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Proc. nº 468/98 TC – 1ª Secção Rel.: Consº Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1 - Por acórdão do 3º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, S..., com os sinais dos autos, foi condenado pela prática de um crime de furto previsto e punido pelo artigo 201º nº 1 alínea d) do Código de Justiça Militar (CJM) na pena de três meses de presídio militar. Inconformado com esta decisão, o arguido recorreu para o Supremo Tribunal Militar que, por acórdão de 16/4/98, negou provimento ao recurso.
É deste acórdão que vem interposto o presente recurso, ao abrigo do disposto no artigo 70º nº 1 alínea b) da Lei nº 28/82. Nas suas alegações, o recorrente formula as seguintes conclusões:
1 – 'Sempre que é interposto recurso de constitucionalidade das normas que, em direito penal militar, alegadamente impedem a aplicação do instituto da suspensão da pena ao direito penal militar, o Supremo Tribunal Militar declara que naquele caso concreto não se encontram verificados os pressupostos para a suspensão da pena'.
2 – 'Tal declaração tem tido o efeito de impedir o Tribunal Constitucional de se pronunciar sobre constitucionalidade das normas em questão'.
3 – 'O Tribunal Constitucional deve conhecer dos recursos de inconstitucionalidade de normas, ainda que o tribunal 'a quo', alegue que, no caso concreto, tais normas não serão aplicadas, e desde que se demonstre que tal alegação pelo tribunal, é feita de forma sistemática, e com a finalidade de impedir que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre a constitucionalidade das referidas normas'.
4 – 'As normas sobre a suspensão da execução da pena do Código Penal são aplicáveis ao direito penal militar'.
5 – 'O condenado em direito penal militar que preencha os pressupostos de facto para a suspensão de pena, que não venha a ser decretada em virtude da interpretação dada ao artigo 4º do CJM, encontra-se numa situação de desigualdade quando em comparação com outro condenado por prática de crime de direito penal comum, pois tanto aquele, assim como a sua família são obrigados a sofrer os ónus resultantes da prisão efectiva quando em comparação com este'.
6 – 'É inconstitucional por violação do princípio da igualdade previsto no artigo 13º da CRP a interpretação dada ao artigo 4º do RDM, com o sentido de que não são aplicáveis ao direito penal militar as normas previstas no artigo 48º e ss. Do Código Penal relativas à suspensão da execução da pena'.
7 – 'Os condenados por cometimento de crime essencialmente militar, caso se aceite que , preenchidos os pressupostos de facto para a suspensão da pena, esta não pode ser decretada 'ex lege' em virtude de o direito penal militar a não admitir, e por motivo de tal interpretação, estão sujeitos a restrições para além do necessário, para salvaguardar outros direitos ou interesses legítimos da instituição militar, nomeadamente a disciplina'.
8 – 'Em conformidade a interpretação dada acima ao artigo 4º do CJM também infringe o disposto no artigo 18º n.º 2 da Constituição da República'.
9 – 'O furto de um cheque e de peças de fardamento em local militar, efectuado por militar, não afecta inequivocamente interesses de carácter militar'.
10 – 'Tal conduta não tem com a instituição castrense qualquer conexão relevante, não existindo nexo causal entre a conduta punível e algum dever militar, ou interesses militares de defesa nacional'.
11 – 'Um militar que furta um cheque e peças de fardamento, deve estar sujeito
às mesmas regras que qualquer cidadão que furte objectos pertencentes ao Estado ou instituições públicas'.
12 – 'A prática de tais factos não constitui crime essencialmente militar'.
13 – 'O artigo 201 do CJM em conjugação com o artigo 1º do mesmo código é inconstitucional, por ofensa do artigo 215º da CRP ( revisão de 1989 ), enquanto aí, se qualifica como crime essencialmente militar, o furto, efectuado por militar, de um cheque e de peças de fardamento pertencentes às forças armadas'.
14 – 'Na sequência da revisão constitucional de 1997, foi alterada e renumerada a Constituição, passando os tribunais militares a ter competência para o julgamento dos crimes estritamente militares'.
