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Proc. n.º 731/99 Acórdão nº 140/02 Plenário Relatora: Maria Helena Brito Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I O pedido e os seus fundamentos
1. O Procurador-Geral da República requereu, em Novembro de 1999, ao Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 281º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, alínea e), da Constituição da República Portuguesa, que aprecie e declare a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos seguintes preceitos legais:
a) Artigo 31º do Decreto-Lei n.º 242/97, artigo 30º do Decreto-Lei n.º 243/97, artigo 31º do Decreto-Lei n.º 244/97 e artigo 28º do Decreto-Lei n.º 245/97, todos de 18 de Setembro de 1997
Os diplomas referidos aprovaram a orgânica, respectivamente, do Teatro Nacional de S. João (TNSJ), da Orquestra Nacional do Porto (ONP), do Teatro Nacional D. Maria II (TNDM) e da Companhia Nacional de Bailado (CNB).
O primeiro daqueles preceitos é do teor seguinte:
'Aos actos e contratos abrangidos pelos artigos 29º e 30º é aplicável o disposto na alínea a) do artigo 47º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto'.
Os demais preceitos questionados têm o mesmo teor, apenas diferindo no número dos artigos, a que se reportam, do correspondente diploma.
A Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto, é, por sua vez, a 'Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas', sendo que, na alínea a) do seu artigo 47º, para que aqueles preceitos remetem, são excluídos da fiscalização prévia (visto) desse Tribunal, inter alia, os actos e contratos praticados ou celebrados por certas entidades (as incluídas no elenco do artigo 2º, n.ºs 2 e
3, da mesma Lei).
O sentido e alcance das normas questionadas é, assim, o de estabelecer uma isenção de visto prévio (do Tribunal de Contas) para os actos e contratos de que tratam: essa é, de resto, justamente a epígrafe que levam todas as correspondentes disposições.
b) Artigo 22º, n.º 2, dos Estatutos do Instituto Marítimo Portuário (IMP), aprovados pelo Decreto-Lei n.º 331/98, de 3 de Novembro, que dispõe como segue:
'Os actos e contratos do IMP não estão sujeitos ao visto do Tribunal de Contas'.
c) Artigo 1º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 299-B/98, de 29 de Setembro, que cria o Instituto Nacional do Transporte Ferroviário (INTF), com a seguinte redacção:
'Aos actos e contratos praticados ou celebrados pelo INTF aplica-se o previsto na alínea a) do artigo 47º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto'.
Ou seja, utilizando uma vez mais a remissão cujo alcance já ficou esclarecido [supra, a)], a norma exclui, igualmente, do visto prévio do Tribunal de Contas esses actos ou contratos. d) Artigo 15º, n.º 2, dos Estatutos do Instituto das Estradas de Portugal
(IEP), artigo 15º, n. 4, dos Estatutos do Instituto para a Construção Rodoviária
(ICOR) e artigo 15º, n.º 2, dos Estatutos do Instituto para a Conservação e Exploração da Rede Rodoviária (ICERR), estatutos, todos eles, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 237/99, de 25 de Junho
Trata-se, em todos estes casos, de preceitos que, remetendo para a alínea a) do artigo 47º da Lei n.º 98/97, excluem da fiscalização prévia do Tribunal de Contas os actos e contratos desses Institutos.
O teor de tais disposições é o seguinte:
'Aos actos e contratos praticados ou celebrados pelo IEP [vel, pelo ICOR, vel pelo ICERR] aplica-se o previsto na alínea a) do artigo 47º da Lei n.º
98/97, de 26 de Agosto'.
2. O pedido fundamenta-se na circunstância de a isenção do visto prévio do Tribunal de Contas, relativamente a certos actos e contratos, em alguns dos casos, e relativamente a todos os actos e contratos praticados ou celebrados pelos organismos referidos, noutros casos, ser estabelecida por normas editadas pelo Governo, sem prévia autorização parlamentar.
O que o requerente argui é, portanto, a inconstitucionalidade orgânica dessas normas (as enunciadas e transcritas supra, 1.), por violação da reserva consignada no artigo 165º, n.º 1, alínea p), da Constituição da República Portuguesa (na parte, obviamente, relativa à 'organização e competência dos Tribunais').
Para fundamentar esta arguição, argumenta o Procurador-Geral da República, básica e resumidamente, como segue: a) A definição da jurisdição e da competência do Tribunal de Contas consta presentemente da Lei n.º 98/97. De harmonia com essa definição, a jurisdição do Tribunal estende-se aos institutos públicos [artigo 2º, n.º 1, alínea d)]; e na sua competência material inscreve-se a de 'fiscalizar previamente a legalidade e o cabimento orçamental dos actos e contratos de qualquer natureza que sejam geradores de despesas ou representativos de quaisquer encargos e responsabilidades, directos ou indirectos, para as entidades referidas no n.º 1 do artigo 2º'.
A delimitação rigorosa do âmbito de incidência desta fiscalização prévia (ou visto) resulta dos artigos 46º e 47º da Lei, sendo que este último preceito estabelece taxativamente os actos e contratos que são excluídos de tal fiscalização prévia: ela é excluída, nomeadamente, por força do 47º, alínea a), da Lei, quanto aos actos e contratos das entidades referidas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 2º da Lei, entidades essas entre as quais se contam as empresas públicas, mencionadas na alínea b) do artigo 2º da Lei (cfr. artigos 1º e 2º do requerimento). b) Todas as entidades a que se reportam as normas abrangidas pelo pedido
(supra, 1.) 'têm, face aos respectivos diplomas estatutários, a natureza de institutos públicos' [itálico acrescentado].
E nem essa qualificação 'é afectada pelo facto de algumas dessas entidades deterem – em grau diferenciado – natureza empresarial [itálico acrescentado], atento, nomeadamente, o regime da respectiva gestão financeira e patrimonial'; no pedido, esta asserção é demonstrada com a distinção, nas entidades em causa, de três tipos de situações diferentes (cfr. artigos 3º a 5º do requerimento). c) A definição da competência do Tribunal de Contas, em sede de fiscalização prévia, é matéria incluída na reserva de competência legislativa da Assembleia da República [artigo 165º, n.º 1, alínea p), da Constituição] – pelo que não é lícito a um decreto-lei editado no exercício da competência própria do Governo 'dispor inovatoriamente sobre esse tema' (isentando de visto actos e contratos a ele sujeitos por força das disposições da Lei n.º 98/97) ou
'pretender interpretar autenticamente' o regime constante dos preceitos legais que definem essa competência material do Tribunal (cfr. artigo 6º do requerimento). d) Ora, as normas objecto do pedido, editadas sem autorização parlamentar, dispõem directamente sobre essa matéria, 'isentando de visto actos e contratos, celebrados pelos institutos públicos atrás referidos, que a ele poderiam considerar-se sujeitos, face a uma possível interpretação do preceituado nos artigos 2º, n.º 1, alínea d), e 5º, n.º 1, alínea c), da citada Lei n.º 98/97'. E, isto, seja dizendo-o directamente, seja remetendo para um preceito dessa lei [a alínea a) do artigo 47º] 'que, na sua literalidade, apenas prevê a isenção de fiscalização prévia relativamente às entidades referidas no artigo 2º, n.ºs 2 e 3' (cfr. artigos 7º a 11º do requerimento). e) Entretanto, a conclusão, no sentido da inconstitucionalidade, a que assim tem de chegar-se, não é afastada pela tendência mais recente para reduzir o âmbito do controlo prévio do Tribunal, nem pela circunstância de não ser legítimo extrair da Lei n.º 98/97 qualquer sinal expansivo do controlo prévio
(considerações, estas, de 'Parecer' da Procuradoria-Geral, que se cita).
'É que' – diz-se – 'nem todos os institutos públicos em causa têm um regime de gestão financeira e patrimonial moldado segundo o direito privado e plenamente equiparável ao das empresas públicas' (essas, sim, legalmente dispensadas da fiscalização prévia).
'E mesmo' – acrescenta-se e sublinha-se – 'quanto aos institutos públicos – como o ICOR – em que tal equiparação tem efectivamente lugar, por o respectivo diploma orgânico acentuar a sua vertente empresarial, continua a delimitação da competência material do Tribunal de Contas, em sede de fiscalização prévia, a ter necessariamente de radicar numa autónoma interpretação dos preceitos da Lei n.º 98/97 que a definem, não sendo lícito a um decreto-lei, não credenciado por autorização parlamentar, interpretar autenticamente tais preceitos, dispondo expressa e directamente sobre o preenchimento da norma de competência contida na referida alínea a) do artigo
47º daquela Lei' (cfr. artigos 12º a 15º do requerimento).
3. Notificado, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54º e 55º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o Primeiro-Ministro contestou, na sua resposta, a conclusão e o pedido do Procurador-Geral da República, com uma argumentação que radica basicamente na natureza das entidades em causa.
Com efeito, partindo da noção e do âmbito das categorias de
'instituto público' e de 'empresa pública', e registando o aparecimento, nessa grelha institucional, de 'institutos públicos empresariais', ou 'institutos públicos de estrutura híbrida' (os quais submetem uma parte dos actos e contratos que aprovam ou celebram ao direito público e outra parte aos princípios da gestão privada), alega o Primeiro-Ministro ser esse justamente o caso de quase todos os 'institutos públicos' (só se omite a referência ao Instituto Marítimo-Portuário) abrangidos pelo pedido, como exemplifica (cfr. artigos 8º a 16º da resposta).
Assim, em consonância com esse regime legal dualista, e tendo em conta que da conjugação dos preceitos pertinentes (e já acima referidos) da Lei n.º 98/97 resulta que a 'fiscalização prévia' do Tribunal de Contas incide sobre os actos e contratos dos 'institutos públicos' (meramente administrativos), mas não das 'empresas públicas', há-de concluir-se – diz o Primeiro-Ministro – que os actos ou contratos dos entes ora em causa, quando 'celebrados de acordo com as regras do direito público' (isto é, actuando aqueles como 'institutos públicos em sentido estrito') ficam sujeitos ao 'visto' prévio daquele Tribunal, mas já não assim quando 'praticados ou celebrados em observância das regras do direito privado' (isto é, enquanto os mesmos entes actuarem como 'empresas públicas') (cfr. artigos 17º a 19º da resposta).
Consequentemente, as normas questionadas que remetam 'certos actos' de gestão (de cada um dos respectivos entes), 'regidos pelo direito privado'
(nos termos do regime das empresas públicas, que se lhes aplica subsidiariamente), para o regime de isenção de controlo prévio estabelecido na alínea a) do artigo 47º da Lei n.º 98/97, longe de inovarem, limitam-se a proceder ao reenvio para um regime que já era o aplicável a tais actos: essas normas em nada violam, portanto, a reserva parlamentar da alínea p) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição. Ora, é isso que 'claramente sucede com o artigo 31º do Decreto-Lei n.º 244/97, o artigo 28º do Decreto-Lei n.º 245/97, o artigo 30º do Decreto-Lei n.º 243/97 e o artigo 31º do Decreto-Lei n.º 242/97' [trata-se das normas respeitantes às entidades de fim cultural atrás referidas, a saber, o Teatro Nacional D. Maria II, a Companhia Nacional de Bailado, a Orquestra Nacional do Porto e o Teatro Nacional de S. João] (cfr. artigos 20º e 21º da resposta).
Já quando as normas questionadas 'estipulam, indeterminadamente, um reenvio geral de actos e contratos', praticados ou celebrados pelo respectivo ente, para o dito regime de isenção de visto, podem levantar-se – reconhece o Primeiro-Minstro – 'problemas de interpretação': e isso justamente porque haverá actos e contratos desse mesmo ente (ou desses mesmos entes) que são 'regidos pelo direito público, não se encontrando, como tal, submetidos ao regime de isenção de fiscalização prévia'. Simplesmente – continua o Primeiro-Ministro –
'se de uma interpretação constitucional se trata, importa que a mesma, dentro de um princípio de aproveitamento dos actos, seja realizada conformemente à legalidade e à Constituição', donde que, nas normas ora em causa, há-de ver-se a
'intenção do legislador em proceder a um reenvio per relationem para o regime de isenção contido na alínea a) do artigo 47º da Lei n.º 98/97' no tocante apenas aos 'actos e contratos sujeitos ao direito privado, e praticados ou celebrados pelos [respectivos] institutos ao abrigo do «ordenamento» das empresas públicas'. Ora, com esta interpretação restritiva, também tais normas não estarão em desconformidade com a Constituição (cfr. artigos 22º a 25º da resposta).
4. Discutido em Plenário o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal, nos termos do artigo 63º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, e fixada a orientação do Tribunal, foi o processo distribuído à relatora, ao abrigo do disposto no artigo 63º, n.º 2, parte final, da mesma Lei.
Cumpre agora apreciar e decidir.
II Análise da questão de constitucionalidade
5. A resposta a dar ao problema de constitucionalidade suscitado no presente processo depende do entendimento que se adoptar quanto ao alcance, em geral, da inclusão na reserva parlamentar da definição da competência do Tribunal de Contas – inclusão essa que é indiscutível, face à conjugação do enunciado na alínea c) do n.º 1 do artigo 209º, na alínea d) do n.º 1 do artigo
214º e na primeira parte da alínea p) do n.º 1 do artigo 165º, todos, naturalmente, da Constituição.
Na verdade, um entendimento possível – ao menos teoricamente – dessa reserva seria o de que ela apenas implicaria ou exigiria que fosse a Assembleia da Republica a definir os tipos ou modalidades de controlo (ou de procedimento de controlo) em cujo exercício (ou desencadeamento) se vasaria ou consubstanciaria a função de 'órgão supremo de fiscalização da legalidade das despesas públicas e de julgamento de contas' que é constitucionalmente cometida ao Tribunal de Contas: a ser assim, a definição do universo institucional em que tal fiscalização ou julgamento incidiria já ficaria de todo fora da reserva. Dir-se-ia que não era mais do que matéria 'organizacional', da competência
'natural' do Governo.
Com um tal entendimento das coisas, claro que a questão de constitucionalidade posta nos autos logo ficaria precludida: não haveria dúvida de que as disposições legais em causa não poderiam enfermar do vício que lhes vem apontado.
Só que, se esta conclusão seria clara, poderia contrapor-se que semelhante entendimento encurtaria em termos excessivos o âmbito da reserva parlamentar em apreço: ela viria unicamente a abranger, afinal, as 'formas' do controlo financeiro do Estado, deixando por completo de fora a 'extensão'
(susceptível de ser considerada em várias dimensões) desse controlo. O que significaria que qualquer orientação ou opção que a Assembleia da República entendesse adoptar ou tomar nesse último domínio (da 'extensão', mormente institucional, do controlo) poderia sempre ser modificada ou invertida pelo Governo, sem necessidade de autorização daquela. Tal resultado não seria certamente o que melhor corresponde ao espírito da reserva que resulta da conjugação do teor do n.º 1 do artigo 214º com a alínea p) do n.º 1 do artigo
165º da Constituição.
O afastamento deste entendimento não pode significar, todavia, a adopção de um outro (radicalmente inverso ou simétrico), que atribua à reserva em causa um alcance tal que acabe por afectar o que já será próprio, efectivamente, da competência 'natural' do Governo, em matéria de organização da Administração pública, dos serviços públicos e do sector público da economia.
Por outras palavras: se deve considerar-se incluída na reserva parlamentar a definição genérica, quer do tipo de entidades, organismos e serviços que ficam sujeitos à jurisdição do Tribunal de Contas, quer das suas despesas e contas que devem ser submetidas à fiscalização ou julgamento do Tribunal de Contas, quer da natureza e termos da correspondente fiscalização ou julgamento, já o Governo – que poderá seguramente 'moldar' cada singular elemento do universo institucional da Administração e do sector públicos segundo o que tiver, em cada momento, como mais conveniente ao interesse geral, conferindo-lhes uma certa ou antes uma outra natureza jurídica – poderá, de igual modo, tirar as consequências que dessa sua opção decorram no tocante à sujeição ou não do elemento institucional em causa, e das respectivas despesas,
à jurisdição do Tribunal de Contas. Ou seja, o Governo poderá 'concretizar' e explicitar, no correspondente diploma orgânico, se, sim ou não, ou até que ponto, tal jurisdição se estende a essa entidade ou ente – naturalmente à luz ou tendo em conta o âmbito geral daquela jurisdição, tal como parlamentarmente definido.
Ora, logo daqui se retira um relevante corolário: é o de que podem e devem ter-se por improcedentes, desde já, as considerações que no requerimento inicial pretendem fundar (ainda ou em último termo) a inconstitucionalidade das normas sub judicio (ou de algumas delas) na circunstância de não ser lícito a um decreto-lei não autorizado proceder à 'interpretação autêntica' das normas parlamentares sobre a competência do Tribunal de Contas, havendo estas de ser sempre objecto de uma 'interpretação autónoma'.
Uma tal impostação do problema há-de ser, na verdade, liminarmente rejeitada: é que não é de 'interpretação autêntica' que se trata, na legislação governamental em causa; é, sim, de 'organização' da Administração e do sector públicos e (no que especificamente respeita às normas em apreço) de uma intervenção 'concretizadora', o que, em si mesmo ou em princípio (isto é, abstraindo do 'conteúdo' das correspondentes normas), cabe na competência própria do Executivo.
A questão que se coloca no caso dos autos é, portanto, tão-só a de saber se, nessa 'concretização', o diploma governamental respeitou a indicação e os limites a que o Governo estava adstrito, decorrentes da definição geral do
âmbito da competência do Tribunal de Contas, tal como constante da Lei n.º
98/97. Se o fez, não terá havido invasão da reserva parlamentar; se o não fez
(se, por exemplo, pretendeu nalgum caso introduzir uma 'excepção' àquela definição geral), então, porque não autorizado previamente para o efeito, terá excedido a sua competência e violado a mesma reserva.
Sendo assim, a análise que importa fazer implica a consideração sucessiva dos dois seguintes pontos:
– em primeiro lugar, o de estabelecer e clarificar o âmbito da competência geral do Tribunal de Contas, tal como resulta da Lei n.º 98/97, no preciso domínio que agora importa: o da fiscalização ou do 'visto' prévio de certos actos geradores de despesa, responsabilidades ou encargos;
– em segundo lugar (e porque por esses elementos justamente passa a definição e delimitação da competência do Tribunal, no seu conjunto, e dessa sua competência específica, em particular), o de 'qualificar' ou estabelecer a natureza de cada um dos entes ou entidades, bem como dos actos geradores de despesas ou encargos e responsabilidades, a que se reportam as normas sub judicio.
6. A determinação do âmbito da competência do Tribunal de Contas, segundo a Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto, não suscita, no domínio que importa considerar, especiais dificuldades.
6.1. A jurisdição, em geral, do Tribunal de Contas estende-se hoje – de acordo com o diploma mencionado (que tem alterações posteriores, mas que não relevam para o caso em apreciação) – a um universo institucional que ultrapassa largamente o Estado, stricto sensu, e as outras pessoas colectivas públicas de população e território, e os seus serviços e organismos, ainda que personalizados.
Na verdade, abrange um universo 'público' mais vasto, que inclui os domínios associativo e empresarial, e estende-se inclusivamente, dentro dos correspondentes limites, a certos entes 'privados' que recebam fundos públicos ou tenham participação de capital público (cfr. artigo 2º, n.ºs 1, 2 e 3, da Lei n.º 98/97).
6.2. No tocante, porém, à fiscalização prévia, ou sujeição a 'visto', de certas despesas, a competência do Tribunal é – logo no que toca ao universo institucional abrangido – mais limitada, como imediatamente decorre da alínea c) do n.º 1 do artigo 5º e é, depois, corroborado pelo disposto na alínea a) do artigo 47º, ambos da citada Lei.
Assim, por essa fiscalização só está abrangido aquele mais restrito conjunto de entes ou entidades a que começou por aludir-se, e cujo elenco consta do n.º 1 do artigo 2º (ou seja, o Estado, as Regiões Autónomas, as autarquias locais, com as suas associações ou federações e as áreas metropolitanas, e os respectivos serviços, os institutos públicos e as instituições de segurança social), dela ficando de fora, pois, todos os entes do segundo grupo a que se fez referência, e que constam dos n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo 2º (assim, nomeadamente, as associações públicas, as empresas públicas e as entidades a que pode chamar-se sociedades 'públicas').
De um modo geral, pode dizer-se que a competência do Tribunal de Contas – no que diz respeito à fiscalização prévia dos actos geradores de despesas ou representativos de encargos e responsabilidades, praticados por certas entidades – se estende às entidades incluídas no chamado sector público administrativo mas não às entidades incluídas no chamado sector público empresarial.
Evidenciada esta contraposição, o ponto que nela importa sublinhar – como obviamente decorre dos termos do pedido formulado no presente processo e do teor da maior parte das normas que integram o seu objecto – é o de que, enquanto os institutos públicos (mais exactamente, os seus actos e contratos geradores de despesas ou representativos de encargos ou responsabilidades) estão em geral sujeitos ao 'visto' do Tribunal de Contas, o mesmo não acontece com as empresas públicas.
A razão de ser da diferença de regime a que se encontram sujeitos, neste ponto, os institutos públicos e as empresas públicas justifica-se, desde logo, pelo diferente grau de autonomia de gestão que caracteriza uma e outra categoria de entidades e pode também relacionar-se com a diferente lógica de funcionamento que preside aos institutos públicos e às empresas públicas. Na verdade, o sistema da 'fiscalização prévia' de certas despesas (de certos actos e contratos geradores de despesas ou representativos de encargos ou responsabilidades) – que, necessariamente, envolve interferência na gestão, implica rigidez de actuação, provoca demoras na prática dos actos – não seria facilmente compatível com a autonomia e a 'lógica empresarial' que devem orientar a actividade das empresas, ainda que de empresas públicas se trate
(cfr. Orlando de Carvalho, 'Empresa e lógica empresarial', Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Ferrer-Correia, vol. IV, Coimbra, 1997, p. 3 ss).
7. Na análise a desenvolver quanto ao segundo ponto antes enunciado, importa dar resposta à questão de saber se as entidades a que respeitam as normas questionadas hão-de qualificar-se como 'institutos públicos', tout court, ou podem (e devem) qualificar-se antes como 'empresas públicas' (ou, ao menos, e quanto a algumas dessas entidades, se os actos, de realização de despesas ou de assunção de encargos e responsabilidades, a que as correspondentes normas respeitam, podem, e devem, ser havidos como de natureza 'empresarial pública'). Isto, naturalmente, à luz e para os efeitos, em qualquer caso, das disposições antes citadas da Lei n.º 98/97.
Ou, vistas as coisas numa outra perspectiva (que pode ter-se como a correspondente ao teor, pelo menos, da maior parte das normas impugnadas): a questão será a de saber se a qualificação dos entes em causa como 'empresas públicas', ou, ao menos, dos seus actos geradores de despesas, encargos e responsabilidades, como actos de gestão 'empresarial pública', sempre para os ditos efeitos – qualificação essa implicitamente assumida nas normas impugnadas ou delas decorrente –, é correcta e admissível. Se o for, o Governo, ao excluir esses actos do 'visto' prévio do Tribunal de Contas, não terá ultrapassado os limites da sua competência própria.
7.1. Refira-se, em primeiro lugar, que, posteriormente à emissão da Lei n.º
98/97, a noção legal de 'empresa pública' sofreu uma profunda alteração e alargamento, com a publicação do Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro, que operou uma revisão global do regime jurídico do sector empresarial do Estado e revogou o Decreto-Lei n.º 260/76, de 8 de Abril (definidor, até aí, das 'bases gerais do regime das empresas públicas').
Se a noção de 'empresas públicas', no quadro desse primitivo diploma, tinha um sentido jurídico muito preciso, ligado a uma específica forma de constituição, prevista no mesmo diploma (ou ao facto da 'nacionalização'), com o Decreto-Lei n.º 558/99 essa ligação conceitual desfez-se: determinante é agora o elemento (económico) da detenção efectiva da empresa pelo Estado (lato sensu), independentemente da forma jurídica dela. Com efeito, 'empresas públicas' são também – e desde logo – as 'sociedades' de direito comercial nas quais o Estado ou outras entidades públicas possam exercer, isolada ou conjuntamente, de forma directa ou indirecta, uma influência determinante, através da detenção da maioria do capital ou dos direitos de voto ou do direito de designar e destituir os membros dos órgãos de administração ou fiscalização
(artigo 3º, n.º 1).
Este alargamento do conceito, porém, em nada veio alterar as coisas, no que agora importa.
A tal respeito, cabe ponderar, desde logo, que, havendo a Lei n.º
98/97 sido emitida em tempo em que vigorava ainda o Decreto-Lei n.º 260/76, e só podendo ela, consequentemente, ter tido em conta a correspondente noção de
'empresas públicas', quando às mesmas se refere [v. alínea b) do n.º 2 do artigo
2º e cfr. as alíneas seguintes], é com essa noção, evidentemente, que terá de operar-se aqui, para a destrinça institucional que há que fazer (e tanto mais quanto os diplomas que integram as normas questionadas foram também, todos eles, emitidos igualmente na vigência do Decreto-Lei n.º 260/76).
Mas a isso, e em definitivo, acresce que o Decreto-Lei n.º 558/99, ao perfilhar um diferente e mais amplo conceito de 'empresas públicas', continua a incluir, e a destacar, nessa categoria, a par das 'sociedades' antes referidas, uma outra sub-categoria, que justamente corresponde ao tipo (e ao universo) de empresas de que se tratava no Decreto-Lei n.º 260/76: chama-lhes agora entidades públicas empresariais, definidas como 'pessoas colectivas de direito público, com natureza empresarial, criadas pelo Estado' (v. o n.º 2 do artigo 3º e o artigo 23º do citado Decreto-Lei n.º 558/99).
Quer isto dizer que apenas haverá, agora, que reportar precisamente a essas 'entidades', seja a referência da Lei n.º 98/97 às 'empresas públicas', seja a distinção entre estas e os 'institutos públicos', com a consequente qualificação de cada ente em concreto (ou dos seus actos), que têm de fazer-se, no quadro e para os efeitos dessa Lei.
7.2. Dito isto, cabe antes de mais precisar o relevo que deve atribuir-se à qualificação nominal da entidade em causa – isto é, à qualificação que lhe for directa e expressamente dada no respectivo diploma orgânico ou no seu preâmbulo.
Na verdade, verifica-se que, pelo menos quanto a algumas dessas entidades, aqueles diplomas logo as 'definem' como 'institutos públicos': assim, nomeadamente, o Decreto-Lei n.º 331/98, quanto ao Instituto Marítimo-Portuário, o Decreto-Lei n.º 299-B/98, quanto ao Instituto Nacional do Transporte Ferroviário, e o Decreto-Lei n.º 237/99, quanto ao Instituto das Estradas de Portugal, o Instituto para a Construção Rodoviária e o Instituto para a Conservação e Exploração da Rede Rodoviária (v., em todos esses diplomas, o preâmbulo e o artigo 1º).
Ora, se se entende que não deve fazer-se tábua rasa de tal qualificação ou definição (é, naturalmente, uma primeira e importante indicação, que há-de levar-se na devida conta), também se julga que ela não tem de ter-se por definitiva ou decisiva.
A tal respeito, poderá logo evocar-se, e perguntar se não deverá aplicar-se também aqui, uma já recuada observação de Afonso Rodrigues Queiró
(feita a propósito da classificação das pessoas colectivas, e da respectiva qualificação como 'públicas' ou 'privadas') de que 'o legislador não é positivamente a autoridade melhor qualificada' para proceder a caracterizações dessa índole, pelo que só 'em princípio' se deve reconhecer como correcta a caracterização que adopte (v. Lições de Direito Administrativo, Coimbra,
1956/57, p. 260).
Mas a isso acresce que, segundo o ensinamento mais antigo e tradicional (Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, tomo I, 10ª ed., 5ª reimp., Coimbra, 1991, p. 190), continuando a encontrar eco na doutrina
(cfr., por último, Vital Moreira, Administração Autónoma e Associações Públicas, Coimbra, 1998, p. 343 ss, com exaustiva indicação da restante literatura), o conceito de 'instituto público', no seu sentido lato, abrange as próprias
'empresas públicas', stricto sensu. Assim sendo, como há-de poder ter-se por decisiva, no contexto do problema que agora importa resolver, a circunstância de o legislador recorrer àquele conceito ? Pois não poderá suceder que ele
'encubra' um ente institucional com características 'empresariais' ?
Por último, importa referir a própria variabilidade ou 'falta de coerência e linearidade' com que, em vários domínios da sua intervenção, a lei utiliza o conceito e conceitos com ele conexionados ou afins – é o que se assinala no recente Relatório e Proposta de Lei-quadro sobre os Institutos Públicos (Setembro de 2001), apresentado pelo 'Grupo de Trabalho para os Institutos Públicos', presidido pelo Prof. Vital Moreira (cfr. p. 43 s, com a conclusão in fine).
.
7.3. Uma outra nota a destacar será a da fluidez ou 'porosidade', que se afiguram de algum modo inevitáveis, na distinção entre 'entidades empresariais públicas' (as empresas públicas, no sentido tradicional estrito) e os
'institutos públicos' – seja na orientação, durante muito indisputada, e já referida, que nelas vê ainda um dos tipos ou espécies dos segundos, seja numa outra e diversa orientação (tendo como precursor Freitas do Amaral), que autonomiza da segunda aquela primeira categoria (v. indicações sobre o ponto, em Vital Moreira, Administração Autónoma e Associações Públicas, cit., p. 338 e
346).
Essa fluidez evidenciar-se-á, nomeadamente, face a certos tipos de
'institutos públicos' que desempenham uma função, não puramente administrativa, stricto sensu, ou 'reguladora', mas antes 'prestacional' ou de 'serviço público', como acontecerá com os chamados 'estabelecimentos públicos' e pode acontecer inclusivamente com certos 'serviços públicos personalizados'. Há aí como que uma 'continuidade', em que a fronteira nem sempre será fácil de traçar.
7.4. Com este ponto deve conexionar-se a possibilidade da ocorrência de entidades de natureza híbrida, apresentando características de mais que uma das figuras típicas dos entes colectivos (públicos). Tal possibilidade decorre da larga margem de conformação de que o legislador (inclusivamente o legislador governamental) goza, na área organizatória.
Ora, este 'hibridismo', não só pode naturalmente verificar-se também com 'institutos públicos' e 'empresas públicas', como (dir-se-á, face ao que se assinalou antes) encontrará mesmo aí um terreno especialmente propício.
O facto, de resto, não passou despercebido no já mencionado Relatório e Proposta de Lei-quadro sobre os Institutos Públicos, apresentado pelo 'Grupo de Trabalho', presidido pelo Prof. Vital Moreira. Com efeito, logo no capítulo com que abre esse Relatório ('Os institutos públicos e a organização administrativa em Portugal', de Rodrigo Esteves de Oliveira e Vital Moreira), a propósito justamente da delimitação entre os 'institutos públicos' e as
'empresas públicas' (as quais não são objecto da análise: cfr. p. 18), se reconhece 'o nascimento de uma tendência para aplicar o regime das empresas públicas (hoje, dos 'entes públicos empresariais') a institutos públicos sem natureza empresarial, ou seja, cujo objecto não consiste na produção de bens e serviços para o mercado', tendência essa que conduziu, assim 'ao nascimento dessa outra categoria, outrora impensável, dos institutos públicos híbridos,
«administrativos» quanto ao seu substracto e objecto, e «empresariais» quanto ao regime de direito privado de que beneficiam, como se fossem verdadeiros entes empresariais' (p. 48/49; itálicos no original).
E não só isso: no próprio 'Projecto de lei-quadro' se vai ao encontro dessa tendência, prevendo-se a possibilidade da constituição de institutos públicos de 'regime equiparado ao das entidades empresariais públicas' - ainda que como figura excepcional, a utilizar em casos devidamente fundamentados, e só quando, inter alia, 'tenham por objecto principal a aquisição ou prestação de bens ou serviços ao público, a gestão e valorização de fundos ou o desenvolvimento de actividades concorrentes com o sector privado'
(artigo 46º, p 436 ss).
7.5. Assente tudo quanto vem de referir-se, uma conclusão desde logo se impõe: determinante para a qualificação de cada entidade há-de ser, não (ou não só) o 'nome' que a lei lhe dá, mas, em último termo, o seu efectivo regime jurídico, tal como resulta da normação legal, e o seu fim, bem como o seu modo organizatório e de gestão, que nesse regime se reflectirão.
Importa assim atender ao efectivo regime legal consagrado para cada entidade e analisá-lo cuidadosamente; dessa análise pode porventura resultar que o ente público em causa se apresente como uma figura 'híbrida', de tal modo que surja a necessidade de determinar qual o regime jurídico predominante, para o efeito – e só esse interessa agora considerar – de sujeitar tal ente público
(mais exactamente, os seus actos e contratos geradores de despesas ou representativos de encargos ou responsabilidades) à fiscalização prévia do Tribunal de Contas.
8. Quais, então, os elementos ou notas do regime jurídico de um ente colectivo, qual o tipo das suas finalidades e do seu modo organizatório e de gestão, que hão-de tomar-se como relevantes para a qualificação que tem de fazer-se ?
A pergunta reconduz-se, evidentemente, a indagar qual seja o critério ou quais sejam os critérios diferenciadores, nesses planos, das
'empresas públicas' face aos 'institutos públicos' (sendo indiferente que naquelas se veja inteiramente um aliud, relativamente aos últimos, ou antes uma simples sub-espécie dos mesmos, já que é essa diferenciação, assumida na Lei n.º
98/97, que, de todo o modo, está em causa).
Responder-se-á, muito sumária e esquematicamente, do seguinte modo:
Tanto os 'institutos públicos' como as 'empresas públicas' comungam da característica de serem entes colectivos, dotados de personalidade jurídica própria, de substracto não territorial nem associativo, mas 'institucional' [uma
'organização de carácter material' (apud 'Relatório e Proposta', cit., p. 23), como um serviço ou um estabelecimento públicos, um património, uma empresa], criados pelo Estado ou por outra pessoa colectiva pública territorial, para a realização de um fim ou objectivo, naturalmente público ou de interesse público, específico.
Mas (é usual dizer-se), enquanto os 'institutos públicos' têm por objecto uma actividade de índole 'administrativa' – operacional (Marcello Caetano, Manual, cit., p. 189), reguladora ou mesmo prestacional –, as 'empresas públicas' têm como objecto uma actividade 'empresarial'. Considera-se por vezes como traço distintivo entre 'empresa pública' e 'instituto público' o elemento estrutural: a 'empresa pública' tem estrutura empresarial; ao 'instituto público' falta essa estrutura empresarial (cfr.: Sousa Franco, Finanças públicas e direito financeiro, vol. I, 4ª ed., Coimbra, 1992, p. 146; Menezes Cordeiro, Direito da economia, 1º vol., Lisboa, 1986, p. 255 ss; cfr. igualmente Paulo Otero, Institutos públicos, 'Dicionário Jurídico da Administração Pública', vol. V, 1993, p. 250 ss, que, com base no critério da estrutura, distingue duas espécies de institutos públicos, os 'institutos públicos administrativos' ou de estrutura administrativa e os 'institutos públicos empresariais' ou de estrutura empresarial, incluindo nestes últimos uma única categoria, as empresas públicas, ob. cit., p. 255).
É claro, porém, que estes enunciados pouco (ou nada) adiantam, pois que, na sua segunda parte, se toma como 'definidor' o 'definido' (incorrendo-se, afinal, numa petição de princípio): importa, consequentemente, esclarecer o que seja 'empresa', 'actividade empresarial' ou 'estrutura empresarial'.
Ora, a este respeito, recorre-se, na doutrina, seja mais genericamente à ideia de uma entidade de carácter 'económico' (Vital Moreira, Administração Autónoma e Associações Públicas, cit., p. 345), seja, explícita ou implicitamente, a essa ideia, acompanhada de algum outro desenvolvimento – como na noção de Marcello Caetano, ainda hoje recorrentemente invocada, de organizações 'onde os capitais públicos são combinados com a técnica e o trabalho para sob a direcção e fiscalização de entidades públicas produzirem bens e serviços destinados a ser oferecidos no mercado, mediante um preço' (v. Manual, cit., p. 190) ou no 'critério prático' proposto por Freitas do Amaral, de organização que desenvolve uma actividade económica e é gerida com um fim lucrativo (cfr. Curso de Direito Administrativo, vol. I, 2ª ed., Coimbra, 1994, p. 364 ss).
Mais longe, entretanto, foi levada a abordagem e a análise do tema
(feita noutro contexto) por A. Barbosa de Melo ('As fundações e as comissões de trabalhadores (A propósito da Lei n.º 46/79, de 12 de Setembro)', Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XXVI, p. 89 ss): nessa análise se destaca, antes de mais, que, 'pela própria natureza das coisas', o conceito jurídico de empresa é de 'natureza tipológica', 'necessariamente dependente dos dados da experiência jurídica concreta', e cuja 'intenção e extensão são por isso maleáveis, porosas, flutuantes', mas assume-se que, de todo o modo, há um
'substracto comum a todos [os] sentidos particulares' de empresa, tomados para os diversos efeitos, que é 'a referência a uma organização racionalizada de carácter económico' (p. 102/104); e depois, quanto a esta segunda e fundamental característica do conceito, acentua-se que, não podendo hoje (na 'idade social', do modelo global do Estado-de-direito-social, e perante o 'dado da economia pública') ligar-se a 'finalidade económica' simplesmente ao critério tradicional das 'ideias de lucro, de mercado e de concorrência', desse critério ficou ainda, em todo o caso, a ideia do 'princípio da satisfação do maior volume de necessidades com o menor dispêndio de meios possível' (p. 106/108); nesta linha, invoca-se Püttner, e a sua caracterização (jurídica) da actividade económica através dos 'elementos típicos' da 'satisfação das necessidades materiais' e da
'especial sujeição ao método de trabalho implicado no princípio da racionalidade' (ou seja, 'com a primordial preocupação do menor custo possível'), com a conclusão de que 'sinal de economia' é a 'contraposição de custos e resultados' (p. 109). Será essa, pois, a 'lei de bronze da actividade económica - «diminuir os custos, aumentar os resultados»' (p. 111). A noção de
'empresa', ou de 'actividade empresarial' - poderá assim extrair-se dessa análise - implicará a ideia de uma organização que (para além do mais) desenvolve a sua actividade 'essencialmente sujeita aos rigores do esquema custo-benefício' (cfr. p. 109).
Todavia, seja como for que se explicite e descreva a natureza
'económica' de uma empresa, e, logo, das 'empresas públicas', certo é que, no tocante a estas últimas, não há discrepâncias na doutrina (porque isso, de resto, resulta da lei), quanto à circunstância de essa sua natureza se traduzir na sua sujeição predominante a um regime de direito privado (sendo indiferente, a este respeito, saber se, com isso, perdem a qualidade de pessoas colectivas
'públicas', ou se ainda a mantêm).
Os domínios em que essa sujeição ou subordinação ao direito privado podem ocorrer são vários, mas terão fundamentalmente a ver com a própria gestão do ente: assim, v.g., o do regime jurídico do pessoal (e dos membros dos seus
órgãos de gestão), o do seu relacionamento jurídico externo (actos e contratos que praticam ou celebram), o do regime contabilístico, e certamente ainda outros
(cfr. agora, em geral, o artigo 23º, n.º 1, em combinação com os artigos 7º e
16º, e os artigos 25º, n.º 1, 27º, n.º 1, e 28º do Decreto-Lei n.º 558/99).
Ora, esta predominância de regimes 'privatísticos' não se verifica com os 'institutos públicos', stricto sensu, com os institutos públicos
'administrativos' (pelo menos no seu estado 'puro'), sujeitos que basicamente estão a um 'regime administrativo'.
Aqui se situa por isso - como conclui Vital Moreira (Administração Autónoma e Associações Públicas, cit., p. 345) - 'uma summa divisio dos institutos públicos' (lato sensu).
O regime jurídico predominante no caso não poderá, pois, deixar de ser o critério decisivo – a par do do objecto ou fim prosseguido – para qualificar certo ente público como pertencendo a uma ou outra das categorias.
E, para a determinação do regime jurídico predominante em cada caso, há-de considerar-se o que no respectivo diploma constitutivo se disponha, quer quanto ao regime primariamente aplicável ao ente público em causa, quer quanto ao regime que supletivamente o rege. Quanto a este último aspecto, terá de atribuir-se particular relevo aos critérios e às regras de gestão patrimonial e financeira que, relativamente a determinado ente público, sejam relevantes, desde logo, a sujeição às regras da contabilidade pública ou, diferentemente, às regras do Plano Oficial de Contabilidade aplicáveis à generalidade das empresas.
9. Postas estas considerações gerais, e antes de fazer a aplicação delas
às situações sub judicio, há que deixar ainda uma última advertência: estando em causa qualificar uma certa entidade colectiva como 'instituto público' ou
'empresa pública', ou um certo sector da actividade dela, para certo efeito, e devendo tal qualificação efectuar-se a partir de índices revelados no respectivo regime legal, poderia dizer-se que a própria circunstância de o legislador sujeitar, ou não, os seus actos (ou certos deles) geradores de despesas, encargos ou responsabilidades à fiscalização prévia do Tribunal de Contas seria susceptível de funcionar justamente como um desses índices (atento o regime geral da Lei n.º 98/97). Estaríamos assim caídos num 'círculo vicioso'.
Como evitar esse 'círculo vicioso' ?
A resposta só pode ser esta: como o problema é precisamente o de saber se foi observado, nos casos em apreço, um princípio e um regime que se impõem aos 'institutos', mas não às 'empresas públicas', claro que não pode invocar-se autonomamente a regra legal que dispensa a sua observância para dar por justificada esta última. O que está em causa é saber se essa dispensa (a não aplicação do dito regime), em cada uma das diferentes situações, é congruente com o regime jurídico 'global' de cada entidade ou de certa sua dimensão.
10. Passemos, então, à 'qualificação'– à luz das considerações gerais que precedem – de cada uma das entidades a que respeitam as normas sub judice. a) Quanto às entidades de fim cultural e artístico regidas pelo Decreto-Lei n.º 242/97 (Teatro Nacional de S. João), pelo Decreto-Lei n.º 243/97
(Orquestra Nacional do Porto), pelo Decreto-Lei n.º 244/97 (Teatro Nacional de D. Maria II) e pelo Decreto-lei n.º 245/97 (Companhia Nacional de Bailado)
Trata-se, em todos os casos, de entes que têm basicamente por objecto a criação e produção de espectáculos (no domínio da arte própria de cada um) - ou seja, a produção de serviços que não tem de ser, nem é, monopólio estadual.
Esses diplomas em momento algum as definem, eo nomine, como
'institutos públicos', mas, em compensação, submetem-nas, para além do que neles se dispõe, ao 'ordenamento jurídico das empresas públicas' (v. o artigo 3º de todos os diplomas). Por outro lado, os critérios de gestão enunciados para as mesmas entidades apresentam indiscutivelmente características empresariais e os seus sistemas de contabilidade devem enquadrar-se no Plano Oficial de Contabilidade (POC) (cfr. o capítulo IV de todos os diplomas). Em particular, prevê-se expressamente que a essas entidades se aplicarão 'nas suas relações com terceiros, incluindo aquisições de bens e serviços, as normas de direito privado', bem como se exclui expressamente a aplicação do regime de realização de despesas públicas (ao tempo definido no Decreto-Lei n.º 55/95, de 29 de Março, e, hoje, no Decreto-Lei n.º 197/99, de 8 de Junho) à 'aquisição de bens e serviços de natureza técnico-artística, que relevem da especificidade' das suas actividades (cfr. respectivamente, artigos 29º e 30º, artigos 28º e 29º, artigos
29º e 30º e artigos 26º e 27º). Por último, quanto ao pessoal, se se prevê que todas as entidades em causa tenham um quadro de pessoal sujeito ao regime da função pública, o pessoal de natureza técnico-artística ficará antes sujeito ao regime do contrato individual de trabalho, para além da possibilidade do contrato de 'pessoal convidado', em regime de prestação de serviço (cfr. o capítulo V de todos os diplomas).
Assim sendo, seguramente que tem toda a congruência que o legislador governamental haja implicitamente qualificado as entidades ora em causa como
'empresas públicas' (e não como 'institutos públicos'), para o efeito (e só esse efeito importa aqui considerar) da não sujeição de actos e contratos seus à fiscalização prévia do Tribunal de Contas – e, tanto mais, quanto essa não sujeição apenas se estabelece quanto a certos actos e contratos: os que têm a ver com as aquisições de bens e serviços antes postas em evidência (cfr., respectiva e sucessivamente, os artigos 31º, 30º, 31º e 28º, dos diplomas referidos, que são os preceitos deles ora questionados).
b) Quanto ao Instituto Marítimo Portuário, criado pelo Decreto-Lei n.º 331/98
Está em causa uma entidade de vocação 'reguladora' (cfr. o
'preâmbulo' do diploma e as atribuições enunciadas no artigo 4º dos Estatutos anexos), que veio substituir uma Direcção-Geral e dois institutos preexistentes, passando a ser (cfr. o dito 'preâmbulo') 'uma entidade de cúpula centralizadora do núcleo das funções da Administração Pública' respeitantes ao 'sector marítimo-portuário'.
O diploma que o cria qualifica-o expressamente como 'instituto público' (cfr. artigo 1º do Decreto-Lei), e não se vê, na verdade, que o seu regime jurídico contenha elementos susceptíveis de pôr em causa tal qualificação. Com efeito, e nomeadamente: valem para o Instituto as 'normas legais aplicáveis aos institutos públicos dotados de autonomia administrativa e financeira'; em matéria financeira, é-lhe aplicável, no que não estiver expressamente previsto nos estatutos, o 'regime financeiro dos organismos da Administração Pública dotados de autonomia administrativa e financeira'; o seu pessoal 'que desempenhe funções de inspecção e fiscalização é detentor dos necessários poderes de autoridade'; a cobrança coerciva das suas receitas será efectuada 'através do processo de execução fiscal'; beneficia da isenção de taxas, custas e emolumentos (incluindo os pessoais) nos processos de qualquer natureza em que intervenha (cfr., respectivamente, artigo 2º, artigos 21º e 24º, artigo 19º, artigo 20º, n.º 4, e artigo 23º dos Estatutos).
Estamos, pois, perante um regime basicamente 'publicístico' – e no qual os únicos aspectos 'privatísticos' detectáveis parecem ser os relativos ao estatuto do pessoal (cfr. artigo 4º e seguintes do Decreto-Lei e artigo 15º dos Estatutos) e (porventura) dos membros dos órgãos de gestão e fiscalização (cfr. artigos 11º e 13º dos Estatutos).
Neste contexto, não se vê como a norma do n.º 2 do artigo 22º dos Estatutos do Instituto Marítimo-Portuário – que isenta os seus actos e contratos do visto do Tribunal de Contas – pudesse 'justificar-se' com uma pretensa qualificação dessa entidade como uma 'empresa pública', ou mesmo, só, como um
'instituto público empresarial', de natureza 'híbrida' (de resto – e como oportunamente se deixou assinalado – o Governo, na resposta que apresentou, nem sequer se refere ao caso desta mesma entidade). O que nessa norma temos, sim, é a introdução – por um diploma legislativo governamental não previamente autorizado – de uma 'excepção' ao regime geral decorrente logo do artigo 5º, n.º
1, alínea c), com referência ao artigo 2º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 98/97.
Refira-se aliás que, através do artigo 2º do Decreto-Lei n.º
47/2002, de 2 de Março – publicado já em momento posterior ao início da discussão do presente processo neste Tribunal –, o Governo acaba de revogar a norma constante do n.º 2 do artigo 22º dos Estatutos do Instituto Marítimo-Portuário, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 331/98, de 3 de Novembro (as consequências dessa revogação serão analisadas infra, 13.). c) Quanto ao Instituto Nacional do Transporte Ferroviário, criado pelo Decreto-Lei n.º 299-B/98
Trata-se de um organismo novo (embora do artigo 9º do Decreto-Lei resulte que parte das suas atribuições estava antes cometida à Direcção-Geral dos Transportes Terrestres), com funções também de 'regulação e supervisão', em ordem ao 'adequado funcionamento de um mercado dos serviços ferroviários', a que se agrega uma função de 'intervenção em matéria de concessões de serviço público' nessa área do transporte – função para que o Estado não dispunha antes de qualquer órgão, em consequência de o modelo ferroviário anterior se basear na actuação única da CP (cfr. o preâmbulo do diploma e o capítulo II dos Estatutos anexos).
O diploma que o cria qualifica-o igualmente, de modo expresso, como
'instituto público' (cfr. artigo 1º, n.º 1, do Decreto-Lei), mas, ao contrário do Instituto anteriormente considerado, manda-lhe aplicar, como direito subsidiário (para além do diploma referido e dos Estatutos) o 'regime jurídico das empresas públicas' (cfr. artigo 1º, n.º 3, idem). A aplicabilidade deste regime, porém, não é completa, pois que no artigo 1º dos Estatutos já se diz que o Instituto, para além das disposições estatutárias, se rege 'por outras normas legais e regulamentares aplicáveis aos institutos públicos' e se ressalva da aplicação (subsidiária) do regime das empresas públicas a área relativa 'a actos de autoridade ou cuja natureza implique o recurso a normas de direito público'
(cfr. artigo 1º, n.º 2, dos Estatutos).
Estamos, pois, face a uma figura 'híbrida'. Mas nela prevalecem os traços 'publicísticos', como se observa pelos seguintes aspectos do respectivo regime: a expressa equiparação do Instituto ao Estado (com os correspondentes poderes, prerrogativas e obrigações) no exercício das suas atribuições (cfr. artigo 3º dos Estatutos); as faculdades que lhe são conferidas, incluindo a sancionatória [cfr. artigo 6º, alínea d), dos Estatutos]; as prerrogativas de autoridade detidas pelos seus agentes, no exercício de funções de fiscalização
(cfr. artigo 17º dos Estatutos); a isenção de taxas, custas e emolumentos (cfr. artigo 8º do Decreto-Lei); a aplicação do Código de Procedimento Administrativo aos seus órgãos colegiais (cfr. artigo 28º dos Estatutos); e finalmente – a mostrar que justamente neste ponto já se foge igualmente ao regime das empresas públicas – 'a sujeição às regras de gestão patrimonial e financeira definidas na lei para os institutos públicos com o regime de autonomia administrativa e financeira' e a obrigação de 'o orçamento do Instituto constar do Orçamento do Estado, sendo elaborado de acordo com o regime da contabilidade pública' (cfr. artigo 32º dos Estatutos).
Poderá dizer-se que esta emergência de traços 'publicísticos' vai de par com a natureza do objecto e fim do Instituto, que não é propriamente
'empresarial' ou 'económico' – de sorte que a natureza 'híbrida' que para ele decorre da aplicação subsidiária do regime das empresas públicas se situa no puro plano da sua estrutura jurídico-formal. Conforme com esse regime, de todo o modo, é nomeadamente a aplicação aos membros do conselho de administração do estatuto de 'gestores públicos', a estrutura do órgão de fiscalização e a sujeição do pessoal ao regime do contrato individual de trabalho (cfr. artigos
22º, 26º e 29º, respectivamente, dos Estatutos).
Neste contexto, não se afigura linear, no mínimo, a qualificação implícita do Instituto como 'empresa pública' – operada no n.º 4 do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 299-B/98, norma ora sub judicio – para o efeito de não sujeitar os seus actos e contratos (e, aparentemente, todos eles) à fiscalização prévia do Tribunal de Contas.
O problema estará, ao fim e ao cabo, em saber se a remissão
'residual' que o diploma faz para o regime dessas empresas, conjugada com a margem de conformação que em sede organizatória administrativa é de reconhecer ao Governo, não bastará para dar cobertura a tal qualificação para aquele efeito, ao menos quanto aos actos do Instituto em causa que sejam regidos pelo direito privado (é a tese – recorde-se – da resposta do Primeiro-Ministro).
Não é todavia de acolher essa tese, que admitiria, relativamente a uma determinada entidade colectiva, a possibilidade de qualificações concorrentes e exigiria a necessidade de destrinçar entre os modos ou áreas de intervenção de tal entidade, tomando como prevalecente uma ou outra dessas qualificações, para o efeito de submeter os actos praticados no âmbito de cada uma das diferentes áreas de intervenção a um ou outro regime de fiscalização do Tribunal de Contas.
Na verdade, e antes de mais, a Lei n.º 98/97 define o objectivo e o
âmbito de competência do Tribunal de Contas, sujeitando à jurisdição e aos poderes de controlo financeiro desse Tribunal certas entidades – as elencadas no artigo 2º, n.ºs 1, 2 e 3 [sendo que, como ficou referido, os 'institutos públicos' estão incluídos no n.º 1, alínea d), e as 'empresas públicas' vêm mencionadas no n.º 2, alínea b)]. Só no domínio das isenções quanto à fiscalização prévia se atende – e mesmo aí limitadamente – à natureza dos actos ou contratos celebrados (cfr. as diversas alíneas do artigo 47º da mesma Lei).
Não se afigura por isso adequado invocar apenas a circunstância de uma determinada entidade praticar actos regidos pelo direito privado para a excluir do regime legal de sujeição ao 'visto' do Tribunal de Contas, sempre que se verifique, quanto ao regime jurídico aplicável a tal entidade – como é precisamente o caso que agora nos ocupa –, uma prevalência de elementos
'publicísticos'.
Aliás, não se vê como poderia distinguir-se dentro da actividade desenvolvida por entidades de natureza 'híbrida' aqueles actos que viriam a ser praticados no âmbito de uma 'lógica empresarial', susceptível de dispensar o
'visto', e aqueles que viriam a ser praticados no âmbito de uma lógica de funcionamento própria de um instituto público e, por isso, necessariamente sujeitos à fiscalização prévia do Tribunal de Contas.
A falta de um critério claro de distinção e a incerteza quanto ao regime aplicável nesta matéria conduziriam a uma situação jurídica de todo indesejável que, por isso, deve evitar-se. d) Quanto ao Instituto das Estradas de Portugal (IEP), ao Instituto para a Construção Rodoviária (ICOR) e ao Instituto para a Conservação e Exploração da Rede Rodoviária (ICERR), todos eles criados pelo Decreto-Lei n.º 237/99
A situação apresenta, em alguns aspectos, um paralelismo flagrante com a que acabou de considerar-se, mas também não despiciendas dissemelhanças.
Assim, tal como nesse outro caso, também o diploma que os cria qualifica expressamente os entes agora em causa como 'institutos públicos', mas manda aplicar-lhes, como direito subsidiário, o 'regime jurídico das empresas públicas' (artigo 1º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei referido), vindo igualmente a precisar, porém, nos Estatutos anexos (cfr., em todos eles, o artigo 2º), que dessa aplicabilidade ficam ressalvados os 'actos de autoridade ou cuja natureza implique o recurso a normas de direito público' e a acrescentar (antes de mais) a aplicabilidade aos mesmos entes, por outro lado, de 'quaisquer outras normas legais aplicáveis aos institutos públicos dotados de autonomia administrativa e financeira'.
Estamos, por conseguinte, perante uma nova situação de 'hibridismo', a qual se revela, não apenas nos enunciados gerais transcritos, mas igualmente noutras normas do diploma legal ou dos Estatutos mencionados, semelhantes às editadas para o Instituto Nacional do Transporte Ferroviário.
Assim: aí encontramos, quanto a todos os Institutos, por um lado, a sua equiparação ao Estado, em matéria de poderes (incluindo, v.g., sancionatórios), prerrogativas e obrigações, no respeitante ao exercício das suas atribuições (cfr. artigo 5º, n.º 3, do Decreto-Lei) e a mesma isenção de taxas e emolumentos (cfr. artigo 7º, idem); e, por outro lado, a mesma aplicação aos membros dos conselhos de administração do estatuto de 'gestores públicos'
(cfr. artigo 8º, em todos os Estatutos), idêntica estrutura do órgão de fiscalização (cfr. artigo 10º, nos Estatutos do IEP, e artigo 11º, nos Estatutos do ICOR e do ICERR) e a sujeição do pessoal ao regime do contrato individual de trabalho (cfr. artigo 8º do Decreto-Lei e artigo 13º, em todos os Estatutos).
Entretanto, a esses aspectos do regime dos Institutos acresce a expressa distribuição da competência dos tribunais, entre os administrativos e os judiciais, para o conhecimento de questões relativas a todos aqueles, consoante as mesmas questões tenham a ver com actos de gestão pública ou, grosso modo, com relações regidas pelo direito privado (artigo 6º do Decreto-Lei).
Mas, se ocorrem estas semelhanças, importa igualmente salientar as especificidades da situação ora em apreço, e não apenas face ao Instituto do Transporte Ferroviário, como relativamente a cada um dos Institutos criados pelo Decreto-Lei n.º 237/99.
Assim, e desde logo, importa lembrar que se está agora perante entes que vêm suceder, por um lado, a um 'instituto público' preexistente (porventura um dos mais antigos do direito público português, correspondendo à modalidade de
'serviço público personalizado'), a Junta Autónoma das Estradas (cujo diploma orgânico era, por último, o Decreto-Lei n.º 184/78, de 18 de Julho), e, por outro lado, a uma 'sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos', a JAE Construção, S.A. (criada pelo Decreto-Lei n.º 142/97, de 6 de Junho).
Ora, isto já denuncia que, por outra parte, a natureza do seu objecto e fim não será, pois, coincidente (ou inteiramente coincidente) com a do Instituto antes considerado, nem coincidente entre os vários institutos agora em análise: e, de facto, o que temos, agora, é, a par de uma entidade com funções essencialmente de 'planeamento' e 'regulação' (o IEP), uma outra com uma função basicamente 'operativa' e de 'exploração', mas incluindo ainda competências
'reguladoras' (o ICERR), e uma terceira concebida nitidamente com uma natureza
'empresarial' (o ICOR): cfr. o preâmbulo do Decreto-Lei e o enunciado das atribuições de cada um, no artigo 4º dos respectivos Estatutos. As duas primeiras entidades sucederam à Junta Autónoma de Estradas, por 'desdobramento' das anteriores atribuições desta; a terceira, à JAE Construção S.A. (cfr. ainda o preâmbulo e os artigos 2º e 4º do Decreto-Lei).
Pois bem: desta diferente origem, natureza e vocação de cada um dos Institutos decorrem consideráveis divergências no modo como o legislador os concebe e no seu regime jurídico – divergências essas que se reconduzem, em síntese, à mais acentuada emergência, e mesmo prevalência, dos elementos
'publicísticos' nos dois primeiros institutos referidos (o IEP e o ICERR), e dos elementos 'privatísticos' no último (o ICOR).
Com efeito: i) Só o IEP e o ICERR são concebidos como uma 'autoridade nacional de estradas', em representação do Estado: o primeiro, relativamente às infra-estruturas rodoviárias concessionadas, e, o segundo, relativamente às infra-estruturas rodoviárias nacionais não concessionadas (artigo 5º, n.º 2, do Decreto-Lei). ii) Só relativamente ao pessoal do ICERR se prevê a atribuição de
'poderes de autoridade', no exercício das suas funções de 'vigilância, manutenção ou fiscalização' (n.º 4 do mesmo artigo). iii) Só relativamente ao IEP e ao ICERR se prevêem, expressamente, entre as suas receitas, as provenientes de 'coimas e outras sanções' ou de 'multas e/ou coimas' [cfr. alínea g) e alínea h), respectivamente, do n.º 1 do artigo
16º de cada um dos Estatutos], e, implicitamente (dir-se-á), o exercício de um correspondente poder sancionatório 'público' [a postular, possivelmente, uma correspondente 'redução' interpretativa da previsão genérica da alínea i), e porventura também da alínea g) do n.º 3 do artigo 5º do Decreto-Lei]. iv) Também só relativamente aos mesmos institutos se prevêem, expressamente, entre as suas receitas, 'taxas', 'emolumentos' e outras cobradas por 'licenciamentos, aprovações e actos similares e por serviços prestados no
âmbito das suas atribuições' [cfr. a alínea c) do n.º 1 do artigo 16º de ambos os Estatutos] – o que legitimará, também quanto a esta matéria, uma inferência e uma observação paralelas às acabadas de fazer quanto às receitas sancionatórias
[a observação, com referência, agora, à primeira parte da alínea c) do n.º 3 do artigo 5º do Decreto-Lei].
Acrescente-se que, para a cobrança coerciva de tais receitas, se estabelece a utilização do processo de 'execução fiscal' (cfr. n.º 2 do dito artigo 16º de ambos os Estatutos) – mas prerrogativa idêntica é concedida também ao ICOR, quanto à cobrança coerciva das receitas provenientes da 'contracção de empréstimos' (cfr. n.º 2 do artigo 16º dos respectivos Estatutos). v) Finalmente – e o ponto não pode, no presente contexto, deixar de ser particularmente significativo – se a 'gestão financeira e patrimonial [...], incluindo a organização da sua contabilidade', tanto do IEP como do ICERR, se rege 'exclusivamente pelo regime aplicável aos fundos e serviços autónomos do Estado', em tudo o que não esteja especialmente regulado (cfr. n.º 1 do artigo
15º de ambos os Estatutos), já para o ICOR vale, nessa matéria, 'exclusivamente
[o] regime jurídico aplicável às entidades que revistam natureza, forma e designação de empresa pública', regendo-se a sua gestão patrimonial e financeira
'por princípios de direito privado, não lhe sendo aplicável o regime geral da actividade financeira dos fundos e serviços autónomos', e devendo a sua contabilidade ser elaborada 'de acordo com o Plano Oficial de Contabilidade, não sendo aplicável o regime da contabilidade pública' (artigo 15º, n.ºs 1 a 3 dos Estatutos).
Da análise precedente, concluir-se-á:
1º - Que não se afigura linear, no mínimo, a qualificação implícita do Instituto de Estradas de Portugal (IEP) e do Instituto para a Conservação e Exploração da Rede Rodoviária (ICERR) como 'empresas públicas' – operada no n.º
2 do artigo 15º dos Estatutos de um e outro, aprovados pelo Decreto-Lei n.º
237/99, normas ora sub judicio – para o efeito de não sujeitar os seus actos e contratos [todos eles, tendo em conta o que se observou supra, 10., c), in fine]
à fiscalização prévia do Tribunal de Contas.
A situação apresenta-se aqui como muito semelhante à que ocorre com o Instituto Nacional do Transporte Ferroviário, devendo por isso ser encarada e receber uma resposta em termos idênticos.
2º - Que é congruente com a origem, com a vocação e a natureza e com traços especialmente significativos da sua concepção legal e do seu regime jurídico a qualificação do Instituto para a Construção Rodoviária (ICOR) como
'empresa pública' – implícita no n.º 4 do artigo 15º dos seus Estatutos, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 237/99, norma ora sub judicio – para o efeito de não sujeitar os seus actos e contratos (todos eles) à fiscalização prévia do Tribunal de Contas.
11. Uma última observação se impõe ainda. No domínio da Lei n.º 86/89, de
8 de Setembro, que precedeu a Lei n.º 98/97, e a qual, no respectivo artigo 1º, estendia a jurisdição do Tribunal de Contas apenas às entidades que hoje constam do elenco do n.º 1 do artigo 2º da Lei n.º 98/97 e, bem assim, às associações públicas, isentavam-se de fiscalização prévia 'os actos e contratos praticados ou celebrados por institutos públicos com natureza empresarial, contabilidade organizada segundo o Plano Oficial de Contabilidade e dotados de comissões de fiscalização, quando a sua gestão se reja por princípios de direito privado'
[artigo 14º, alínea g)].
Não é todavia possível nem adequado extrapolar, a partir dessa anterior disposição, um argumento de ordem 'histórica', susceptível de infirmar a linha argumentativa que precede. Desde logo, justamente é agora outro o universo institucional abrangido pelo Tribunal de Contas, e, no quadro dele, a isenção de fiscalização prévia das 'empresas públicas' não é senão convergente com o que se dispunha já nessa alínea g) do artigo 14º da Lei n.º 86/89, tornando agora dispensável a sua repetição. Por outro lado, tal argumento faria tábua rasa de todas as considerações substantivas, ligadas, seja à natureza das entidades colectivas em presença, seja à 'lógica' do sistema de controlo do Tribunal de Contas e das opções parlamentares que estão na sua base – que deve ser, evidentemente, o ponto decisivo.
Assim, de resto, o entendeu a Procuradoria-Geral da República, no seu Parecer n.º 65/98 (publicado no Diário da República, II Série, de 14 de Junho de 1999) – parecer que é tanto mais instrutivo, para as situações ora em apreço, quanto nele se concluiu, relativamente a um 'instituto público' (o Instituto do Emprego e Formação Profissional), de estrutura 'híbrida', que os seus actos e contratos, que se entendia não estarem sujeitos ao 'visto' do Tribunal de Contas no quadro da Lei n.º 86/89, continuavam a gozar dessa isenção no quadro da Lei n.º 98/97. E isso ('ponto fulcral' da argumentação), a partir de uma norma do seu estatuto, constante do Decreto-Lei n.º 247/85, que remetia para 'as normas aplicáveis às empresas públicas' (no que não estivesse especialmente previsto) a regulamentação da respectiva 'gestão económica, financeira e patrimonial, incluindo a organização e execução da sua contabilidade' (nesse Parecer, in fine, cita-se um outro, em sentido convergente, relativo ao Instituto Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial).
12. O Tribunal Constitucional não pode portanto deixar de concluir no sentido da inconstitucionalidade das normas em apreciação em todos os casos em que delas resulta que o diploma governamental não respeitou a indicação e os limites a que o Governo estava adstrito, decorrentes da definição geral do
âmbito da competência do Tribunal de Contas, tal como constante da Lei n.º
98/97.
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 282º da Constituição, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral produz, em princípio, efeitos ex tunc, ou seja, retroage os seus efeitos desde a data da entrada em vigor das normas em causa.
Não se afigura todavia conforme às exigências de 'segurança jurídica' destruir retroactivamente os efeitos que possam ter-se produzido à luz das normas agora declaradas inconstitucionais – designadamente a consolidação da eficácia de actos e contratos praticados ou realizados pelas entidades em causa independentemente da sujeição a fiscalização prévia do Tribunal de Contas.
Justifica-se assim que o Tribunal, usando a faculdade conferida pelo artigo 282º, n.º 4, da Constituição, e por razões de 'segurança jurídica', fixe os efeitos da declaração de inconstitucionalidade com um alcance mais restrito do que o previsto no n.º 1 do mesmo artigo, determinando que esta declaração só produza efeitos a partir da publicação do presente acórdão – mas sem prejuízo da produção desses efeitos nos casos pendentes de decisão de tribunal sobre a sujeição a visto.
13. Como se deixou já referido, uma das normas impugnadas – a norma do artigo 22º, n.º 2, dos Estatutos do Instituto Marítimo Portuário (IMP), aprovados pelo Decreto-Lei n.º 331/98, de 3 de Novembro [supra, 1., b) e 10., b)] – foi expressamente revogada pelo artigo 2º do Decreto-Lei n.º 47/2002, de 2 de Março, diploma este que introduziu diversas alterações Decreto-Lei n.º 331/98 e nos Estatutos do IMP.
Por força do 'princípio do pedido', expresso no artigo 51º, n.º 5, da Lei do Tribunal Constitucional, e de acordo com a jurisprudência deste Tribunal, não pode operar-se a 'convolação' do objecto do processo nas normas do diploma revogante que tenham um eventual conteúdo preceptivo correspondente ou semelhante ao das normas que constituem o objecto do pedido, que aliás no caso não existem.
Todavia, o facto de as normas em causa terem sido revogadas não é suficiente para se concluir de imediato pela inutilidade do pedido.
Produzindo a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, em princípio, efeitos ex tunc (n.º 1 do artigo 282º da Constituição), justifica-se que se conheça de pedidos relativos a normas revogadas sempre que tal se mostre indispensável para corrigir ou eliminar os efeitos entretanto produzidos por tais normas durante o período da sua vigência.
Haverá, então, e antes de mais, que apurar se se verifica tal interesse ou utilidade no conhecimento do pedido de fiscalização abstracta sucessiva de inconstitucionalidade da norma referida, entretanto revogada.
Ora, é jurisprudência conhecida deste Tribunal que não existe um interesse jurídico relevante no conhecimento do pedido quando a situação for tal que, no caso de uma eventual declaração de inconstitucionalidade (ou ilegalidade), os seus efeitos sempre viriam a ser limitados nos termos do n.º 4 do artigo 282º da Constituição – a norma que confere ao Tribunal Constitucional a faculdade de fixar os efeitos do declarado vício de inconstitucionalidade, de modo que o alcance dos efeitos da declaração seja mais restrito do que o resultante do indicado no n.º 1 do mesmo preceito, se tal se justificar por razões conexionadas com a segurança jurídica, equidade ou interesse público de excepcional relevo.
À luz desta orientação jurisprudencial constante, afigura-se claro que, em razão da sua inutilidade superveniente, não deverá conhecer-se do pedido formulado no presente processo quanto à norma do artigo 22º, n.º 2, dos Estatutos do Instituto Marítimo Portuário.
Com efeito, no presente processo, em que se conclui no sentido da inconstitucionalidade de diversas normas de teor e alcance semelhantes aos da norma do artigo 22º, n.º 2, dos Estatutos do Instituto Marítimo Portuário, o Tribunal Constitucional considera existirem razões de 'segurança jurídica' que justificam a limitação dos efeitos da inconstitucionalidade, nos termos do n.º 4 do artigo 282º da Constituição (supra, 12.).
Conclui-se, assim, pela inutilidade superveniente de uma decisão de mérito, em sede de fiscalização abstracta da constitucionalidade, relativamente
à norma do artigo 22º, n.º 2, dos Estatutos do Instituto Marítimo Portuário, tendo em conta que os recursos de fiscalização concreta eventualmente interpostos constituirão meio suficiente e adequado para salvaguarda dos interesses em causa.
III Decisão
14. Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não tomar conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo
22º, n.º 2, dos Estatutos do Instituto Marítimo Portuário (IMP), aprovados pelo Decreto-Lei n.º 331/98, de 3 de Novembro, em razão da inutilidade superveniente do mesmo pedido; b) Não declarar a inconstitucionalidade das normas constantes do artigo
31º do Decreto-Lei n.º 242/97, do artigo 30º do Decreto-Lei n.º 243/97, do artigo 31º do Decreto-Lei n.º 244/97 e do artigo 28º do Decreto-Lei n.º 245/97, todos de 18 de Setembro de 1997, e relativos, respectivamente, ao Teatro Nacional de S. João (TNSJ), à Orquestra Nacional do Porto (ONP), ao Teatro Nacional D. Maria II (TNDM) e à Companhia Nacional de Bailado (CNB); c) Não declarar a inconstitucionalidade da norma do artigo 15º, n.º 4, dos Estatutos do Instituto para a Construção Rodoviária (ICOR), aprovados pelo Decreto-Lei n.º 237/99, de 25 de Junho; d) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 1º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 299-B/98, de 29 de Setembro, que cria o Instituto Nacional do Transporte Ferroviário (INTF), por violação do disposto no artigo 165º, n.º 1, alínea p), da Constituição da República Portuguesa; e) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do artigo 15º, n.º 2, dos Estatutos do Instituto das Estradas de Portugal (IEP) e do artigo 15º, n.º 2, dos Estatutos do Instituto para a Conservação e Exploração da Rede Rodoviária (ICERR), aprovados pelo Decreto-Lei n.º 237/99, de 25 de Junho, por violação do disposto no artigo 165º, n.º 1, alínea p), da Constituição da República Portuguesa; f) Limitar os efeitos da inconstitucionalidade a que se referem as alíneas d) e e) da decisão, de modo que essa inconstitucionalidade só produza efeitos a partir da publicação do presente acórdão – mas sem prejuízo da produção desses efeitos nos casos pendentes de decisão de tribunal sobre a sujeição a visto.
Lisboa, 9 de Abril de 2002- Maria Helena Brito Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Bravo Serra [ vencido por entender, quanto à alínea c) da decisão, que o Tribunal se deveria pronunciar no sentido de declarar a inconstitucionalidade da norma do nº 4 do artigo 15º dos Estatutos do Instituto para a Construção Rodoviária.
Na verdade, tenho para mim que aquele Instituto deverá ser perspectivado como um instituto submetido a um regime que assume características em que os elementos publicisticos têm prevalência de tal monta que, a meu ver, não são ultrapassados por aqueles outros elementos privatísticos que nesse regime igualmente se contêm. Esta conclusão retiro-a das disposições constantes dos artigos 5º, nº 3 e 6º, do Decreto-Lei nº 237/99, de 25 de Junho, e dos artigos 2º, 4º, nºs 1, alíneas c) e d), e 2, alíneas c) e g) ,e 16º, nºs 1, alínea a) ,e 2, dos Estatutos do ICOR anexos àquele Decreto-Lei] Guilherme da Fonseca (vencido quanto às alíneas b) e c) e, no que toca à fundamentação, quanto às alíneas d) e e), conforme declaração de voto junta) Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, em parte, quanto às alíneas d) e e), nos termos da declaração de voto junta) José Manuel Cardoso da Costa Declaração de Voto
1. Votei vencido, por optar por uma declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de todas as normas identificadas na decisão (alíneas b), c), d), e e)), por violação do disposto no artigo 165º, nº 1, p) da Constituição, na base de uma só consideração que a todas elas diz respeito e a partir da afirmação de que a definição da competência material do Tribunal de Contas, em sede de fiscalização prévia, é matéria incluída na reserva da competência legislativa da Assembleia da República, tal como decorre daquela alínea p), do nº 1, do artigo 165º (ao estabelecerem directamente essas normas uma isenção de visto prévio do Tribunal de Contas para os actos e contratos que tratam, é patente tal violação da Constituição). Não acompanhei, portanto, o acórdão quando adere ao entendimento de que, devendo, em todo o caso, 'considerar-se incluída na reserva parlamentar a definição genérica, quer do tipo de entidades, organismos e serviços que ficam sujeitos à jurisdição do Tribunal de Contas, quer das suas despesas e contas que devem ser submetidas à fiscalização ou julgamento do Tribunal de Contas, quer da natureza e termos da correspondente fiscalização ou julgamento', um tal alcance da reserva não pode acabar por afectar ' o que já será próprio, efectivamente, da competência 'natural' do Governo, em matéria de organização da Administração pública, dos serviços públicos e do sector público da economia'.
Divergi, assim, frontalmente da conclusão a que chegou o acórdão acerca dos poderes do Governo de 'concretizar' e explicitar, no diploma orgânico dos serviços, 'se, sim ou não, ou até que ponto, tal jurisdição' (a jurisdição do Tribunal de Contas) se estende a este ou àquele ente público, não podendo, nem devendo, como se quer no acórdão, ' ter-se por improcedentes, desde já, as considerações que no requerimento inicial pretendem fundar (ainda ou em último termo) a inconstitucionalidade das normas sub judicio (ou de algumas delas) na circunstância de não ser lícito a um decreto-lei não autorizado proceder à
'interpretação autêntica' das normas parlamentares sobre a competência do Tribunal de Contas, havendo estas de ser sempre objecto de uma 'interpretação autónoma'.
2. A via que escolhi, na linha de tais considerações ainda que seja simplista e radical, evita a análise que o acórdão forçosamente teve de fazer, e que ocupa o governo das suas páginas, 'de 'qualificar' ou estabelecer a natureza de cada um dos entes ou entidades, bem como dos actos geradores de despesas ou encargos e responsabilidades, a que se reportam as normas sub judicio', com todos os riscos de tal 'qualificação', hesitando aqui e ali sobre o que é instituto público ou o que é empresa pública e reconhecendo até a ' fluidez ou 'porosidade', que se afiguram de algum modo inevitáveis, na distinção entre 'entidades empresariais públicas' (as empresas públicas, no sentido tradicional estrito) e os
'institutos públicos' e ' a possibilidade da ocorrência de entidades de natureza híbrida, apresentando características de mais que uma das figuras típicas dos entes colectivos (públicos)' (para acabar por enunciar no escuro um
'critério decisivo' - o do 'regime jurídico predominante no caso' -, para tentar chegar a conclusões 'congruentes', o que é sempre arriscado e pode não convencer os leitores). Daí que, por exemplo, quanto ao Instituto Nacional de Transporte Ferroviário se tenha de ir buscar uma 'emergência de traços publicísticos', por ser uma figura
'híbrida', acabando por se admitir a ' falta de um critério claro de distinção e a incerteza quanto ao regime aplicável nesta matéria', e relativamente aos institutos que nasceram da extinção da Junta Autónoma das Estradas, o acórdão acaba por concluir que relativamente a dois deles ' não se afigura linear, no mínimo, a qualificação implícita do Instituto de Estradas de Portugal (IEP) e do Instituto para a Conservação e Exploração da Rede Rodoviária (ICERR) como
'empresas públicas' e que 'é congruente com a origem, com a vocação e a natureza e com traços especialmente significativos da sua concepção legal e do seu regime jurídico a qualificação do Instituto para a Construção Rodoviária
(ICOR) como 'empresa pública'. Quer-se melhor exemplo de imprecisão e incerteza?
3. O meu entendimento - e neste ponto não divergi do acórdão (nº 6) - parte da definição da competência material do Tribunal de Contas, que presentemente consta da Lei nº 98/97, de 26 de Agosto, prescrevendo a alínea d) do nº 1 do artigo 2º que estão sujeitos à jurisdição e aos poderes de controlo financeiro desse Tribunal 'os institutos públicos', cabendo-lhe – artigo 5º, nº 1, alínea c) – fiscalizar previamente a legalidade e o cabimento orçamental dos actos e contratos de qualquer natureza que sejam geradores de despesa ou representativos de quaisquer encargos e responsabilidades, directos ou indirectos, para tais entidades públicas (e os artigos 46º e 47º da mesma Lei nº 98/97 dispõem sobre a incidência da fiscalização prévia e as isenções que vigoram em tal matéria, fazendo-a recair, nomeadamente, - alínea b) do nº 1 do artigo 46º - sobre os contratos reduzidos a escrito de obras públicas, aquisição de bens e serviços e outras aquisições patrimoniais que impliquem despesa, estabelecendo taxativamente o artigo 47º as situações em que ocorre isenção de fiscalização prévia, excluindo-a, nomeadamente (alínea a) do artigo 47º), quanto aos actos e contratos praticados ou celebrados pelas entidades do artigo 2º, nºs 2 e 3 - em que se incluem, entre outras, (alínea b) do nº 2) as empresas públicas). Essa definição da competência material do Tribunal de Contas, em sede de fiscalização prévia – que reveste natureza jurisdicional - é matéria incluída na reserva de competência legislativa da Assembleia da República, por força do disposto no artigo 165º, nº 1, alínea p) da Constituição da República Portuguesa
(preceito correspondente ao artigo 168º, nº 1, alínea q), na versão anterior à
última revisão constitucional), não sendo, por isso, lícito a um decreto-lei, editado no exercício da competência legislativa própria do Governo, dispor inovatoriamente sobre esse tema, isentando do 'visto' daquele órgão jurisdicional actos e contratos que a ele se devam considerar submetidos, em função do estatuído nas disposições da Lei nº 98/97, de 26 de Agosto (sobre essa competência, cfr. o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República nº 65/98, citado no acórdão). Por consequência, existindo normas legais, como outras que vêm identificadas no acórdão, constantes de decretos-leis não credenciados por autorização parlamentar, que estatuem, de forma expressa e directa, sobre o preenchimento de normas delimitadoras da competência material do Tribunal de Contas, tem de cair-se sempre no vício da inconstitucionalidade orgânica. Quer essas normas estatuam de modo a isentar do visto prévio do Tribunal de Contas, quer de modo a impor o visto (é este o caso do acórdão recente do Tribunal de Constitucional nº 94/02, publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Abril de 2002), tem de concluir-se pela invasão ou intromissão indevidas da reserva parlamentar, podendo dizer-se até que há uma certa contradição entre este acórdão e o juízo de inconstitucionalidade a que se chegou no citado acórdão nº 94/02. Não é ao Governo, no exercício de competência legislativa própria, que cabe, ao
'moldar' cada singular elemento do universo institucional da Administração e do sector públicos segundo o que tiver, em cada momento, como mais conveniente ao interesse geral, conferindo-lhes uma certa ou antes uma outra natureza jurídica', talqualmente se expressa o acórdão, tirar quaisquer consequências que
' dessa sua opção decorram no tocante à sujeição ou não do elemento institucional em causa, e das respectivas despesas, à jurisdição do Tribunal de Contas', impondo ou retirando a fiscalização prévia que para aquele Tribunal de Contas se definiu materialmente em lei parlamentar, quanto ao seu âmbito de fiscalização. Não é caso de falar, como é a visão do acórdão, em 'interpretação autónoma' ou
'interpretação autêntica' de normas legais do tipo das que estão em causa, mas apenas de reconhecer ao Tribunal de Contas a tarefa de, aplicando o direito do legislador ordinário, realizar uma subsunsão da situação às normas da sua lei que regem sobre a incidência e isenção da fiscalização prévia, sem estar sujeito
à subsunsão previamente determinada pelo legislador ordinário. Calcorreando uma estrada mais clara e segura, procurei evitar o traçado sinuoso e curvilíneo do acórdão. Guilherme da Fonseca Declaração de voto
Votei vencida quanto às alíneas d) e e), em síntese, porque entendo que, definindo-se o âmbito de sujeição a visto prévio também subjectivamente, ou seja, pela natureza da entidade, o reconhecimento da existência de entes híbridos, nos termos constantes do acórdão, deveria ter conduzido a uma resposta igualmente 'híbrida' quanto àquela sujeição. Assim, penso que a declaração de inconstitucionalidade das normas em causa deveria ter sido, apenas, parcial, ressalvando-se a sua aplicação aos actos regidos pelo direito privado. Não creio, contrariamente à tese que fez vencimento, que seja preferível, nomeadamente do ponto de vista da certeza da sujeição ou não a visto prévio, optar pela aplicação da solução correspondente à natureza predominante da entidade. Com efeito, pode saber-se sempre, relativamente a cada acto, se é ou não regido pelo direito privado, a essa questão se reconduzindo a dúvida de averiguar se é praticado no âmbito de uma actuação própria de um instituto público ou de uma lógica empresarial. Finalmente, considero que não põe em causa o acerto desta apreciação a possibilidade que a lei reconhece em diversos casos a institutos públicos de actuarem segundo regras de direito privado, já que a sujeição a visto prévio dos actos assim praticados decorre, tão somente, da natureza da entidade que os pratica. Maria dos Prazeres Pizarro Beleza