norma anterior - redacção originária do artigo 665º do Código de Processo Penal - por se tratar de incosntitucionalidade superveniente, impõe-se ao julgador criar ele próprio a norma adequada como se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema a fim de integrar a lacuna'. Ora, se bem se atentar, no fundo, o Tribunal a quo, justamente, o que fez foi repristinar a primitiva redacção do artigo 665º do C. P. Penal de 1929'.
E o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 29 de Março de 1995, indeferiu o requerimento de arguição de nulidade. Considerou, aí, no que releva para a norma do artigo 665º do Código de Processo Penal:
'(...) não há por parte do reclamante qualquer alegação expressa ou tácita, de indevida aplicação do artigo 665º acima citado.
Também se recusa a pretendida omissão de pronúncia, por isso que só haveria este Tribunal de, oficiosamente, tomar posição quanto à alegada inconstitucionalidade, se reconhesse a sua existência, o que não acontece, por isso que a Relação julgou correctamente adentro dos limites que lhe foram colocados pela decisão constitucional.
Em suma: nem o réu arguiu, expressa ou tacitamente, a pretensa inconstitucionalidade do artigo 665º do Código de Processo Penal, nem este Tribunal a deveria conhecer oficiosamente, pela peregrina razão de que a não tem como verificada'.
A. recorreu, então, para o Tribunal Constitucional. Invocou para tanto o artigo 70º, nº 1, alínea g), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Delimitou o objecto do recurso na norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, considerando que essa norma, em razão da sua parte final, 'padece dos mesmos vícios decorrentes da interpretação que lhe foi dada pelo Assento'.
II - 1 - No momento do acórdão recorrido do Supremo Tribunal de Justiça - que é o acórdão de 29 de Março de 1995 - já o Tribunal Constitucional, nos acórdãos nº 190/94, de 23 de Fevereiro, e nº 430/94, de 24 de Maio [este segundo publicado no D.R., II Série, de 10 de Janeiro de 1995] havia decidido que é contrária à Constituição a norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de
1929, mesmo sem a sobreposição interpretativa do Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de Junho de 1934. E julgou assim porque, considerando a integração dessa norma num sistema processual-penal que conta com a falta de registo da prova e a não fundamentação das respostas aos quesitos, ali subsistem as limitações dos poderes das Relações na apreciação da matéria de facto em recursos interpostos das decisões dos tribunais colectivos, as quais são contrárias às garantias de defesa consagradas na Constituição.
2 - A questão de constitucionalidade da norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, situava-se, até dado momento do processo, naquela dimensão concreta que lhe era dada pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934. Foi estritamente nessa dimensão que a considerou o acórdão do Tribunal Constitucional nº 350/91, e foi em ordem ao que aí se decidiu que o Supremo Tribunal de Justiça anulou o acórdão da Relação do Porto de 21 de Março de 1990, e que esta Relação proferiu um novo acórdão, o de 12 de Janeiro de 1994.
Sucede, porém, que, em sequência deste segundo acórdão da Relação, e no plano dos recursos que se lhe seguiram para o Supremo Tribunal de Justiça, a questão de constitucionalidade se transmudou: se bem que em formulações pouco claras, o recorrente impugnava agora o acórdão da Relação do Porto [o segundo, é claro] e aquele acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que, a final, o confirmou
[e que é aqui a decisão recorrida] por não ter respeitado acórdão anterior do Tribunal Constitucional sobre a mesma norma.
3 - O recurso de constitucionalidade funda-se no artigo 70º, nº 1, alínea g), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Os pressupostos que aí se definem fazem prescindir da indagação da suscitação regular e tempestiva da questão de constitucionalidade durante o processo. É que a questão de constitucionalidade, neste caso da alínea g), só pode ser enfocada precisamente sobre o dado objectivo da decisão final dos tribunais sobre certa norma, decisão que se pretende confrontar com julgamento anterior do Tribunal Constitucional sobre a mesma norma.
O Ministério Público suscitou neste Tribunal a questão prévia do não conhecimento do recurso, afirmando que o recorrente, ao invocar o artigo 70º, nº
1, alínea g), da Lei nº 28/82, haveria de ter indicado a decisão do Tribunal Constitucional que sobre a mesma norma decidira antes e com sentido diferente do que estava na decisão recorrida.
Notificado para responder a essa questão prévia, o recorrente clarificou que, entre outros, era o acórdão nº 430794 do Tribunal Constitucional que havia decidido antes e de modo contrário ao do acórdão recorrido do Supremo Tribunal de Justiça, no sentido da inconstitucionalidade do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, mesmo sem a sobreposição do Assento.
A indicação, nos termos do artigo 70º, nº 1, alínea g), e do artigo
75º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, do acórdão do Tribunal Constitucional que anteriormente haja decidido por forma diferente daquela que se impugna, é um requisito, e não um pressuposto, do recurso de constitucionalidade. O pressuposto é aqui a existência do acórdão fundamento, que se verifica.
Porque é assim, a indicação, agora, de mero requisito do recurso de constitucionalidade - não tendo havido despacho nos termos do artigo 75º-A da Lei nº 28/82 - deixa que improceda a questão prévia suscitada pelo Ministério Público.
III - O Supremo Tribunal de Justiça aplicou verdadeiramente a norma do artigo 665º em sentido contrário ao dos acórdãos nº 190/94 e nº 430/94 do Tribunal Constitucional [D.R., II Série, de 12-12-1995 e de 10-1-1995, respectivamente].
Resulta com evidência da própria literalidade do acórdão recorrido do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Março de 1995 - e do sentido com que confirmou, a final, o segundo acórdão da Relação do Porto - que a norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929 é, em si mesma, sem a sobreposição do assento, tida como válida, e ali aplicada.
Mas, como se decidiu nos acórdãos nºs. 190/94 e nº 430/94 [cits.], a norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, mesmo sem a sobreposição interpretativa do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, é inconstitucional, por violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição da República.
IV - Nestes termos, desatendendo a questão prévia do não conhecimento, concede-se provimento ao recurso e ordena-se a reforma da decisão recorrida em harmonia com o julgamento da questão de constitucionalidade.
Lisboa, 14 de Maio de 1997 Maria da Assunção Esteves Alberto Tavares da Costa Vítor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Antero Alves Monteiro Diniz Armindo Ribeiro Mendes Luís Nunes de Almeida