15 – 'Com a aprovação da Constituição de 1976, foi a natureza do crime que passou a caracterizar o crime essencialmente militar ou estritamente militar e não a qualidade de militar do agente'.
16 – 'O artigo 201º do CJM em conjugação com o artigo 1º do mesmo código, é inconstitucional, por ofensa do artigo 213º da CRP ( na revisão de 97 ), enquanto aí se qualifica como crime essencialmente militar, o furto, efectuado por militar, de um cheque e de peças de fardamento pertencentes às forças armadas'. Em contra-alegações, o Exmo Magistrado do Ministério Público conclui nos seguintes termos:
1 – 'Pode qualificar-se como sendo essencialmente militar o crime de furto, cometido por um militar, relativamente a bens pertencentes e afectos ao serviço das Forças Armadas, dentro das instalações militares e em grosseira violação do especial dever de lealdade, respeito e disciplina, com quebra da relação de confiança que tem necessariamente de existir relativamente a quem está ao serviço da forças armadas'.
2 – 'Nestas circunstâncias, o cometimento do crime de furto – para além de traduzir violação do direito de propriedade – implica lesão de bens jurídicos próprios da comunidade militar, abalando a coesão e disciplina das Forças Armadas, valores essenciais à realização das tarefas de defesa nacional que lhes estão cometidas'.
3 – 'A norma incriminadora do furto militar, ao sancionar tal crime sempre e necessariamente com pena privativa de liberdade ( inclusivé nos casos em que o arguido já não está ao serviço efectivo das Forças Armadas) – ao passo que a norma correspondente do direito penal comum autoriza, segundo as circunstâncias, o julgador a sancionar o furto com prisão ou multa – viola os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade'.
4 – 'Na verdade, a imposição necessária ao arguido de uma pena privativa de liberdade, em quaisquer circunstâncias, não pode justificar-se em função da tutela dos valores típicos da comunidade militar, traduzindo solução legislativa arbitrária e discricionária'. Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2 - As questões de constitucionalidade que o recorrente submete ao conhecimento deste Tribunal são as seguintes: a. Inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da CRP e do disposto no artigo 18º nº 1 também da CRP, da norma do artigo 4º do CJM, na interpretação de que não são aplicáveis ao direito penal militar as normas previstas nos artigos 48º e segs. do Código Penal (CP) relativas à suspensão da execução da pena; b. Inconstitucionalidade da norma do artigo 201º nº 1 alínea d), em conjugação com a do artigo 1º, ambos do CJM, por violação do artigo 215º da CRP
(revisão de 89) e 213º da CRP (revisão de 97) enquanto se qualifica como crime essencialmente militar o furto, efectuado por militar, de um cheque e de peças de fardamento pertencentes às forças armadas; Sustenta o Exmo Magistrado do Ministério Público que se não deve conhecer de outra questão que entende suscitada – ainda que em termos inadequados – pelo recorrente: a da inconstitucionalidade de 'todo o sistema de penas' do CJM. A verdade, porém, é que não pode sequer entender-se suscitada uma tal questão, pois, muito embora o recorrente a ela se refira no requerimento de interposição de recurso, já nas alegações – no próprio corpo e nas conclusões - a omitiu por completo. Mas tem razão aquele Exmo Magistrado quando defende que se não deve conhecer também da questão supra enunciada em a), por inutilidade. O acórdão recorrido, depois de discorrer sobre a alegada inconstitucionalidade da não suspensão da execução das penas em direito penal militar, expressa-se nos seguintes termos:
'Aliás, o recorrente apenas discute academicamente a possibilidade de suspensão da execução das penas militares. Não a pede para si próprio, certamente por reconhecer que, in casu, a gravidade da falta, as circunstâncias com que foi praticada e o dolo intenso empregado na sua execução impediam, mesmo que a referida suspensão fosse possível, que o Tribunal a decretasse.' Quer dizer: no caso, não estariam preenchidos os requisitos necessários para a suspensão da execução da pena se esta fosse, em abstracto, admissível. Um eventual julgamento de inconstitucionalidade em nada se reflectiria, assim, na concreta decisão do caso. A instrumentalidade do recurso de constitucionalidade, em fiscalização concreta, obsta a um tal julgamento: a exigência de utilidade do recurso não consente decisões 'académicas' de inconstitucionalidade. Mau grado o esforço do recorrente para demonstrar que as aludidas considerações do STM não são mais do que um expediente, repetido noutros processos, para a questão não ser apreciada pelo Tribunal Constitucional, não pode este Tribunal sufragar o que não passa de mera conjectura sem qualquer suporte credível nos autos.
3.1 - Limitado o objecto do recurso à questão da constitucionalidade da norma do artigo 201º nº 1 alínea d), em conjugação com a do artigo 1º, ambos do CJM, no ponto em que qualifica como crime essencialmente militar a subtracção fraudulenta, praticada por pessoa integrada ou ao serviço das forças armadas de
'dinheiro, documentos ou quaisquer objectos pertencentes ou afectos ao serviço das mesmas', dela se passa agora a conhecer. Mas antes mesmo de o fazer, importa sublinhar que o poder de cognição do Tribunal, consagrado no artigo 79º-C da Lei nº 28/82, de julgar a inconstitucionalidade ou a ilegalidade com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais ou legais diversos daqueles cuja violação foi invocada, se deverá de qualquer modo compreender no âmbito do objecto do recurso que só ao recorrente compete delimitar: a norma, ou um seu segmento (ou na interpretação que lhes foi dada), cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade é suscitada. Ora, no caso, o recorrente questiona apenas a qualificação do crime como essencialmente militar, nunca se reportando ao segmento que estatui a medida da pena aplicável, razão por que o Tribunal entende que não pode conhecer da
'perspectiva' juridico-constitucional respeitante à proporcionalidade da punição, em contrário do que sustenta o Exmo Magistrado do Ministério Público. Também, em contrário do que defende o recorrente, não pode convocar-se, para o juízo de constitucionalidade sobre a norma em causa, o disposto no artigo 213º da CRP, na redacção dada pela revisão de 97, cuja entrada em vigor depende, nos termos do artigo 197º da Lei Constitucional nº 1/97, da regulamentação legal do nº 3 do artigo 211º.
3.2 - Dispõe o artigo 201º do CJM, na parte que interessa aos presentes autos:
'1. Aquele que, integrado ou ao serviço das forças armadas, fraudulentamente subtrair dinheiro, documentos, ou quaisquer objectos pertencentes ou afectos ao serviço das mesmas, ou pertencentes a militares, será condenado:
............................................................................................................... d. A presídio militar de seis meses a dois anos, se, não excedendo
40.000$00, for superior a 8.000$00;
..............................................................................................................'
O preceito está inserido na Secção XVII, do Título II ('Disposições especiais)', Capítulo único, este com a epígrafe de 'Crimes essencialmente militares'.
Punido o recorrente por, enquanto integrado nas forças armadas, ter subtraído fraudulentamente fardamento (três boinas e um cinturão), e um cheque no valor de 20.000$00 pertencentes àquelas forças, o juízo de constitucionalidade deverá apenas ponderar a qualificação da subtracção fraudulenta, praticada por militar, de objectos pertencentes à administração militar, como crime essencialmente militar.
O parâmetro de aferição da constitucionalidade da norma em causa desenha-se, em primeira linha, no artigo 215º nº 1 da CRP (revisão de 89) que substancialmente manteve o que dispunha o artigo 218º, na versão inicial e na que resultou da revisão de 82.
A norma constante daquele artigo 215º nº 1 atribui aos tribunais militares competência para o julgamento de crimes essencialmente militares.
Manteve-se, assim, a profunda alteração que a Constituição, logo na sua versão inicial, introduziu na competência dos tribunais militares, os quais de foro pessoal dos militares passaram a ser foro material para julgamento de certos tipos de crimes, independentemente da pessoa que os pratica.
Esta alteração exigiam-na os princípios do Estado de Direito Democrático na rejeição que deles decorre de tribunais com competência exclusiva para o julgamento de determinados tipos de crime, traduzida, aliás, na regra do artigo 213º nº 3 da CRP (versão original).
A evolução vem a culminar com a abolição dos tribunais militares em tempo de paz com a revisão da CRP de 97 – eles são apenas admitidos em tempo de guerra para o julgamento de crimes estritamente militares, por força do artigo
213º, preceito que, como se disse, entrará em vigor, com a regulamentação do nº
3 do artigo 211º, nos termos do artigo 197º da Lei nº 1/97.
Sinal marcante deste concretizado desígnio de compressão das competências dos tribunais militares (em Portugal e noutros países europeus) tem sido a utilização de conceitos como os de 'essencialmente militares'
'exclusivamente militares' 'objectivamente militares' (agora estritamente militares) que, não deixando de revelar um considerável grau de indeterminação, bem expressam a preocupação de reduzir aquela competência ao julgamento de factos intimamente conexos com a instituição militar.
Que factores dessa íntima conexão devem ser ponderados para fundamentar um juízo de constitucionalidade sobre determinada incriminação como crime essencialmente militar é, afinal, a questão decisiva a resolver.
Tem-na resolvido o Tribunal Constitucional em alguns arestos, com realce para o Acórdão nº 271/97, tirado em fiscalização abstracta sucessiva e publicado in DR, I Série-A, de 15/2/97 de que se transcreve o trecho seguinte:
'Certo é que nem todos os juízes que compõem este Tribunal estão de acordo com o conceito de 'crimes essencialmente militares' que vai implicado no passo do Acórdão nº. 347/86, acabado de transcrever, devido à sua excessiva amplitude. Há, assim, quem entenda que não podem ser 'considerados crimes essencialmente militares aquelas condutas cuja única especificidade relativamente aos crimes comuns consista no facto de se conexionarem, de qualquer forma, com a segurança ou a disciplina das Forças Armadas' e considere necessária, para que uma conduta possa ser qualificada como crime essencialmente militar, e não apenas acidentalmente militar, a existência de 'uma ligação estruturalmente indissolúvel entre a razão de ser da punição do acto ilícito e interesses fundamentais da instituição militar ou da defesa nacional' (cf. declarações de voto do conselheiro Luís Nunes de Almeida apostas aos citados Acórdãos nºs. 347/86 e 449/89). Ou ainda quem acentue que 'só serão crimes essencialmente militares os que afectarem bens jurídicos militares – 'direitos e interesses' tutelados constitucionalmente conexionados com a preservação e a subsistência das Forças Armadas' (cf. declaração de voto da conselheira Maria Fernanda Palma junta ao mencionado Acórdão nº. 680/94). Seja como for, é consensual a ideia de que o punctum saliens dos 'crimes essencialmente militares' se encontra na natureza dos bens jurídicos violados, os quais hão-de ser, naturalmente, bens jurídicos militares. Como sublinha J. Figueiredo Dias, 'tal como sucede com o direito penal comum, também o direito penal militar substantivo, para passar a prova de fogo da sua legitimação democrática, tem de ser um direito exclusivamente orientado por e para o bem jurídico', pelo que 'o direito penal militar só pode ser um direito de tutela dos bens jurídicos militares, isto é, daquele conjunto de interesses socialmente valiosos que se ligam à função militar específica: a defesa da Pátria, e sem cuja tutela as condições de livre desenvolvimento da comunidade seriam pesadamente postas em questão' (cf. 'Justiça militar', in Colóquio Parlamentar Promovido pela Comissão de Defesa Nacional, edição da Assembleia da República,
1995, pp. 25 e 26).'
Foi assim que o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a norma do artigo 207º nº 1 alínea b), com referência ao artigo 1º do CJM, enquanto nele se qualifica como crime essencialmente militar o crime culposo de ofensas corporais cometido por militar em acto de serviço, causado por desrespeito de norma de direito estradal.
E, com fundamentação semelhante, decidiu julgar não inconstitucional as normas do artigo 186º nº 1 alíneas a) e d) e nº 2 do CJM, no Acórdão nº
347/86, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional' 8º vol., pp. 585 e segs.; e isto concretamente porque as condutas aí puníveis 'têm uma conexão relevante com o dever militar ou, quando menos, com a segurança ou a disciplina das forças armadas. Ou seja: tais condutas afectam inequivocamente interesses de carácter militar, não saindo, por isso, do âmbito estritamente castrense. Elas, na verdade, atingem – para além do bem jurídico da genuinidade documental , em causa nas falsificações punidas pelo Código Penal – outros valores que são essencialmente militares (o dever militar, a segurança e a disciplina militar)'.
Note-se, porém, que neste último caso a falsificação fora praticada com o objectivo da subtracção de um mancebo ao serviço militar, circunstância que, pelo menos, para um dos Conselheiros que votaram o aresto (Consº L. Nunes de Almeida) relevava decisivamente para se julgar o crime como essencialmente militar.
Com idêntica fundamentação, o Tribunal Constitucional julgou igualmente não inconstitucional as normas dos artigos 186º nº 1 alínea b) e 191 nº 4 do CJM, no Acórdão nº 449/89, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional ',
13º vol. Tomo II, pp1297 e segs.
3.3 - A revisão da legislação penal militar impôs-se, desde logo, com a entrada em vigor da CRP, no mínimo pela delimitação da competência dos tribunais militares que o artigo 218º consagrava.
Vigorava, então, o CJM aprovado pelo Dec. nº 11292, de 26 /11/25, que previa no seu artigo 1º factos que constituem 'crimes essencialmente militares' (1º) e factos que 'tomam o carácter de crimes militares (2º), sendo considerados crimes essencialmente militares os previstos no capítulo I do título II do livro I (§ único).
Crimes essencialmente militares eram, por definição legal, integrados pelos factos que violavam algum dever militar ou ofendiam a segurança e a disciplina do exército ou da armada; o 'carácter de crimes militares' era dado 'em razão da qualidade militar dos delinquentes, do lugar ou de outras circunstâncias'.
Com o CJM aprovado pelo DL nº 141/77, de 9 de Abril, consideram-se
'crimes essencialmente militares' – únicos a que o Código se aplica, por imperativo constitucional – 'os factos que violem algum dever militar ou ofendam a segurança e a disciplina das forças armadas, bem como os interesses militares da defesa nacional, e que como tal sejam qualificados pela lei militar'.
Verifica-se, assim, que o Código vigente incluiu na definição de
'crimes essencialmente militares' o que já constava do conceito expresso no Código anterior, alargando-a aos factos ofensivos dos interesses militares da defesa nacional, tudo com a limitação formal de os crimes merecerem uma tal qualificação pela lei militar.
Curiosamente, a maior parte dos crimes que no Código anterior tinham apenas o carácter de crimes militares – o que de algum modo significava que os factos incriminados não violavam deveres militares ou ofendiam a segurança e a disciplina das forças armadas – passam a ser, no Código vigente 'crimes essencialmente militares' – e é precisamente o caso do crime de furto de objectos pertencentes ao Estado praticado por militares, previsto no artigo 226º do CJM anterior.
Deste facto dá nota o Consº Luís Nunes de Almeida, na sua intervenção no Colóquio Parlamentar sobre Justiça Militar (cfr. 'Justiça Militar
– Colóquio Parlamentar', 1995, pp. 77), ajuizando que o legislador do CJM utilizara um conceito – o de crime essencialmente militar – sedimentado com o sentido de abranger apenas os factos que atingiam bens jurídicos essenciais e específicos da instituição militar, passando ele a compreender situações que nunca como tal haviam sido consideradas.
O artigo 215º nº 1 da CRP (revisão de 89) deixa para a lei a definição do conceito de 'crimes essencialmente militares'.
A liberdade de conformação que é assim deixada ao legislador ordinário não faz com que o juízo de constitucionalidade se baste com a qualificação de crime essencialmente militar que a lei infra-constitucional dê a determinados factos; e nem sequer o próprio conceito legal de 'crime essencialmente militar' fica subtraído a esse juízo, sem embargo de se aceitar que 'a caracterização típica do conceito de 'crimes essencialmente militares' resultará, acima de tudo, da natureza dos bens jurídicos violados em cada crime, sendo certo que, quando se verifique ofensa de interesses específicos elencados no artigo 1º nº 2 do Código (...) existirá, em princípio, um crime daquela natureza' (Acórdão nº 680/94 in DR II Série de 25/2/95, com sublinhado nosso).
Ora, o que na caracterização do crime essencialmente militar o Tribunal Constitucional deixou dito como consensual foi – recorde-se - 'a ideia de que o punctum saliens dos 'crimes essencialmente militares' se encontra na natureza dos bens jurídicos violados, os quais hão-de ser, naturalmente, bens jurídicos militares.'(cit. Acórdão nº 271/97) .
Vejamos, pois, qual o bem jurídico tutelado no crime em causa.
Numa primeira leitura, pareceria que o bem protegido era o património militar.
Se, porém, assim fosse, legítimo seria perguntar se esse bem careceria de tutela no âmbito do direito penal militar, não se bastando com a que a incriminação do furto comum lhe confere.
E, na verdade, não se vê que interesse militar específico (não estando obviamente em causa o furto de outros objectos, como sejam os que constituem material de guerra, tipificado no artigo 205º do CJM) se mostra lesado , para que os factos integrem, na definição do artigo 1º do CJM, um crime essencialmente militar.
Que o bem jurídico tutelado não é (ou não é apenas) o património militar demonstra-o o facto de a norma do artigo 201º incriminar unicamente agentes integrados ou ao serviço das forças armadas; é que a tutela daquele bem, se bastasse para justificar a qualificação do crime como essencialmente militar, imporia, de igual modo, a punição de terceiros.
É precisamente a qualidade dos agentes que faz revelar o verdadeiro bem jurídico em causa – a segurança, a coesão e a disciplina militares – naturalmente lesado pela presença no interior da instituição militar de alguém que, pela sua inserção no meio, tem facilitado o acesso a objectos pertencentes ou afectos às forças armadas.
Sem dúvida que aquele bem é sempre susceptível de lesão com a violação de deveres gerais (não especificamente militares) por quem serve nas forças armadas; o alargamento do conceito de 'crimes essencialmente militares', inevitável por essa via, seria constitucionalmente repelido, razão por que a mera violação de um dever geral, ainda que remotamente atinja bens jurídicos específicos da instituição militar, não pode constituir critério decisivo para justificar, na matéria, um juízo de constitucionalidade.
É, aliás, o que se realça na 'declaração de voto' do Consº L. Nunes de Almeida no cit. Acórdão nº 347/86, depois de se afirmar que não podem ser considerados crimes essencialmente militares as condutas cuja única especificidade consista no facto de se conexionarem, 'de qualquer forma', com a segurança ou a disciplina das Forças Armadas.
'(...) é necessário algo mais que a referida conexão; é necessário que haja uma ligação estruturalmente indissolúvel entre a razão de ser da punição do acto ilícito e interesses fundamentais da instituição militar ou da defesa nacional.
Se assim não fosse, quase sempre a simples qualidade de militar ou o mero facto de a conduta ter sido praticada num espaço afecto à instituição militar conduziriam à possibilidade de a lei vir a qualificar qualquer crime comum como crime essencialmente militar. Com efeito, raras vezes não estaríamos também, em tais casos, perante a violação de um dever militar ou difícil seria, pelo menos, não descortinar, aí, a existência de uma conexão com a segurança ou a disciplina militar.'.
Mas, no caso do crime de furto de objectos pertencentes à administração militar, praticado por militar, se há um círculo de bens ou interesses violados que se justapõe ao do crime de furto comum, o que dele exorbita é já uma área onde os referidos interesses fundamentais da instituição militar são directamente atingidos; o facto de o agente do crime ser militar funciona aqui com uma carga valorativa própria que permite considerá-lo como elemento essencial de conexão com a instituição militar – não como elemento acidental ou acessório como sucedia no crime de homicídio culposo ou de ofensas corporais culposas por desrespeito de normas de direito estradal.
Em suma, pois, o crime de furto previsto no artigo 201º nº 1 alínea d) do CJM, enquanto qualificado como crime essencialmente militar por força do artigo 1º do mesmo Código, seja por nele se tutelar um bem jurídico próprio da instituição castrense, seja por se conexionar estruturalmente com a mesma instituição, não ofende o disposto no artigo 213º da CRP (revisão de 89).
4 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Lisboa, 19 de Janeiro de 1999- Artur Maurício Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa