Imprimir acórdão
Processo n.º 907/11
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, A. veio interpor recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
2. O objeto do recurso é especificado, nos seguintes termos:
“ Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade do arco normativo constituído pelos nº 3, do artº 47º, nºs 1 e 2 do artº 49º do Código Penal e nºs 2 e 3 do artº 489º do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido de já não ser de todo possível pagar em prestações a pena de multa após o decurso do prazo do nº 2 do artº 489º do C.P.P., mesmo que ainda não tenha sido proferido qualquer despacho que promova a sua conversão em prisão subsidiária.”
3. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão Sumária de não conhecimento do recurso.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se, nomeadamente, o seguinte:
“(…) O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência dum objeto normativo – norma ou interpretação normativa – como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
(…) Comecemos por verificar se o recorrente suscitou previamente, de forma adequada, perante o tribunal a quo, a questão de constitucionalidade que erigiu como objeto do presente recurso de constitucionalidade.
O cumprimento do pressuposto de admissibilidade do recurso, agora em apreciação, pressupõe que a questão de constitucionalidade seja levantada, junto do tribunal a quo, de uma forma expressa, direta e clara, criando para esse tribunal um dever de pronúncia sobre tal matéria.
Exige-se, neste âmbito, uma precisa delimitação e especificação do objeto de recurso e uma fundamentação, minimamente concludente, com um suporte argumentativo que inclua a indicação das razões justificativas do juízo de inconstitucionalidade defendido, de modo a tornar exigível que o tribunal a quo se aperceba e se pronuncie sobre a questão jurídico-constitucional, antes de esgotado o seu poder jurisdicional (cfr. v.g. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 708/06 e 630/08, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, in casu, analisada a motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Guimarães – peça processual em que o recorrente deveria ter suscitado ou renovado a suscitação da questão de constitucionalidade que pretendesse ver apreciada em ulterior recurso a interpor para o Tribunal Constitucional – constata-se que o recorrente se reporta à alegada violação da Lei Fundamental, nos seguintes termos:
“ (…) a interpretação altamente restritiva que o tribunal a quo fez nos despachos de fls. 136 e 154 dos nºs 2 e 3 do artº 489° do C.P.P., é inconstitucional por violação dos comandos do n° 1, do artº 20° e nº 1, do artº 32° da C.R.P.
(…)
Com efeito a melhor interpretação do arco normativo constituído pelos nºs 3, do artº 47°, nºs 1 e 2 do artº 49° do C.P. e nºs 2 e 3 do artº 489° do C.P.P. mais consentânea com os referidos comandos constitucionais, é a de que pese embora o pedido de pagamento da multa em prestações por princípio deva ser formalizado no prazo do respetivo pagamento, pode, ainda assim, ser apresentado até ao momento em que o arguido é notificado nos termos do nº 3 do artº 49º do C.P..
(…)
E a razão é simples. Se em bom rigor, nos termos do nº 2 do artº 49º do C.P., o condenado pode a todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa a que foi condenado, então não se verificam especiais razões que justifiquem que lhe esteja vedado o pedido de pagamento em prestações sempre e quando ainda se não tenha iniciado o procedimento tendente à conversão da multa em prisão, apesar de ultrapassado o prazo (formal) assinalado nas guias emitidas para o pagamento da multa de uma vez.
(…)
Pois se se permite que após a conversão da multa em prisão o condenado possa pagar a todo o tempo, total ou parcialmente, a multa em que foi primitivamente condenado, por que não permitir que o mesmo possa formalizar o pedido do seu pagamento em prestações antes da respetiva conversão em prisão, mormente se apresentar razões que justifiquem a apresentação tardia do pedido?
(…)
Parece-nos ser esta a melhor interpretação do arco normativo citado.
(…)
E a mais consentânea do mesmo com os comandos constitucionais referidos.
(…)
Com efeito, a negativa é uma mera solução formal, que não aporta qualquer benefício substancial, seja do ponto de vista dos fins das penas, seja do ponto de vista da assunção da própria pena por parte do condenado.
(…)
Aliás, em bom rigor a redação do nº 3 do artº 489° do C.P.P. não veda esta possibi1idade.
(…)
É o que resulta de uma correta apreciação dos factos e a melhor interpretação e aplicação dos nºs 3 e 4 do artº 47°, nºs 1, 2 e 3 do artº 49° do Código Penal, nºs 2 e 3 do artº 489° do C.P.P. e nº 1 do artº 20° e n° 1 do artº 32° da C.R.P., coisa que o douto Tribunal a quo não fez.”
Do excerto transcrito resulta que o recorrente se limita a expor a interpretação que reputa mais adequada, quanto ao regime legal relativo à execução e prazos de cumprimento da pena de multa, sendo que, em bom rigor, os argumentos que utiliza se prendem com regras atinentes à interpretação das normas infraconstitucionais, nomeadamente a coerência do regime previsto no Código Penal e Código de Processo Penal, correspondendo, nesse contexto, a referência à adequação com os princípios constitucionais a um argumento de apoio ou confirmação da tese interpretativa perfilhada pelo recorrente.
O juízo de inconstitucionalidade – fundado na violação dos artigos 20.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Lei Fundamental – é, nestes termos, reportado, de uma forma simplista, à “interpretação altamente restritiva que o tribunal a quo fez nos despachos de fls. (…) dos nºs 2 e 3 do artº 489º do C.P.P.”, não sendo concretamente especificado o critério normativo reputado constitucionalmente desconforme, nem desenvolvido qualquer discurso argumentativo que, de uma forma minimamente substanciada, justifique e concretize as razões do juízo conclusivo de violação dos específicos preceitos constitucionais indicados.
Em conformidade, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães não se pronuncia sobre qualquer questão de constitucionalidade normativa, limitando-se a justificar a opção pela tese da decisão recorrida, em detrimento da tese defendida pelo recorrente, rebatendo os critérios interpretativos em que esta última assenta.
Ora, a descrita forma de suscitação da questão de constitucionalidade não pode ser considerada adequada.
A este propósito, pode ler-se no Acórdão n.º 178/95, disponível no sítio da internet já aludido, o seguinte:
“De facto, tendo a questão de constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e percetível (cf., entre outros, acórdão nº 269/94, Diário da República, II série, de 18 de junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos de que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adotado, por ser incompatível com a Lei Fundamental.”
Assim, não tendo o recorrente suscitado a questão de constitucionalidade – que posteriormente erige como objeto do presente recurso de constitucionalidade – previamente, de forma adequada, enunciando-a, em termos autónomos, explícitos e rigorosos, aduzindo uma fundamentação densificante, em termos argumentativos, do juízo conclusivo de desconformidade com a Lei Fundamental, de forma a criar para o tribunal a quo um específico dever de pronúncia sobre tal questão, mas, ao invés, utilizando o argumento da inconstitucionalidade como uma referência incidental ou complementar, na defesa do sentido que reputa mais correto, quanto à interpretação do regime de prazos de exercício da faculdade do pagamento da multa em prestações, ficou definitivamente prejudicada a possibilidade de vir, ulteriormente, interpor recurso para o Tribunal Constitucional.”
É esta a Decisão Sumária que é alvo da presente reclamação.
4. O reclamante refere que, ao contrário do que menciona a Decisão Sumária reclamada, a questão de constitucionalidade, erigida como objeto do recurso, foi suscitada de forma adequada, nos artigos 25.º e 26.º da motivação do recurso dirigido ao Tribunal da Relação de Guimarães e ainda nas alíneas t) e u) das conclusões da mesma peça processual.
Em abono da sua tese, acrescenta o reclamante que o tribunal a quo se pronunciou sobre a questão, originando “uma declaração de voto vencido que, justamente, pugna por solução que vai no mesmo sentido em que o recorrente colocou a questão.”
Nesta consonância, conclui pedindo a admissão do recurso interposto.
5. O Ministério Público, em resposta, manifesta a sua concordância com a Decisão Sumária proferida.
Explicita que, na motivação do recurso para a Relação de Guimarães, o reclamante “discorre sobre qual a melhor interpretação das normas, mas não enuncia em termos minimamente claros qual a interpretação que seria violadora da Constituição.”
Acresce que, contrariamente ao que afirma o reclamante, “a Relação de Guimarães, no acórdão recorrido, não apreciou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa – ali não se mencionando, sequer, qualquer preceito ou princípio constitucional – o que bem se compreende porque tal questão não foi suscitada, como se diz na decisão reclamada, “de forma a criar para o tribunal a quo um específico dever de pronúncia.”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentos
6. Analisada a reclamação apresentada, conclui-se que os argumentos aduzidos pelo reclamante não infirmam a correção do juízo efetuado, na Decisão Sumária proferida, consubstanciando-se sobretudo numa manifestação de discordância face ao sentido de tal decisão.
Na verdade, defende o reclamante que cumpriu o ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, de forma adequada, remetendo para as seguintes menções, constantes da motivação do recurso dirigido ao Tribunal da Relação de Guimarães:
“ (…) a interpretação altamente restritiva que o tribunal a quo fez nos despachos de fls. 136 e 154 dos nºs 2 e 3 do artº 489° do C.P.P., é inconstitucional por violação dos comandos do n° 1, do artº 20° e nº 1, do artº 32° da C.R.P.
(…)
Com efeito a melhor interpretação do arco normativo constituído pelos nºs 3, do artº 47°, nºs 1 e 2 do artº 49° do C.P. e nºs 2 e 3 do artº 489° do C.P.P. mais consentânea com os referidos comandos constitucionais, é a de que pese embora o pedido de pagamento da multa em prestações por princípio deva ser formalizado no prazo do respetivo pagamento, pode, ainda assim, ser apresentado até ao momento em que o arguido é notificado nos termos do nº 3 do artº 49º do C.P.. “
Os excertos assinalados pelo reclamante – que já tinham sido alvo de análise da decisão reclamada – apenas demonstram que, de facto, tal como se refere na decisão posta em crise, “o recorrente se limita a expor a interpretação que reputa mais adequada, quanto ao regime legal relativo à execução e prazos de cumprimento da pena de multa”, apresentando a mesma como “mais consentânea com os (…) comandos constitucionais”, sem especificar – em termos autónomos, explícitos e rigorosos – qual o critério normativo que reputa constitucionalmente desconforme e sem desenvolver qualquer discurso argumentativo que, de uma forma minimamente substanciada, justifique e concretize as razões do juízo de inconstitucionalidade que formula, com referência aos específicos parâmetros da Lei Fundamental alegadamente violados.
Em conformidade – ao contrário do que defende o reclamante – “o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães não se pronuncia sobre qualquer questão de constitucionalidade normativa, limitando-se a justificar a opção pela tese da decisão recorrida, em detrimento da tese defendida pelo recorrente, rebatendo os critérios interpretativos em que esta última assenta”, como se refere na decisão reclamada.
A circunstância de a declaração de voto junta aludir, na fundamentação da sua tese, a argumento extraído do princípio constitucional da igualdade não altera a afirmação feita, no sentido de que o reclamante não suscitou previamente, de forma adequada, uma questão de constitucionalidade normativa, de forma a criar para o tribunal a quo um específico dever de pronúncia sobre tal questão.
Pelo exposto, sendo certo que a decisão reclamada merece a nossa concordância, damos por reproduzida a sua fundamentação e, em consequência, concluímos pelo indeferimento da reclamação apresentada.
III – Decisão
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se confirmar a Decisão Sumária reclamada, proferida no dia 29 de fevereiro de 2012, e, em consequência, indeferir a reclamação apresentada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 28 de março de 2012.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.