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ProcProc. nº 834/98
1ª Secção Rel. Consº.: Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - D..., com os sinais dos autos, em situação de prisão preventiva desde 22 de Abril de 1997, foi notificado em 21 de Abril do ano seguinte da acusação contra ele deduzida pelo Ministério Público, que se encontra junta aos autos, por fotocópia, de fls. 56 a 154 dos autos. Previamente à notificação e para assistir o arguido naquele acto foi nomeado intérprete. A notificação mostra-se certificada nos termos da certidão de fls. 32. Neste acto foi entregue ao arguido fotocópia da peça acusatória redigida em português. Em 24 de Abril de 1998, o arguido, em requerimento subscrito pelo seu advogado, pediu que fosse declarada a irregularidade da notificação da acusação por esta não ter sido efectuada com texto escrito em língua que ele compreendesse e, consequentemente, mostrando-se excedido o prazo de prisão preventiva, se ordenasse a imediata passagem de mandados de restituição à liberdade. O requerimento foi indeferido nos termos do despacho de fls. 42/43. O recorrente impugnou este despacho em recurso interposto para a Relação de Lisboa. Por acórdão de 1/7/98, a fls. 269 e segs., o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso. Deste aresto passa a transcrever-se os trechos que para o caso importam:
'III. Segundo o que dispõe os nºs 1 al. a) e 5 do artº 113º do C.P. Penal, a notificação do arguido respeitante à acusação efectua-se mediante o contacto pessoal com o notificando e no lugar em que este for encontrado. Tal notificação destina-se a transmitir o conteúdo do respectivo despacho proferido no processo (artº 111º, nº 1 do C.P. Penal). Quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao acto ou qualquer dos participantes processuais conheça a língua por aquela utilizada (cfr. artº 92º, nº 2 do C. P. Penal ). A função do interprete é, como se sabe, a de traduzir a outrem, numa determinada língua, o que ouve ou lê noutra. Dos autos extrai-se que não foi posto em causa que a Drª Carla Leão é uma intérprete idónea e, portanto, com profundo domínio das línguas portuguesa e inglesa. Logo, tal intérprete tinha capacidade para, ao ler o documento (certidão do despacho de arquivamento/acusação) escrito em português, imediatamente transmitir ao arguido de forma minuciosa e fiel o conteúdo desse documento na língua inglesa. E tudo leva a crer que assim sucedeu no caso em apreço pois, conforme se vê na certidão de fls. 32, acima reproduzida, o próprio arguido ?disse de tudo ficar bem ciente, facto que comunicou à referida intérprete?. Portanto, no mesmo dia em que foi deduzida a acusação, o arguido foi dela informado, em língua que compreendia e de forma a ficar bem ciente do conteúdo daquela. Dado, que ao deduzir-se a acusação, foi respeitado o disposto no artº 283º do C.P. Penal, o arguido, ao ouvir a tradução efectuada pela intérprete, ficou bem ciente da natureza e da causa da acusação contra ele formulada. Cabe dizer que não existe qualquer dispositivo legal que expressamente imponha que a notificação da acusação a um cidadão estrangeiro seja efectuada através da entrega do respectivo texto traduzido na língua estrangeira que o arguido compreende. Assim sendo, não se vislumbra qualquer desrespeito ao que dispõem os artºs 6º nº
3, al. a) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 16º da C.R.P. No tocante a esta matéria resta acrescentar que na hipótese da intérprete Drª Carla Leão ter exercido a sua função de forma incorrecta ou deficiente, verificar-se-ia então uma irregularidade processual. Não tendo sido atempadamente arguida, tal irregularidade sempre estaria sanada. A tudo isto acresce que a tradução em língua inglesa do texto da acusação foi, entretanto, facultada ao recorrente. IV. No que diz respeito ao invocado excesso de prisão preventiva, entendemos não poder deixar de acompanhar o doutamente decidido pelo Ac. do S.T.J. de 7/5/98 que recaiu sobre a providência excepcional do ?habeas-corpus? requerida pelo ora recorrente:
(transcrição com sublinhados nossos):
'O artº 215º, nº 3 do Código de Processo Penal estatui, na sua remissão para a alínea a) do seu nº 1, que o prazo máximo de prisão preventiva, na fase do inquérito, é aferido pelo acto processual ?dedução da acusação? e não pela notificação desta. No caso dos autos, e porque o processo foi declarado de excepcional complexidade, tal prazo era de um ano, a contar da data da prisão, ou, eventualmente, de um ano acrescido do tempo em que, porventura, se tenha verificado uma suspensão, não superior a três meses, se tiver sido necessário proceder a exames cujo resultado fosse necessário para a decisão da acusação, em harmonia com o preceituado no artigo 216º do mesmo diploma legal. Por isso, a acusação teria de ser deduzida, como foi, dentro daquele prazo, o qual só terminaria em 22 de Abril de 1998 (cf. o artigo 479º, nº 1 alínea a), do Código de Processo Penal). A pretensão do requerente de que o termo ?ad quem? deveria ser aferido pela notificação, por forma perceptível, da acusação, por só assim, ser possível a possibilitação da organização da defesa dentro das regras do julgamento conforme aos Direitos Humanos, não tem o menor apoio legal, e mais não pode ser do que a expressão de um desejo de alteração da Lei, com modificação da solução do legislador, voluntariamente não quis aceitar, para evitar que, por atrasos na comunicação, decorrentes, muitas vezes, de transferências dos reclusos feitas pela Administração Prisional por razões de segurança e que não são comunicadas aos Tribunais, um arguido pudesse ser libertado quando tempestivamente, já tivesse sido determinada a manutenção da sua situação prisional.?
É deste acórdão que vem interposto o presente recurso onde, nas suas alegações, o recorrente conclui nos seguintes termos:
' I Não basta nomear um intérprete ao recorrente, no momento em que se entrega uma acusação de 100 páginas, escritas numa língua que o mesmo desconhece, quando tal notificação desencadeia o início de um prazo peremptório de 20 dias, para requerer a instrução. Assim, o recorrente não pôde ler, não pode compreender e não pode dar instruções ao seu advogado. O recorrente necessita de ler, com calma e demoradamente, a sua acusação, para poder compreender e para se poder defender da mesma.
II O recorrente tem de ter a sua acusação traduzida num texto escrito, no exacto momento em que começa a correr o prazo para organizar o requerimento de instrução.
III Este direito está consagrado no artigo 6º., nº 3 alínea a) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem que consagra o direito a, por uma forma minuciosa ser informado do teor da acusação contra ele proferida, em língua que compreenda. Esta forma minuciosa, em língua que compreenda, exige, uma tradução escrita do texto da acusação, não sendo compatível com um resumo verbal do teor da acusação.
IV O artigo 111º do Código de Processo Penal esclarece que a comunicação dos actos processuais se destina a transmitir o conteúdo do acto realizado ou de despacho proferido no processo. Ora, transmitir o conteúdo é revelar ao recorrente, minuciosamente, e de modo a poder ser lido mais de uma vez, quer os factos quer o direito que consta do articulado da acusação, para a defesa ser possível. V A notificação da acusação, nos termos do artigo 113º nº 5 do Código de Processo Penal, tem de ser feita na própria pessoa do recorrente, porque a lei quer ter a certeza que o recorrente ficou ciente do conteúdo total e minucioso da acusação contra ele proferida. VI Estes artigos do Código de Processo Penal também impõem que a acusação seja apresentada ao recorrente em texto escrito, numa língua que o mesmo compreenda, e não somente em português, com eventual tradução oral das suas conclusões, no momento da notificação. VII Assim sendo, perante as disposições conjugadas do artigo 6º. nº 3 alínea a) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, perante a noção de notificação dada pelo artigo 111º do Código de Processo Penal e, ainda, perante a exigência da notificação pessoal, constante do artigo 113º nº 5 do Código de Processo Penal,
é possível concluir que a notificação da acusação a um cidadão estrangeiro tem de ser feita através da entrega do texto dessa acusação traduzido em língua que o mesmo compreenda. VIII A interpretação dada pelo acórdão recorrido ao artigo 111º conjugado com o artigo 92º, ambos do Código de Processo Penal, não aceitando a interpretação formulada pelo recorrente, torna inconstitucionais estes dois preceitos legais do citado código, por permitirem essa interpretação, por expressa violação dos artigos 16º nº 1 e 32º nº 1 da Constituição e do artigo 6.º nº 3 alínea a) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
IX Sendo a notificação da acusação inválida, como é, então o recorrente não foi notificado da acusação, no prazo de um ano, a contar da data da sua prisão preventiva, como teria de ser, nos termos do artigo 215.º nº 1 do Código de Processo Penal, sendo, neste momento, a sua prisão ilegal.
X Não se diga que, para se cumprir o prazo constante do artigo 215º nº 3 do Código de Processo Penal, não se exige a notificação da acusação, sendo suficiente a dedução da acusação, porque quando o Código de Processo Penal, no artigo 215º nº
1, alínea a), e nº 3, estipula que a prisão preventiva se extingue, depois que decorridos seis meses (ou um ano) sem que tenha sido deduzida acusação, obviamente, que impõe a dedução e a regular e legal notificação da acusação, no prazo de seis meses, ou de um ano. Se a acusação não for deduzida e regularmente notificada ao arguido, a mesma não serve de nada, não tem qualquer eficácia, não cumpre o seu fim. XI A interpretação dada a alínea a) do artigo 215º nº 1 do Código de Processo Penal, pelo despacho do Meritíssimo Senhor Juiz de Direito e depois adoptada pela Relação de Lisboa, torna a mesma inconstitucional, por violação dos artigos
27º nº 1 e 28º nº 4 da Constituição da República. XII A única forma legal e constitucional de interpretar a alínea a) do artigo 215º nº 1 do Código de Processo Penal é entendê-la como exigindo que a notificação seja escrita, e regularmente notificada ao arguido, através de um texto escrito numa língua que ele entenda, no prazo de seis meses ou de um ano. Assim sendo, e sempre com o douto e imprescindível suprimento, perante a interpretação dada pelas instâncias às normas dos artigos 92º nº 2, 111º nº 1 alínea c) e 215º nº 3 do Código de Processo Penal, pede-se que seja declarada a sua inconstitucionalidade, na medida em que permitem a interpretação que agora e neste recurso se questiona?. Nas suas contra-alegações, o Exmo Magistrado do Ministério Público formula as seguintes conclusões:
1º
'A eventual irregularidade da notificação operada pelo arguido, de nacionalidade estrangeira, e consistente em lhe não ter sido logo facultada tradução escrita da peça acusatória, apesar de no acto de notificação ter ocorrido intervenção de intérprete, nos termos legais, tem de considerar-se precludida, já que ? como refere o acórdão recorrido ? a mesma está sanada, pela não oportuna suscitação e pela circunstância de, entretanto, tal tradução lhe ter sido entregue.
2º O arguido abandonou a questão da eventual incidência de tal irregularidade ? apesar de precludida ? no exercício tempestivo do direito de defesa, expresso na dedução de requerimento para abertura da instrução, já que de nenhum modo procurou obter prorrogação do prazo legal de 20 dias, com fundamento na particular dificuldade, radicada na insuficiência de notificação, em organizar a sua defesa.
3º A decisão proferida pelo S.T.J., em processo de 'habeas-corpus', considerando que o prazo máximo de duração da prisão preventiva, nas fases de inquérito e da acusação, se determina em função da prática nos autos da peça acusatória ? e não do seu efectivo e completo conhecimento pelo arguido ? tem de considerar-se vinculatória neste processo, cumprindo ao ora recorrente ter suscitado perante tal decisão do Supremo a questão de constitucionalidade que só agora reporta à norma do artigo 215º, nº 3 do Código de Processo Penal.
4º Ainda que assim se não entenda, a interpretação de tal norma, consiste em contar o prazo máximo de duração da prisão preventiva em função da dedução da acusação
? e não da sua efectiva regular e completa notificação ao arguido ? não ofende qualquer preceito ou princípio da Lei Fundamental.
5º Termos em que não deverá conhecer-se do recurso interposto quanto às normas dos artigos 92º e 111º do Código de Processo Penal, atenta a preclusão da pretendida irregularidade da notificação. E deverá o mesmo ser julgado improcedente, quanto
à norma do artigo 215º, nº 3, caso se entenda que a decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do 'habeas corpus', não constituiu caso julgado, vinculativo da Relação neste processo?.
2 - Nas primeiras oito conclusões das suas alegações sintetiza o recorrente a tese segundo a qual o artigo 92º nº 2 do CPP, em conjugação com o disposto no artigo 111º nº 1 al. c) do mesmo Código, interpretado nos termos em que o acórdão recorrido o fez, ofende os artigos 31º nº 1 e 16º nº 1 da CRP e 6º nº 3 al. a) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH). Tal interpretação, no sentido de que a sua notificação da acusação contra ele deduzida não careceria de tradução escrita pelo intérprete nomeado, lesaria as suas garantias de defesa, constitucionalmente estabelecidas naqueles citados preceitos da CRP e da CEDH. A primeira questão de constitucionalidade suscitada é, assim, a de saber se a CRP impõe que a notificação da acusação, sendo acusado um cidadão estrangeiro que desconheça a língua portuguesa, se efectue mediante a entrega da peça acusatória traduzida (por escrito) na língua que aquele domina. E é esta a questão, pois, de facto, no acórdão impugnado, decidiu-se que, efectuada a notificação com a comunicação ao arguido do texto acusatório através de tradução oral feita pelo intérprete nomeado, se mostrava cumprido o artigo
92º nº 2 do CPP, não exigindo a CRP forma diversa de comunicação da acusação. Sustenta, porém, o Exmo Magistrado do Ministério Público nas suas contra-alegações que esta questão se deve considerar precludida porquanto o acórdão recorrido, admitindo por mera hipótese de raciocínio a irregularidade da notificação, a considerou sanada por falta de arguição atempada nos termos dos artigos 118º nºs 1 e 2 e 123º nº 1 do CPP; por outro lado a tradução do texto da acusação fora, entretanto, facultada ao recorrente. Mas não tem razão. Na verdade, o acórdão recorrido elege claramente como fundamento essencial da sua decisão de improcedência da alegação de invalidade da notificação a interpretação que tem como correcta dos citados preceitos do CPP e em conformidade com o disposto no artigo 6º nº 3 al. a) da CEDH e 16º da CRP.
É certo que, seguidamente e em breves palavras antecedidas pela elucidativa expressão ?No tocante a esta matéria resta acrescentar que...?(sublinhado nosso), o acórdão alude à sanação da irregularidade por falta de arguição atempada. Ora, em primeiro lugar, no contexto do aresto, este fundamento surge de forma meramente adjuvante e de reforço à decisão de improvimento. Depois e de forma decisiva para julgar improcedente a questão levantada pelo Ministério Público, deve realçar-se que o acórdão reporta esta irregularidade ao modo, incorrecto ou insuficiente, como o intérprete teria exercido a sua função, sendo certo que o fundamento da impugnação se dirigia contra os próprios termos em que a notificação fora efectuada ? ou seja, sem a entrega de tradução escrita da acusação ? e não contra uma qualquer deficiência ou incorrecção no exercício das funções de interpretação. Também não parece relevante o facto de em 19 de Maio seguinte (a notificação efectuara-se em 21 de Abril) ter sido entregue ao arguido a tradução escrita da acusação. Na verdade, já então havia decorrido quase todo o prazo assinalado na notificação da acusação para requerimento de instrução (ele expirava em 20 de Maio) e fora proferido o despacho recorrido do juiz de instrução julgando válida, em contrário do sustentado pelo recorrente, a notificação, tal como fora efectuada. Há, pois, que conhecer da questão de fundo. Inserido no Título II do Livro II do CPP, que dispõe sobre ?Da forma dos actos e da sua documentação?, o artigo 92º, depois de consagrar no seu nº 1 a regra da utilização da língua portuguesa nos actos processuais, estabelece no nº 2 o seguinte:
'Quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao acto ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada.' Nenhuma outra norma do CPP respeitante quer às notificações em geral, quer à notificação da acusação ao arguido dispõe sobre a intervenção de intérprete quando o notificando desconhecer ou não dominar a língua portuguesa. A citada norma ínsita no nº 2 do artigo 92º do CPP é, porém, suficientemente ampla para compreender a exigência de nomeação e intervenção de intérprete quando houver lugar à notificação do arguido naquelas circunstâncias. Já o que a norma não concretiza é o conteúdo da intervenção processual do intérprete. Não se pondo em dúvida que o intérprete há-de verter para a língua estrangeira adequada o acto a notificar, a lei processual não expressa, com efeito, se essa versão deve ser integral e em que termos (escritos ou orais) se impõe que ela se materialize. O acórdão recorrido não se pronuncia sobre o primeiro aspecto, certamente por os autos não documentarem o que o recorrente sempre deixou mais ou menos explicitamente alegado ? a interpretação não fora integral. Não pode, por isso, este Tribunal conjecturar o que no acórdão recorrido se não pressupôs no juízo efectuado sobre a constitucionalidade da norma em causa e que, consequentemente, não abarca qualquer pronúncia sobre a conformidade da mesma norma à CRP quando interpretada no sentido da suficiência de uma versão parcial ou sintética do acto da acusação. Já isso não acontece quanto à inexigibilidade da forma escrita da versão em língua estrangeira da acusação, juízo que claramente se formula no acórdão impugnado e o recorrente controverte. Ora, a intervenção de intérprete no acto de notificação da acusação a arguido que desconhece ou não domina suficientemente a língua portuguesa é medida que decorre necessariamente da estruturação de um processo criminal que assegure todas as garantias de defesa ao arguido. O conhecimento da acusação pelo arguido é para este determinante da opção pela estratégia de defesa que vier a desenvolver no processo; e, de imediato (no prazo de vinte dias a contar da notificação da acusação ? artigo 287º nº 1 al. a) do CPP), é decisivo para a formulação do seu juízo sobre a conveniência de requerer a abertura da instrução, pretensão que, nos termos do nº 3 do mesmo artigo 287º, deve expressar as razões, de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação. A notificação deve, assim, assegurar ao arguido o estudo e ponderação da peça acusatória, em termos que facultem a tomada das relevantíssimas decisões que, a partir desse momento, se lhe impõem. Como se deixou dito, não prescreve o CPP formalidades especiais para a notificação da acusação; esta deve processar-se nos termos gerais, tendo em conta que o seu fim é o de transmitir ?o conteúdo do acto realizado ou de despacho proferido no processo? (artigo 111º nº 1 al. c) do CPP). A transmissão do conteúdo do acto ou despacho opera-se, nos termos do artigo
228º nº 3 do CPC (ex vi artigo 4º do CPP), com a entrega ?de todos os elementos e de cópias legíveis dos documentos e peças do processo necessárias à plena compreensão do seu objecto?. Em termos gerais, pois, a notificação da acusação efectua-se com a entrega ao notificando de cópia da peça acusatória, procedimento que assegura cabalmente os direitos de defesa do arguido. Do ponto de vista da conformidade com as garantias de defesa do arguido constitucionalmente consagradas no artigo 32º nº 1 da CRP, a questão que se coloca é, afinal, a de saber se, no caso de arguido que desconheça a língua portuguesa, a entrega de cópia da acusação escrita em português, acompanhada da transmissão oral do seu conteúdo, por intérprete, na língua conhecida pelo notificando, assegura, de igual modo, os direitos do arguido. Numa primeira análise, mas tendo como outro parâmetro de constitucionalidade os princípios da equiparação dos estrangeiros aos cidadãos portugueses em matéria de direitos fundamentais (artigo 15º nº 1 da CRP), a resposta seria negativa. Com efeito, a perfeita equiparação do cidadão estrangeiro ao cidadão português postularia que, tal como a este é entregue cópia da acusação em língua que ele compreende, ao primeiro devesse igualmente ser entregue cópia da mesma peça vertida na língua por ele conhecida. Trata-se, no entanto, de uma argumentação de pendor formalista que não atende à necessidade de uma regulação adaptada a realidades irredutivelmente diferentes e que não contenda com outros bens e valores igualmente protegidos, esquecendo que essa pretendida equiparação, entendida em termos substanciais, sempre se poderá alcançar, ainda que por meios diversos, desde que, em concreto, os direitos igualmente concedidos a nacionais e estrangeiros possam por estes ser plenamente exercidos. A verdade é que não se vê qualquer obstáculo de ordem constitucional a que as garantias de defesa do arguido, genericamente asseguradas pelo artigo 32º nº 1 da CRP, se traduzam, no caso, na consagração de normas processuais distintas, desde que elas igualmente assegurem que o fim da garantia em causa - o de permitir uma defesa eficaz, desde logo com a tomada das decisões já acima referidas com base no conhecimento minucioso da matéria da acusação ? possa ser alcançado. Já não estará aqui em questão a igualdade formal com o direito do cidadão português, mas a possibilidade ou impossibilidade de serem conformes à CRP outras formalidades de notificação da acusação, adaptadas aos casos de cidadãos sem conhecimento da língua portuguesa, diversas da formal equiparação que constituiria, para estes últimos, a entrega de tradução escrita da peça acusatória - o parâmetro de constitucionalidade reside, agora e só, no princípio consagrado no artigo 32º nº 1 da CRP. Sendo a fórmula do nº 1 do artigo 32º da CRP uma expressão condensada das restantes normas do mesmo artigo, ela não deixa de traduzir uma cláusula geral que abrange garantias não especificadas nos números seguintes mas igualmente reclamadas por uma tutela eficaz dos direitos de defesa dos arguidos (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira ?Constituição da República Anotada?, nota II ao artigo
32º, p. 202). Num processo em que a equidade, a igualdade de armas, o acusatório, são, entre outros, princípios que os direitos de defesa reclamam, o conhecimento detalhado e esclarecido, por parte do arguido, do que (de facto e de direito) lhe é imputado na acusação reveste-se ? como se deixou já dito - de uma importância decisiva. Inscreve-se, pois, nas garantias de defesa que o processo criminal, por imperativo constitucional, deve assegurar, a que se consubstancia no direito do arguido àquele conhecimento pleno da matéria constante da acusação, em termos - acrescente-se ? que permitam o seu estudo consciente e aprofundado, pois só assim se perfazem as condições indispensáveis para o acusado preparar a defesa que entender mais adequada. Ora, afigura-se que a tradução oral da acusação, por intérprete, não compromete as garantias de defesa do arguido consagradas no comando constitucional com a assinalada dimensão. Na verdade, esta forma de notificação não obsta a que o arguido p. ex. vá colhendo da leitura as notas (escritas) que entender convenientes, peça esclarecimentos ao intérprete ou solicite repetições sobre trechos eventualmente mais complexos, tudo no sentido de uma percepção completa, minuciosa e profunda da peça acusatória. Competindo ao funcionário encarregado da notificação a transmissão fiel do conteúdo da acusação, o desempenho perfeito da função de interpretação há-de permitir ao arguido os procedimentos referidos em termos que o apetrechem com o conhecimento necessário e suficiente para gizar a estratégia de defesa subsequente. Se assim não for, não é já uma questão de desconformidade da norma ínsita nos artigos 92º nº 2 e 111º nº 1 al. c) do CPP, interpretada nos termos em que o foi, que se coloca, mas uma outra ? aqui sim - de irregularidade ou deficiência no desempenho da função de intérprete, que o recorrente, aliás, não parece ter verificado, quando subscreve a certidão de notificação fotocopiada a fls, 32 onde afirma ?de tudo ficar bem ciente?. Dir-se-á que se trata de uma forma menos ?cómoda? de o arguido tomar cabal conhecimento da acusação, obrigando-o eventualmente a tarefas complementares que seriam desnecessárias se o texto da acusação fosse desde logo entregue na versão em língua estrangeira apropriada; mas se é de facto assim, não pode dizer-se que ocorra uma qualquer compressão, minimamente relevante, dos direitos de defesa do arguido garantidos pelo artigo 32º nº 1 da CRP. Invoca ainda o recorrente a violação do artigo 6º nº 3 al. a) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Vale aqui o que se disse no Acórdão deste Tribunal nº 352/98, in DR II Série, nº
160, de 14/7/98, a propósito de invocação semelhante noutro processo:
'(...) se a Convenção Europeia dos Direitos do Homem deve ser perspectivada num sentido de aplicação directa no ordenamento jurídico nacional, é necessário não olvidar que, se dos preceitos constitucionais relativos aos direitos fundamentais já se retirarem em todas as suas vertentes (aqui se incluindo as que se extratam de uma interpretação, como dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., p. 138, 'de acordo com as regras hermenêuticas, à ordem constitucional dos direitos fundamentais'), o alcance e sentido que porventura se encontrem naquela Convenção, nada lhe sendo, pois, acrescentado por esta, o recurso à mesma é, de todo e na realidade das coisas, destituido de sentido (cf. por entre muitos, os Acórdãos deste Tribunal nºs 14/84, nº 2.2, parte final, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2º vol., pp. 339 e segs. e 222/90, idem, 16º vol., pp. 635 e segs.). Parafraseando, e com a adaptação que se imporá, os autores e obra citados ? que se reportam não à Convenção dos Direitos do Homem, mas sim à Declaração Universal dos Direitos do Homem e a propósito do nº 2 do artigo 16º da Constituição ? esta questão ?é praticamente irrelevante, pois a Constituição não só consumiu a Declaração ? sendo muitas das disposições constitucionais reprodução textual, ou quase textual, de disposições daquela ? mas também inclui direitos não referidos na Declaração?. Dispõe o artigo 6º nº 3 al. a) da CEDH:
'3 ' O acusado tem, no mínimo, os seguintes direitos: a) Ser informado no mais curto espaço, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada;? A este preceito importa aproximar o que consta da al. e) do mesmo artigo 6º nº 3 que reconhece ao acusado o direito de ?fazer-se assistir gratuitamente por intérprete, se não compreender ou não falar a língua usada no processo?. Ora, sobre estes preceitos a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) colhe-se do que foi decidido no Caso Kamasinski (Acórdão de
19/12/89, série A, nº 168), onde, entre outras questões, se suscitava a de saber se a Convenção obrigava, na comunicação da acusação ao arguido que não dominasse a língua usada no processo, à tradução escrita da peça acusatória. Muito embora chamando a atenção para o extremo cuidado de que deve revestir-se a notificação da acusação, o TEDH ali expressamente reconheceu que a Convenção não exige a tradução escrita da peça acusatória. Nada, pois, de substancialmente diverso do que o artigo 32º nº 1 da CRP postula como garantia de defesa do arguido, a que se conforma o preceituado nos citados artigos do CPP, com a interpretação que lhe foi dada pelo acórdão recorrido. Improcede, deste modo, a invocada inconstitucionalidade das normas ínsitas nos citados preceitos do CPP.
3 - Com esta decisão fica inevitavelmente prejudicado o conhecimento da segunda questão de constitucionalidade que o recorrente suscita. Na verdade, pondo embora o recorrente em causa a interpretação segundo a qual o artigo 215º nº 3 do CPP estabelece como termo ?ad quem? do prazo máximo de um ano de prisão preventiva a dedução da acusação e não a notificação desta, o efeito útil do presente recurso, nesta parte, só poderia ser alcançado, se se entendesse inválida a notificação da acusação.
É que, tendo lugar a notificação da acusação no mesmo dia em que esta foi deduzida (21/4/98), o alegado excesso de prisão preventiva só se verificaria se inválida fosse aquela notificação. Por outras palavras, um eventual julgado de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 215º nº 3 do CPP, na interpretação dada no acórdão recorrido
(em contrário do decidido, o referido prazo teria como termo ?ad quem? a notificação da acusação), em nada se reflectia na decisão de fundo, uma vez que, reconhecida a regularidade da notificação, o prazo máximo de um ano de prisão preventiva mantinha-se respeitado. Ora, dado o carácter instrumental do recurso para o TC, em fiscalização concreta de constitucionalidade, não cabe a este Tribunal emitir pronúncias com mero valor académico, sem relevância na decisão da questão concreta em debate no processo. Fica, assim, prejudicado o conhecimento da segunda e última questão de constitucionalidade suscitada.
4 - Decisão: Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Lisboa, 23 de SEtembro de 1998 Artur Mauricio Luis Nunes de Almeida Vitor Nunes de Almeida Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa