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Processo n.º 769/11
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele tribunal, para apreciação da constitucionalidade da norma do “artigo 3.º, n.º 2”, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, enquanto estabelece que quem conduzir veículo a motor na via pública sem estar legalmente habilitado para tal é punido com pena de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias.
2. O recorrente apresentou alegações, onde conclui o seguinte:
«I - O digno Tribunal a quo apurou os seguintes factos, com maior relevo para a presente questão: Que «No dia 22 de dezembro de 2010, pelas 16.00 horas, na Rua …, nesta comarca (Barcelos] o arguido conduzia o ciclomotor, de matrícula …. , não obstante não ser titular de licença de condução» (itálico do recorrente — pág. 4 do douto acórdão)
II - Que o arguido «agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei» (itálico do recorrente — pág. 4 do douto acórdão)
III - Qualquer que seja a decisão, relativamente à apreciação que vier a ser feita às questões infra alegadas, bastariam estes factos supra enunciados, para tirar ilações relativamente ao ilícito criminal preenchido pela conduta do recorrente.
IV - O recorrente não pretende, nem vai aqui esmiuçar a questão da natureza deste tipo de crime, denominado de perigo comum, importando no entanto ao venerando Tribunal ad quem, atentar, in casu para com a sempre eterna e recorrente questão da eventual inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato.
V - Recordando, se bem que seja possível descortinar um bem jurídico protegido por esta incriminação cuja determinação e precisão são constitucionalmente aceitáveis ao ponto de permitir esta restrição da liberdade - esse bem é, necessariamente, a segurança rodoviária -, aceitando-se ainda, de uma outra perspetiva, um grau razoável de antecipação de proteção de bens singulares - bens pessoais e o património -, a verdade é que falece a relação necessária entre a proteção ora referida e a incriminação em causa.
VI - Os crimes de perigo abstrato, quando se apresentem como um «bem jurídico intermédio espiritualizado», ou de referente individual, admitem o fortalecimento da sua legitimidade democrática por poderem ser apreendidos como crimes de lesão desses bens intermédios.
VII - No entanto, a proibição de que aqui se trata devia estar remetida ao Direito de Mera ordenação Social porque o «substrato da valoração jurídica não é aqui constituído apenas pela conduta como tal, antes por esta acrescida de um elemento novo: a proibição legal»
VIII - Desta forma o ilícito em causa aparece como meramente formal, sem a preexistência de um bem jurídico-penal que apresente o referente axiológico jurídico-constitucional que permita a sua validade.
IX - Não deve ser esta a técnica de fundamentação de bens jurídicos protegidos em Direito penal pois, independentemente do acolhimento de bens de natureza mais ou menos precisa, de tutela mais ou menos antecipada, não é possível punir criminalmente alguém com base em raciocínios formais, meras lógicas de títulos ou autorizações administrativas, que apenas se entendem segundo critérios de ordenação social.
X - A inconstitucionalidade material é a consequência desta apreciação, por aferição com o art.º 18.°, n.° 2 da CRP que exige um fundamento de valor essencial para permitir restrições de direitos, liberdades e garantias.
XI - Desta forma importará suscitar a questão da inconstitucionalidade do art.º 3.º n.° 1 e n.° 2 do DL n.° 2/98 de 3/2 com fundamento na sua inconstitucionalidade, ao abrigo do art.º 207.° da Constituição.
XII - A questão de constitucionalidade que importará averiguar no presente processo consiste em apurar se existe um fundamento de valor essencial para se proceder à incriminação da condução sem habilitação legal - prevista no art.° 3.º n.° 2, do Decreto-Lei n.° 2/98 de 3 de janeiro - e, assim, tendo por parâmetro o n.° 2 do artigo 18.° da Constituição, proceder a uma constrição do direito do sujeito a julgamento criminal por aquele ilícito, sabido como é que, num Estado de direito democrático e social, o Direito Penal deverá ter um caráter fragmentário, cumprindo uma função de ultima ratio.
XIII - Isto conduz a que é mister saber se o estatuído no art.° 3.°, n.° 2, do Decreto-Lei em causa viola o princípio da congruência ou da analogia substancial entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos protegidos pelo direito penal.
XIV - Do exposto resulta que se há de concluir que a norma em apreço poderá não apresentar aquele mínimo de ressonância ética que expressa os valores da coletividade, consequentemente não se mostrando, ao desenhar como ilícito criminal a conduta nela tipificada, como desproporcionada, excessiva ou ultrapassadora de uma justa medida e, por isso, se afigurando como incompatível com a dignidade humana o sancionamento criminal que leva a efeito.
XV - A tal solução, salvo melhor entendimento, se deveria chegar quando se confronta a situação em apreço com aquela a que se reportam os casos em que somente é sancionado com uma contraordenação quem, embora detendo título legalmente bastante para conduzir determinada classe de veículos.
Termos e fundamentos, conjuntamente com os mais com que mui doutamente suprirão, em que se requer que seja, por Vossas Excelências dado provimento ao presente recurso e consequentemente, sejam declarados nulos, por violação do disposto nos artigos 18° n° 2 da Constituição da República Portuguesa, o estatuído nos n°s 1 e 2 do artigo 3.° do DL 2/98 de 03-02, no que concerne à constitucionalidade do crime de condução sem habilitação legal, tudo com as legais consequências.»
3. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional apresentou alegações, concluindo como se segue:
«1° - O legislador infraconstitucional goza de uma ampla margem de discricionariedade legislativa na formulação das opções consistentes em tipificar criminalmente determinados comportamentos.
2° - Não traduz solução legislativa manifestamente arbitrária ou excessiva a que se traduz em criminalizar a condução de veículos na via pública por quem não é detentor de título válido que a tal o habilite, já que a tipificação assenta na tutela de valores constitucionalmente relevantes e tem na sua base a evidente e manifesta perigosidade de tal comportamento.
3° - Assim, a norma do n.° 1 do artigo 3.° do Decreto-Lei n.° 2/98, de 3 de janeiro, enquanto estabelece que, quem conduzir veículo a motor na via pública sem estar legalmente habilitado para tal, é punido com pena de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias, não viola o artigo 18.°, n.° 2, da Constituição, não sendo, por isso, inconstitucional.
4° - Termos em que deverá negar-se provimento ao recurso.»
Cumpre apreciar e decidir.
II ? Fundamentação
4. Delimitação do objeto do recurso
Como bem salienta o Ministério Público, nas suas alegações, há, da parte do recorrente, alguma imprecisão na indicação do suporte legal subjacente à interpretação normativa que pretende ver sindicada. Enquanto que no requerimento de interposição do recurso, refere que se trata de uma interpretação da norma do n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 2/98, nas alegações conclui pela inconstitucionalidade das normas dos n.ºs 1 e 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 2/98, cuja inconstitucionalidade, aliás, suscitou no decurso do processo.
Acontece que, como também refere o Ministério Público, é absolutamente claro qual a dimensão normativa que o recorrente pretende ver apreciada e que respeita à criminalização da condução sem habilitação legal.
Assim, sendo certo que uma tal interpretação tem acolhimento primacial no n.º 1 do citado artigo 3.º (sendo o n.º 2 um agravamento do tipo de crime previsto no n.º 1), impõe-se considerar que o objeto do presente recurso está limitado à apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/98.
5. Apreciação do mérito do recurso
O artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, reza assim:
«Artigo 3.º
1 — Quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2 — Se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.»
A questão objeto do presente recurso já foi apreciada neste Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 337/2002, que julgou não inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro.
Também o Acórdão n.º 83/95, pronunciando-se sobre norma anterior mas equivalente, julgou não inconstitucional a norma do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 123/90, de 14 de abril, que pune como crime a condução de veículos automóveis ligeiros ou pesados sem para tal estar habilitado.
As razões do juízo de não inconstitucionalidade formulado no Acórdão n.º 337/2002, são, em síntese, as seguintes:
«(…) os veículos, mormente os automotorizados, são, reconhecidamente, geradores de risco para a vida, integridade física e para os bens, seja de toda a comunidade, seja de todos aqueles que utilizam as vias públicas ou fazem utilização das suas margens ou proximidades.
Como a condução de veículos automotorizados não é, em regra, inata às faculdades humanas, requerendo, por isso, aprendizagem, quer das respetivas técnicas, quer das regras a que deve obedecer a circulação rodoviária, é facilmente aceitável a ideia de que ao Estado se imponham especiais cautelas para apurar da suficiência dessa aprendizagem, não permitindo que quem não seja detentor de tal suficiência possa livremente levar a efeito a condução.
Se alguém a pratica, sem que o apuramento pelo Estado seja certificado, a presunção de que a prática da condução nessas condições não tem um mínimo de segurança não se antolha como um despropósito ou um excesso.
E, para obviar ao acrescido risco decorrente dessa presunção (para além de se não poder, nem dever, escamotear que são inúmeros os casos de condução por quem legalmente não está legalmente habilitado para tanto e que é mui elevada a sinistralidade, mesmo atendendo aos que estão habilitados) não se mostra minimamente como implicando uma injusta medida a «desincentivação» dos comportamentos consistentes na condução sem título, «desincentivação» essa que é efetuada através da respetiva criminalização.
(…)
Do exposto resulta que se há de concluir que a norma em apreço apresenta aquele mínimo de ressonância ética que expressa os valores da coletividade, consequentemente não se mostrando, ao desenhar como ilícito criminal a conduta nela tipificada, como desproporcionada, excessiva ou ultrapassadora de uma justa medida e, por isso, se afigurando como compatível com a dignidade humana o sancionamento criminal que leva a efeito. (…)»
Na fundamentação do Acórdão n.º 83/1995 reforça-se que «a vida e a segurança das pessoas que circulam nas estradas — que o legislador pretende proteger com a punição da condução de veículos automóveis por quem não possua habilitação legal — são seguramente bens que, à luz da ordem jurídico-constitucional de valores, o direito penal pode assumir como seus (isto é, como bens jurídico-penais)».
Nos arestos citados estava em causa a condição de veículos automóveis, enquanto que nos presentes autos respeitam à condição de um ciclomotor. O legislador teve em atenção a diferença entre um e outro veículo e, por isso, pune com pena mais grave a condução de veículos automóveis sem habilitação legal (cfr. n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 2/98).
Mas essa especificidade é insuscetível de afastar a argumentação deduzida no sentido da não inconstitucionalidade da norma.
É incontroverso que a restrição a direitos fundamentais que a pena representa se encontra aqui cabalmente justificada, pois estamos perante a tutela de um bem jurídico digno e carente de tutela penal.
Em suma, tendo o legislador infraconstitucional uma ampla margem de conformação para tipificar certos comportamentos como crime (cfr., entre outros, os Acórdãos n.ºs 573/95 e 595/2008) e estando em causa a proteção do bem jurídico segurança rodoviária, a perigosidade do comportamento em causa e as evidentes necessidades de prevenção, impõe-se concluir pela não inconstitucionalidade da norma em apreço.
III ? Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Julgar não inconstitucional a norma do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/98, enquanto estabelece que quem conduzir veículo a motor na via pública sem estar legalmente habilitado para tal é punido com pena de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias.
Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.
Lisboa, 25 de março de 2012.- Joaquim de Sousa Ribeiro – João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.