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Processo n.º 45/98 Conselheiro Messias Bento
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. P..., na sequência da condenação que lhe foi imposta pelo Supremo Tribunal de Justiça (acórdão de 26 de Fevereiro de 1992), pela prática de um crime de associação criminosa para a prática de tráfico de estupefacientes e de dois crimes de tráfico agravado de estupefacientes (17 anos de prisão e em 1 500
000$00 de multa), recorreu, sem êxito, para o Plenário das Secções Criminais do mesmo Supremo Tribunal. Inconformado com o acórdão desse Plenário, de 27 de Janeiro de 1993 (no qual se tirou o assento n.º 2/93, contendo a seguinte doutrina obrigatória para os tribunais judiciais: 'para os fins dos artigos 1º, alínea f), 120º, 284º, n.º 1,
303º, n.º 3, 309º, n.º 2, 359º, nºs 1 e 2, e 379º, alínea b), do Código de Processo Penal, não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica
(ou convolação), ainda que se traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave'), interpôs ele recurso para o Tribunal Constitucional. Este Tribunal, pelo seu acórdão n.º 279/95 (publicado no Diário da República, II série, de 28 de Julho de 1995), decidiu 'julgar inconstitucional - por violação do princípio constante do artigo 32º, n.º 1, da Constituição - o disposto no artigo 1º, alínea f), conjugado com os artigos 120º, 284º, n.º 1, 303º, n.º 3,
309º, n.º 2, 359º, nºs 1 e 2, e 379º, alínea b), e interpretado nos termos constantes do assento 2/93, como não constituindo alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), mas tão-só na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídico-penal dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que o arguido seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa'; e, em consequência, revogou a decisão recorrida, a fim de ser 'reformulada em consonância com o decidido sobre a questão de constitucionalidade'. Posteriormente, este Tribunal, pelo seu acórdão n.º 445/97 (publicado no Diário da República, I série-A, de 5 de Agosto de 1997), veio a declarar
'inconstitucional, com força obrigatória geral - por violação do princípio constante do n.º 1 do artigo 32º da Constituição - a norma ínsita na alínea f) do n.º 1 do artigo 1º do Código de Processo Penal, em conjugação com os artigos
120º, 284º, n.º 1, 303º, n.º 3, 309º, n.º 2, 359º, nºs 1 e 2, e 379º, alínea b), do mesmo Código, quando interpretada, nos termos constantes do acórdão lavrado pelo Supremo Tribunal de Justiça em 27 de Janeiro de 1993 e publicado sob a designação de 'assento 2/93', na 1ª série do Diário da República, de 10 de Março de 1993 - aresto esse entretanto revogado pelo acórdão n.º 279/95 do Tribunal Constitucional -, no sentido de não constituir alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica, mas tão-somente na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídica dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que este seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa'. O Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, na sequência dos citados acórdãos nºs 279/95 e 445/97 do Tribunal Constitucional, proferiu, então, o acórdão de 13 de Novembro de 1997. Nele, reformulou o assento n.º 2/93, fixando a seguinte doutrina obrigatória para os tribunais judiciais: 'ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta exista, o tribunal pode proceder a uma alteração do correspondente enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente dê conhecimento e, se requerido, prazo, para que o mesmo possa organizar a respectiva defesa jurídica'. E, além disso, decidiu que 'não há lugar, pelas razões indicadas na fundamentação, a revisão da decisão recorrida'.
2. É deste acórdão, de 13 de Novembro de 1997, que vem o presente recurso, interposto pelo arguido, para 'ver apreciada a inconstitucionalidade da norma constante da alínea f) do artigo 1º do Código de Processo Penal, na interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida, em conjugação com os artigos 120º, 284º, n.º 1, 303º, n.º 3, 309º, n.º 2, 359º, nºs 1 e 2, e 379º, alínea b), todos do Código de Processo Penal', uma vez que - disse - 'tal interpretação viola, nomeadamente, o princípio constante do n.º 1 do artigo 32º e o artigo 29º da Constituição da República Portuguesa e o acórdão n.º 445/97, de 25 de Junho, do Tribunal Constitucional'. Registe-se que o recorrente, inicialmente, disse pretender interpor recurso ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do mencionado artigo 70º, mas depois veio requerer a rectificação, pois, em verdade, 'pretendia dizer a alínea g) do mesmo número e artigo, conforme decorre do facto de indicar como violado o acórdão n.º 445/97, de 25 de Junho'. Neste Tribunal, alegou o recorrente, concluindo do modo seguinte:
1. Deve ser declarada a inconstitucionalidade da alínea f), do nº 1, do CPP, na interpretação que lhe foi dada no acórdão recorrendo;
2. O conceito de alteração substancial dos factos é definido pelo legislador, uma vez que a sua definição não se alcança pela mera constatação naturalística;
3. Verifica-se uma 'alteração substancial dos factos', nos termos da alínea f), do nº 1, do artigo 1º, do CPP, sempre que uma qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou a consideração de novos factos ou circunstâncias, conduza à importação ao arguido de um crime diverso daquele de que vinha acusado ou à agravação dos limites máximos das sanções aplicadas
4. Verificando-se uma alteração substancial dos factos, terão que ser observadas as regras processuais constantes do artigo 359º do CPP, com vista à apresentação de defesa, pelo arguido;
5. A inobservância do disposto no artigo 359º do CPP, determina a nulidade da sentença proferida, por desrespeito das garantias de defesa do arguido;
6. Consubstanciando violação do disposto no artigo 32º da CRP;
7. A mutação da qualificação jurídica que não possibilite a sua adequada oposição pelo arguido que venha, por via dela, a ser punida por novo crime não previsto ou com pena cujos limites máximos sejam mais graves do que aqueles outros de que ele se defendeu, implica uma lesão efectiva do princípio do contraditório;
8.Caracterizando-se o sistema processual penal pela estrutura acusatória e pelo respeito pelo princípio da acusação, impõe-se a vinculação e estabilização do objecto do processo, limitando-se assim os poderes cognitivos do tribunal e delimitando materialmente o caso julgado;
9. Estes valores garantem a estabilidade processual, acautelam os direitos dos sujeitos processuais e tutelam a certeza jurídica inerente à delimitação do caso julgado;
10. Nesta medida, o princípio da vinculação temática é um princípio constitucional que decorre do próprio princípio da legalidade;
11. A alteração substancial de factos, significa a alteração do próprio objecto do processo que a lei, por regra, não consente senão com limites apertados.
12. O objecto do processo é o crime tal como está definido na alínea a), do nº
1, do artigo 1º, do CPP;
13. A circunstância de a lei não empregar o conceito de 'novos factos' quando define a alteração substancial de factos e sucedendo que tal conceito existe no Código [artigo 449º, nº 1, alínea d)], mostra que de coisas diferentes se trata;
14. Considerar que integra o limite da convolação permitida, a qualificação de circunstâncias modificativas agravantes não previstas, desde que a factualidade subjacente seja pré-existente, ofende princípios constitucionais;
15. Ofende o princípio do contraditório (artigo 32º, nº 5, da CRP), o qual abrange hoje as questões incidentais e a prova, mas também o tratamento dado ao arguido em termos de possibilidade de participar nas alterações jurídicas e intervir tempestivamente quanto às questões de direito que se coloquem;
16. Ofende também o princípio das garantias de defesa (artigo 32º, nº 1, da CRP), o qual impõe um processo justo e leal sem encurtamento intolerável ou desproporcionado das garantias de defesa;
17. Ofende, finalmente, o princípio da igualdade de armas que está consignado na Constituição como decorrência do princípio da igualdade.
O recorrente, com as suas alegações, juntou um parecer do Professor GERMANO MARQUES DA SILVA, onde se formulam as seguintes conclusões:
1ª. A alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação ou da pronúncia, ou seja, a condenação por crime diverso ou mais grave do que for proposto ou 'pedido' na acusação, mediante a indicação das disposições legais aplicáveis, em conformidade com o que dispõe o nº 3 do artigo 283º do CPP, implica que a eventualidade da alteração seja comunicada ao arguido para que ele possa defender-se em função da nova qualificação.
2ª. Se da alteração da qualificação resultar alteração substancial da acusação é aplicável, directamente ou por analogia, o disposto no artigo 359º, nº 3, do Código de Processo Penal.
3ª. A alegação em recurso do vício ocorrido na 1ª instância, não equivale nem supre o direito de defesa que o artigo 359º confere ao arguido, já que o direito de defesa há-de ser conformado em função do que o arguido poderia fazer se a nova qualificação constasse ab initio da acusação.
4ª. Consequentemente, verificado em recurso da decisão de 1ª instância que não foi permitido ao arguido que exercesse o direito de defesa que a Constituição lhe confere, deve considerar-se viciada a decisão condenatória proferida na 1ª instância e declarar-se essa decisão nula, por aplicação directa ou analógica do artigo 379º do Código de Processo Penal. O Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal conclui a sua alegação, dizendo que não deve conhecer-se do objecto do recurso. Para assim concluir, disse, em síntese, que o Tribunal 'não pode arrogar-se um poder ilimitado de controlo do modo como os outros tribunais executam as suas decisões quanto a julgamentos em matéria de constitucionalidade'; e 'a fiscalização da constitucionalidade só pode incidir sobre normas e não sobre decisões judiciais'. Ouvido o recorrente sobre a questão prévia do não conhecimento do recurso, suscitada pelo Ministério Público, veio ele dizer, em síntese, que o Supremo Tribunal de Justiça não executou a decisão do Tribunal Constitucional, pois que,
'não obstante a declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Tribunal Constitucional, o Supremo Tribunal de Justiça continuou a interpretar e a aplicar a norma em causa conforme o seu entendimento. Interpretação e aplicação essas que, no douto acórdão proferido em 13 de Novembro de 1997, continuam a ser violadoras da Constituição'.
3. Cumpre decidir. II. Fundamentos:
4. A questão prévia do conhecimento do recurso:
4.1. Preliminarmente, recorda-se que este Tribunal, no seu acórdão n.º 279/95, julgou 'inconstitucional - por violação do princípio constante do artigo 32º, n.º 1, da Constituição - o disposto no artigo 1º, alínea f), conjugado com os artigos 120º, 284º, n.º 1, 303º, n.º 3, 309º, n.º 2, 359º, nºs 1 e 2, e 379º, alínea b), e interpretado nos termos constantes do assento 2/93, como não constituindo alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), mas tão-só na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídico-penal dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que o arguido seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa'; e, em consequência, revogou a decisão recorrida, a fim de ser 'reformulada em consonância com o decidido sobre a questão de constitucionalidade'. Lembra-se também que, no acórdão n.º 445/97, veio este Tribunal a declarar
'inconstitucional, com força obrigatória geral - por violação do princípio constante do n.º 1 do artigo 32º da Constituição - a norma ínsita na alínea f) do n.º 1 do artigo 1º do Código de Processo Penal, em conjugação com os artigos
120º, 284º, n.º 1, 303º, n.º 3, 309º, n.º 2, 359º, nºs 1 e 2, e 379º, alínea b), do mesmo Código, quando interpretada, nos termos constantes do acórdão lavrado pelo Supremo Tribunal de Justiça em 27 de Janeiro de 1993 e publicado sob a designação de 'assento 2/93', na 1ª série do Diário da República, de 10 de Março de 1993 - aresto esse entretanto revogado pelo acórdão n.º 279/95 do Tribunal Constitucional -, no sentido de não constituir alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica, mas tão-somente na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídica dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que este seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa'. Sublinha-se, por outro lado, que foi em execução destes arestos que o Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça veio a proferir o acórdão que agora está em recurso (ou seja: o acórdão de 13 de Novembro de 1997), no qual reformulou o assento n.º 2/93, fixando doutrina que constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais; e no qual também decidiu não haver lugar a 'revisão da decisão recorrida'. Neste acórdão de 13 de Novembro de 1997, consignou o Supremo Tribunal de Justiça o seguinte: Nestes termos, e em função do exposto, e atento o decidido pelo acórdão do Tribunal Constitucional, de 31 de Maio de 1995 [é o acórdão n.º 279/95], e pelo acórdão com força obrigatória geral, do mesmo Tribunal Constitucional, n.º
445/97, publicado no Diário da República, I série, de 5 de Agosto de 1997, reformulam o assento 2/93 e fixam a seguinte doutrina, constitutiva de jurisprudência, obrigatória para os tribunais judiciais (artigo 445º do Código de Processo Penal):
'Ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta exista, o tribunal pode proceder a uma alteração do correspondente enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente dê conhecimento e, se requerido, prazo, para que o mesmo possa organizar a respectiva defesa jurídica'.
E acrescentou: Não há lugar, pelas razões indicadas na fundamentação, a revisão da decisão recorrida. Significa isto que o Supremo Tribunal de Justiça, neste acórdão de 13 de Novembro de 1997, decidiu que, no tocante à condenação proferida, não havia necessidade de reformular o acórdão de 27 de Janeiro de 1993, no qual tinha negado provimento ao recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, interposto do seu acórdão condenatório, de 26 de Fevereiro de
1992, não obstante neste último ter qualificado diferentemente os factos constantes da sentença da 1ª instância e agravado a condenação aí imposta: na 1ª instância, o arguido tinha sido condenado na pena de 14 anos de prisão e 1 000
000$00 de multa, por um crime continuado de tráfico agravado de estupefacientes e outro de associação criminosa; o Supremo Tribunal de Justiça condenou-o na pena de 17 anos de prisão e na multa de 1 500 000$00, pela prática de um crime de associação criminosa para a prática de tráfico de estupefacientes e de dois crimes de tráfico agravado de estupefacientes. (Regista-se que a sentença da 1ª instância já tinha qualificado como crime de tráfico agravado de estupefacientes os factos que a acusação qualificara como crime de tráfico de estupefacientes). Esta alteração da qualificação jurídica, feita oficiosamente pelo Supremo Tribunal de Justiça, com o consequente agravamento da punição, 'baseou-se - lê-se no acórdão de 13 de Novembro de 1997 - no entendimento expresso de que não correspondia a alteração substancial de factos descritos na acusação a simples modificação do enquadramento jurídico dos mesmos factos, quer em relação ao tipo legal do crime, quer em relação ao número de vezes em que o crime convolado havia sido cometido'.
4.2. Importa, então, saber se, no caso, se verificam os pressupostos do recurso da mencionada alínea g) do n.º 1 do artigo 70º.
Colocando a questão de outro modo: o facto de o aresto recorrido não ter reformulado o acórdão de 27 de Janeiro de 1993 no que toca ao julgamento do feito penal (apenas reformulou o assento então tirado) constituirá fundamento do recurso previsto na mencionada alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional?
4.2.1. O Ministério Público - depois de recordar que este Tribunal tem sublinhado não poder arrogar-se um poder ilimitado de controlo do modo como os outros tribunais 'executam as suas decisões quanto a julgamentos em matéria de constitucionalidade' - afirma que o modo como os outros tribunais executam as decisões do Tribunal Constitucional é insindicável, 'na medida em que implica valoração de provas e de factos e interpretação e aplicação do direito ordinário'. E acrescenta: Estranhar-se-á a forma como, no acórdão recorrido, se interpretou o juízo de inconstitucionalidade, pois se bastasse ao arguido, para se defender relativamente à convolação efectuada, 'colocar a questão de forma exaustiva, quer no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, quer no recurso para o Tribunal Constitucional', certamente que este Tribunal não se teria pronunciado no sentido da inconstitucionalidade. Mas, como é jurisprudência firme deste Tribunal, a fiscalização da constitucionalidade só pode incidir sobre normas e não sobre decisões judiciais.
4.2.2. O recorrente, por sua parte - depois de, no requerimento de interposição do recurso ter dito que uma 'tal interpretação viola, nomeadamente, o princípio constante do n.º 1 do artigo 32º e o artigo 29º da Constituição da República Portuguesa e o acórdão n.º 445/97, de 25 de Junho, do Tribunal Constitucional'
-, na resposta à questão prévia de não conhecimento do recurso, suscitada pelo Ministério Público, veio dizer que o Supremo Tribunal de Justiça continuou a interpretar e a aplicar a norma atrás referida - a norma que se extrai da conjugação da alínea f) do n.º 1 do artigo 1ºdo Código de Processo Penal com os artigos 120º, 284º, n.º 1, 303º, n.º 3, 309º, n.º 2, 359º, nºs 1 e 2, e 379º, alínea b), do mesmo Código - apesar de ela ter sido declarada inconstitucional por este Tribunal. E que, por isso, se deve conhecer do recurso.
4.2.3. Vejamos, então: Quer o recurso da mencionada alínea g) encontre o seu fundamento no interesse de fazer prevalecer as decisões do Tribunal Constitucional em questões de constitucionalidade [cf. os acórdãos nºs 257/89 e 214/90 (publicados no Diário da República, II série, de 29 de Agosto de 1989 e de 17 de Setembro de 1990)], quer esse fundamento radique, antes, num 'propósito de defesa da Constituição'
[cf. MIGUEL GALVÃO TELES, A competência da competência do Tribunal Constitucional (Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional, Coimbra,
1995, página 118, nota 22)], sempre se tratará, em tal recurso, 'de não deixar subsistir decisões de outros tribunais que julguem questões de constitucionalidade divergentemente dos julgamentos feitos sobre a matéria pelo Tribunal Constitucional' (cf. o citado acórdão n.º 214/90). Esta razão, que é válida para os casos em que uma decisão de um tribunal aplicou uma norma que o Tribunal Constitucional já antes julgou inconstitucional, 'vale redobradamente - são ainda palavras do mesmo acórdão n.º 214/90 -, quando um tribunal aplica uma norma que o Tribunal Constitucional já declarou inconstitucional com força obrigatória geral'. Por conseguinte, quando se verifique uma situação de não acatamento de uma declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por um qualquer tribunal, da decisão deste cabe recurso para o Tribunal Constitucional, fundado na mencionada alínea g). O não acatamento da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, verifica-se, obviamente, quando uma decisão de um tribunal aplica, de forma clara e ostensiva, a norma que foi declarada inconstitucional, com força obrigatória geral. Mas verifica-se também quando a decisão, parecendo, embora, acatar a declaração de inconstitucionalidade, no entanto, não obedece ao respectivo sentido e alcance - ou seja, quando, como se escreveu no acórdão n.º
528/96 (publicado no Diário da República, II série, de 18 de Julho de 1996), ela não tem 'em conta o sentido e alcance [...] da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral'. Em ambas as situações, com efeito, existe aplicação da norma que a declaração de inconstitucionalidade eliminou do ordenamento jurídico. Acontece apenas que, nas situações do segundo tipo, essa aplicação é uma aplicação implícita. A competência para dizer se houve ou não desrespeito por determinada declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral (maxime, para dizer se a decisão judicial em causa teve ou não em conta o sentido e alcance dessa declaração de inconstitucionalidade), pertence, naturalmente, ao próprio Tribunal Constitucional, como se decidiu no acórdão n.º 528/96, acabado de citar.
É que - decidiu-se nos acórdãos nºs 186/91 e 318/93 (publicados no Diário da República; II série, de 10 de Setembro de 1991 e de 2 de Outubro de 1993) e repetiu-se no mencionado acórdão n.º 528/96 - é ao Tribunal Constitucional que compete fazer a interpretação do sentido e alcance de uma declaração de inconstitucionalidade, 'assim se obtendo o entendimento com que deve valer tal declaração'. Ao que acresce que - como se decidiu no acórdão n.º 316/85 e se repetiu no acórdão n.º 269/98 (publicados no Diário da República, II série, de
14 de Abril de 1986 e de 31 de Março de 1998, respectivamente) - o Tribunal Constitucional é o competente para decidir definitivamente sobre a sua própria competência: desde logo - observou-se no primeiro dos arestos acabados de referir - é ele quem diz (e di-lo definitivamente) 'se as questões que sobem até ele para serem julgadas são ou não questões de constitucionalidade ou de ilegalidade que se inscrevam no seu poder jurisdicional'. Claro é que - como se sublinhou no acórdão n.º 318/93, acabado de citar, e se repetiu, entre outros, no acórdão n.º 462/94 (publicado no Diário da República, II série, de 21 de Novembro de 1994) - não é razoável um alargamento da competência do Tribunal Constitucional que vise, especificamente, 'o controlo do modo como o tribunal recorrido 'executou' a anterior decisão do Tribunal Constitucional'. Não o é, sempre que isso implique 'valoração de provas e de factos e interpretação e aplicação do direito ordinário': trata-se de operações que, de per si, são insindicáveis pelo Tribunal Constitucional.
Assim é que, nos citados acórdãos nºs 318/93 e 462/94, o Tribunal, para alicerçar a decisão de não tomar conhecimento do recurso que, em ambos os casos, tinha sido interposto de decisões judiciais subsequentes a uma declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, começou por sublinhar que, no caso, elas não desrespeitavam 'o alcance da declaração de inconstitucionalidade'. Identicamente, no acórdão n.º 94/90 (publicado no Diário da República, II série, de 19 de Julho de 1990), o Tribunal - que também não conheceu do recurso interposto de um aresto subsequente a uma declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral - começou por sublinhar que
'no acórdão [...] se não fez, minimamente que seja, apelo a norma considerada inconstitucional ou como tal declarada com força obrigatória geral'; e acrescentou que 'o juízo sobre os elementos fácticos ao seu dispor levado a cabo pela Relação de Lisboa é algo que não pode ser sindicado pelo Tribunal Constitucional'. De igual modo, esteve subjacente ao acórdão n.º 596/97 - que, com votos de vencido, não conheceu do recurso de uma decisão que fora reformada em execução de um julgamento de inconstitucionalidade proferido por este Tribunal - a ideia de que essa reforma, ordenada por este, tinha sido feita 'em conformidade (expressamente confessada) com o âmbito do juízo de inconstitucionalidade constante do acórdão' a que ela visava dar execução.
4.3.4. Assente que cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões de outros tribunais que desrespeitem o sentido e alcance de uma declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral; e que o Tribunal Constitucional é o competente para dizer se sim ou não houve tal desrespeito; há que fixar o sentido e alcance da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do acórdão n.º acórdão n.º 445/97; e, de seguida, verificar se esse sentido e alcance foi ou não observado pelo acórdão recorrido. Pois bem: o teor da declaração de inconstitucionalidade aqui em causa - volta a recordar-se - é o seguinte: Este Tribunal declara inconstitucional, com força obrigatória geral - por violação do princípio constante do n.º 1 do artigo 32º da Constituição - a norma
ínsita na alínea f) do n.º 1 do artigo 1º do Código de Processo Penal, em conjugação com os artigos 120º, 284º, n.º 1, 303º, n.º 3, 309º, n.º 2, 359º, nºs
1 e 2, e 379º, alínea b), do mesmo Código, quando interpretada, nos termos constantes do acórdão lavrado pelo Supremo Tribunal de Justiça em 27 de Janeiro de 1993 e publicado sob a designação de 'assento 2/93', na 1ª série do Diário da República, de 10 de Março de 1993 - aresto esse entretanto revogado pelo acórdão n.º 279/95 do Tribunal Constitucional -, no sentido de não constituir alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica, mas tão-somente na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídica dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que este seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa' Para atingir esta conclusão, o Tribunal ponderou, entre o mais, o seguinte: Naquelas garantias [refere-se às garantias de defesa], indubitavelmente, compreende-se um direito do arguido a poder pronunciar-se sobre as questões que, directa ou indirectamente, se repercutem na pretensão punitiva do Estado e da qual ele é alvo; e, em consequência, para que se efective adequadamente um tal direito, mister é que a lei adjectiva criminal preveja os adequados mecanismos possibilitadores, quer para alertar o arguido de que o tribunal do julgamento entende que não foi correcta a subsunção jurídico-penal levada a efeito na acusação ou na pronúncia - subsunção essa que implicaria uma condenação criminal menos grave do que aquela intentada pelo juiz do julgamento - quer para lhe facultar a oportunidade de quanto à nova qualificação exercer cabalmente os seus direitos de defesa. O Tribunal fez a afirmação acabada de transcrever, depois de lembrar o acórdão nº 279/95, atrás citado. Neste aresto - para além de se afirmar que 'um exercício eficaz do direito de defesa não pode deixar ter por referência um enquadramento jurídico-criminal preciso', uma vez que 'dele decorrem, ou podem decorrer, muitas das opções básicas de toda a estratégia de defesa (a escolha deste ou daquele advogado, a opção por determinadas provas em vez de outras, o sublinhar de certos aspectos e não de outros, etc.)' -, escreveu-se, significativamente, o seguinte: Sendo mais gravosa para o arguido esta nova incriminação, não pode deixar de se lhe facultar, com a comunicação da eventualidade da sua ocorrência, uma sequência processual, situada na fase de julgamento, em que, sendo previsível essa nova incriminação, o arguido possa discuti-la e adaptar a sua defesa a essa alteração. O sentido e alcance da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do mencionado acórdão nº 445/97, é, pois, o seguinte: o tribunal que proceda a uma diferente qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, que importe a condenação do arguido em pena mais grave,antes de a ela proceder, deve prevenir o arguido da tal possibilidade, dando-lhe, quanto a ela, oportunidade de defesa.
Ora, o aresto aqui em recurso (o já referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Novembro de 1997) reformulou, nos termos que se deixaram indicados, o assento n.º 2/93. Mas, quanto ao julgamento do feito penal, decidiu que 'não há lugar, pelas razões indicadas na fundamentação, a revisão da decisão recorrida'. Ou seja: como já atrás se deixou dito, decidiu que, nessa parte, não havia necessidade de reformular o acórdão de 27 de Janeiro de 1993, que confirmara o acórdão condenatório, de 26 de Fevereiro de 1992, que, oficiosamente, alterou a qualificação jurídica dos factos constantes da sentença e agravou a condenação imposta na 1ª instância. Concluiu desse modo pelas razões seguintes: Atento o que para trás ficou referido, tem de se reconhecer que a construção doutrinária que foi expendida no acórdão reformulando só exige uma pequena correcção, que é a de que a alteração da incriminação constante da acusação ou da pronúncia deve ser oportunamente comunicada ao arguido, para que ele dela se possa defender, nas alegações finais, com eventual suspensão da audiência pelo prazo estritamente indispensável para tanto, por aplicação analógica do preceituado no artigo 358º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Mas uma tal reformulação não se traduz, no caso concreto, em qualquer alteração da decisão proferida no processo à ordem do qual o arguido foi condenado, o processo comum 98/90, da 2ª Secção do 2º Juízo do Funchal, por manifesta inutilidade, na medida em que, embora a alteração de qualificação, feita na primeira instância, não ter sido previamente comunicada ao arguido, o processado posterior, em que ele colocou a correspondente questão jurídica, de forma exaustiva, quer no recurso para este Supremo Tribunal, quer no recurso para o Tribunal Constitucional, o que significa que o mesmo acabou por ter, no recurso que interpôs, toda a oportunidade, de resto muito bem aproveitada, de se defender juridicamente em relação à convolação efectuada, bem como em relação ao pedido, que nele foi formulado pelo Ministério Público, também recorrente, de aumento da medida da punição. O simples cotejo destas transcrições mostra que o acórdão recorrido só em parte respeitou a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do mencionado acórdão n.º 445/97: respeitou-a, quando reformulou o assento n.º 2/93; mas desrespeitou-a, no seu sentido e alcance, continuando a aplicar a norma declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, numa dimensão atingida por tal declaração, quando não se deu ao arguido a oportunidade de se defender da diferente qualificação jurídica, com o agravamento da condenação feita, oficiosamente, pelo próprio Supremo Tribunal de Justiça. Não basta, de facto, constatar que o arguido 'acabou por ter, no recurso que interpôs, toda a oportunidade [...] de se defender juridicamente em relação à convolação efectuada, bem como em relação ao pedido [...] de aumento da medida da punição'; e que 'ele colocou a correspondente questão jurídica, de forma exaustiva, quer no recurso para este Supremo Tribunal, quer no recurso para o Tribunal Constitucional'. Como refere o Ministério Público, 'se bastasse ao arguido, para se defender relativamente à convolação efectuada, 'colocar a questão de forma exaustiva, quer no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, quer no recurso para o Tribunal Constitucional', certamente que este Tribunal não se teria pronunciado no sentido da inconstitucionalidade'. Tendo havido desrespeito do sentido e alcance da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do acórdão n.º
445/97, verificados se acham os pressupostos do recurso da alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, razão por que deve passar-se ao conhecimento do mesmo, desatendendo-se a questão prévia suscitada pelo Ministério Público.
5. A questão de constitucionalidade: Como é bom de ver, tendo a norma aqui sub iudicio sido declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo citado acórdão n.º 445/97, não pode, agora, o Tribunal reapreciar tal questão de constitucionalidade. Neste momento, resta-lhe apenas fazer aplicação da mencionada declaração de inconstitucionalidade, que é - volta a insistir-se - 'vinculativa de todos os
órgãos constitucionais, de todos os tribunais e de todas as autoridades administrativas' [cf. a acórdão n.º 186/91 (publicado no Diário da República, II série, de 10 de Setembro de 1991), que cita, a propósito, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2º volume, 2ª edição, páginas 535-536)]. III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:
(a) desatender a questão prévia suscitada pelo Ministério Público;
(b). e, em aplicação da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do acórdão n.º 445/97 (publicado no Diário da República, I série-A, de 5 de Agosto de 1997), revogar o acórdão recorrido, a fim de ser reformulado em conformidade com essa declaração de inconstitucionalidade, com o sentido e alcance antes explicitados. Lisboa, 15 de Julho de 1998 Messias Bento Luis Nunes de Almeida Maria Helena Brito José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Vitor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Maria dos Prazeres Beleza Artur Mauricio Bravo Serra (com a declaração de que entendo que não foi no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que houve lugar a uma diferente qualificação juridica dos factos mas, antes, que acolheu essa diferente qualificação, já vinda do acórdão condenatório proferido em 1ª instância. Essa consideração, contudo, não tem, na minha óptica, qualquer repercussão no julgamento que, no presente aresto, se efectua). José Manuel Cardoso da Costa