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Proc. nº 34/98
1ª Secção Rel.: Consº Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1. - U.V. ou N.V., identificado nos autos, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, do acórdão do Tribunal Superior de Justiça de Macau, de 26 de Novembro de 1997, que, confirmando o decidido na
1ª instância, aplicou a norma do nº 1 do artigo 2º da Lei nº 2/94/M, de 4 de Julho, com uma interpretação cuja inconstitucionalidade fora equacionada na 1ª instância, pelo Juiz, e suscitada pelo próprio interessado nas contra-alegações por si apresentadas perante aquele Tribunal Superior, ?por violação das normas e princípios constantes dos artigos 13º, 18º, nº 3, e 62º da CRP?.
Concretamente, questionou-se tal interpretação na medida em que sustenta ?a não usucapibilidade do domínio útil de terrenos cuja área de logradouro exceda em mais de dez por cento a área ocupada por edifícios nele incorporados?.
2. - O recurso não foi, no entanto, recebido pelo Senhor Juiz Desembargador relator, uma vez que, em seu entender, a questão de constitucionalidade não foi levantada no decurso do processo, não se verificando qualquer das situações anómalas ou excepcionais que uma interpretação normativa imprevista possa surpreender a parte.
Foi, então, deduzida reclamação para o Tribunal Constitucional, nos termos do nº 4 do artigo 76º da Lei nº 28/82, peticionando-se a revogação do despacho de não aceitação, de modo a ser substituído por outro que aceite o recurso.
O Tribunal Superior de Justiça de Macau, no entanto, por acórdão de 4 de Fevereiro de 1998, tirado em conferência, confirmou, na íntegra, o despacho reclamado.
Aí se pode ler, na parte que ora interessa:
?[...] o reclamante reconhece - e a verdade se diga é que sempre o manteve - que a questão da inconstitucionalidade surgiu no processo apenas porque o senhor juiz ?a quo? afirmou na decisão que, a seguir a tese do MºPº, haveria violação de preceitos constitucionais e porque o reclamante, mas tão só nas suas alegações ao recurso de tal decisão interposto pelo MºPº, abordou a temática.
A questão não é nova e sobre ela este Tribunal Superior de Justiça tem assumido uma posição uniforme, como se escreveu, nomeadamente, no Ac. de
12.11.97 (Procº nº 196 ? E / 97), segundo a qual, o recurso de inconstitucionalidade, de acordo com o estatuído nos artºs. 280º, nº 4 da C.R.P. e 70º, nº 1, al. b) da Lei nº 28/82, pressupõe, entre outros requisitos, que a questão tenha sido levantada durante o processo, e só excepcionalmente após a decisão final, neste caso apenas quando a inconstitucionalidade tenha sido cometida nessa mesma decisão e não seja exigível aos reclamantes que tivessem previsto o cometimento de tal vício.
Ora, como é fácil de constatar, nem o reclamante suscitou qualquer questão desse tipo durante o processo, nem se perfila uma situação de excepção, na medida em que a interpretação que vem sendo dada ao artº 2º, nº 1, da Lei nº
2/94/M, de 04 de Julho, pelo T.S.J. de Macau é amplamente conhecida, quer pela sua uniformidade, quer pela repetição dos casos que têm acudido à sua jurisdição.?
De acordo com a transcrita argumentação manteve-se o despacho reclamado, como já se observou.
3. - Recebidos os autos neste Tribunal, o Ministério Público, pronunciando-se de harmonia com o disposto no nº 2 do artigo 77º da Lei nº
28/82, emitiu parecer no sentido do deferimento da reclamação, uma vez que, em seu modo de ver, verificam-se os pressupostos de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo do citado artigo 70º, nº 1, alínea b), considerando, para o efeito, que a suscitação do problema de constitucionalidade nas contra-alegações produzidas no recurso de apelação para o Tribunal Superior de Justiça ainda integra momento processualmente idóneo, adequado e tempestivo.
Cumpre decidir.
4. - Interposto recurso de constitucionalidade ao abrigo da alínea b) do citado nº 1 do artigo 70º, para dele conhecer torna-se necessário, além do mais, que a suscitação da questão de constitucionalidade tenha sido feita durante o processo, entendida esta expressão em sentido funcional, que não formal, de modo que o seja não só em termos mas também em tempo de o tribunal recorrido dela tomar conhecimento e decidir.
Não sucederá assim apenas em casos excepcionais em que, pelo carácter anómalo e imprevisível do decidido, se considere não ter havido oportunidade processual de, até esse momento, se cumprir o ónus da suscitação. Esta é, de resto, a jurisprudência firme e reiterada do Tribunal Constitucional, como o demonstram os acórdãos nºs. 21/92 e 155/95, entre tantos outros, publicados no Diário da República, II Série, de 18 de Agosto de 1992
(Suplemento) e 20 de Junho de 1995, respectivamente.
5. - Ora, no caso vertente, a questão foi suscitada pelo próprio recorrente nas contra-alegações da apelação por si apresentada no Tribunal Superior de Justiça, como este próprio reconhece.
De resto, a leitura dessa peça processual, junta por fotocópia aos autos, não oferece dúvida: as partes (ou parágrafos) III e IV das alegações respeitam a essa matéria, que as conclusões sob a alínea A), condensam:
?1.- A remissão cumprida pela norma do nº 4 do artigo 5º da Lei nº
6/80/M, na redacção que à mesma foi dispensada pela Lei nº 2/94/M, ao ancorar o núcleo essencial da disciplina da usucapião do domínio útil de terrenos no direito civil, exige que, na interpretação da norma do nº 1 do artigo 2º deste
último diploma seja cumprida uma tarefa de concordância prática, conciliando dois interesses legalmente tutelados: por um lado, a limitação da extensão de terreno usucapível e, por outro lado, o interesse na pacificação da dominialidade e no reconhecimento da aquisição originária de direitos;
2.- O não cumprimento de tal metódica de adequação, na solução sustentada pelo Digníssimo Magistrado do Ministério Público sustenta uma
?expropriação silente, sem indemnização, com a consequente violação da tutela constitucional da propriedade, tal como esta vai definida no artigo 62º da Constituição da República Portuguesa, aplicável ao Território de Macau;
3.- Tal interpretação viola ainda o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa;
4.- A interpretação sustentada na Apelação consubstancia uma total desvirtuação da posse concretamente exercida enquanto meio de acesso à titularidade jurídica real do direito nos termos do qual a mesma é exercida. Mas, para além disso, ao fundar uma consequência de direito ? a insusceptibilidade de usucapião ? com a qual o usucapiente não podia minimamente contar, dá origem a uma retroactividade sui generis, não consentida pelo disposto no nº 3 do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa;
5.- Da própria literalidade da norma do nº 1 do artigo 2º da Lei nº
2/94/M resulta claro que o que está em questão na disciplina aí instituída é o
?quantum? da aquisição e não o ?an?;?
6. - Posto que assim é, entende-se que a questão de constitucionalidade foi apresentada durante o processo, no sentido que à locução vem sendo dada e que, fulcralmente, exige que a suscitação ocorra em momento processual idóneo para que o tribunal ad quem dela possa conhecer, por a tal se encontrar adstrito.
Na verdade, o Tribunal Superior de Justiça pôde apreciar a questão e, apreciando-a, pronunciar-se sobre ela - como efectivamente fez, ao considerar não existir desrespeito dos princípios ou direitos consagrados na Constituição da República, ?uma vez que do que aqui se trata é única e exclusivamente cumprir um preceito legal limitador do exercício de um direito que nada tem a ver, pois, com regras constitucionais que se restringem ao reconhecimento de tal direito, e nada mais?.
E isto, porque a questão de inconstitucionalidade foi suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal sobre a matéria a que respeita (assim se tem entendido ser tempestiva a equacionação do problema quando ditada para a acta da audiência, no momento em que o tribunal ainda se não pronunciou sobre o mérito da causa: cfr., v.g., o acórdão nº 637/96, publicado no Diário da República, II Série, de 9 de Julho de 1996, referindo-se
à audiência prevista no artigo 423º do Código de Processo Penal).
7. - Em face do exposto, decide-se deferir a presente reclamação, determinado-se, em consequência, que o despacho reclamado seja substituído por outro a admitir o recurso interposto para este Tribunal.
Lisboa, 2 de Julho de 1998 Alberto Tavares da Costa Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Vitor Nunes de Almeida Artur Mauricio Maria Helena Brito Luis Nunes de Almeida