Imprimir acórdão
Procº nº 636/95 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1. Por Acórdão do Tribunal Colectivo da Comarca da Figueira da Foz de 14 de Maio de 1990, foi J. condenado a uma pena única de 20 anos de prisão, dos quais lhe foram perdoados 30 meses, por um crime de homicídio, um crime de furto qualificado, dois crimes de introdução em casa alheia e um crime de evasão, na forma tentada.
2. Interposto recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, com fundamento, inter alia, na inconstitucionalidade da norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, com a sobreposição interpretativa do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, foi-lhe negado provimento, por Acórdão de 16 de Agosto de 1990.
3. Por Acórdão de 21 de Novembro de 1990, o Supremo Tribunal de Justiça confirmou a antecedente decisão, que lhe fora trazida, em recurso, pelo arguido.
4. Inconformado, interpôs este novo recurso para o Tribunal Constitucional, invocando a inconstitucionalidade da norma do artigo 665º do Código Penal de 1929, com a sobreposição interpretativa do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, na medida em que limita os poderes das Relações, na apreciação da matéria de facto, nos recursos para si interpostos das decisões do tribunal colectivo. Pelo Acordão nº 335/91 ,foi então feita aplicação da jurisprudência firmada pelo Acórdão nº 340/90
(publicado no Diário da República, II Série, de 19 de Março de 1991), que julgou inconstitucional a norma impugnada, na interpretação constante do assento referido.
5. Remetido o processo ao Supremo Tribunal de Justiça, para este reformar a sua anterior decisão em conformidade com o juízo formulado sobre a questão de constitucionalidade, veio este, por Acórdão de 22 de Janeiro de 1992, a considerar que, embora a decisão do Tribunal Constitucional não julgasse inconstitucional a norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929 sem a sobreposição interpretativa do referido assento, também esta seria, por idênticas razões, inconstitucional. Assim, propôs-se criar uma norma adequada ao preenchimento da lacuna resultante da inaplicabilidade - com fundamento em vício de inconstitucionalidade - do referido artigo, estabelecendo a seguinte norma:
'Artº 665º: (Poderes da Relação)
1- As Relações conhecerão de facto e de direito nas causas que julgam em primeira instância, nos recursos interpostos das decisões proferidas pelos juízes de 1ª instância, das decisões finais dos tribunais colectivos e das proferidas nos processos em que intervenha o júri, baseando-se para isso, nos dois últimos casos, nos documentos, respostas aos quesitos e ou quaisquer outros elementos constantes dos autos, por si só ou conjugados com as regras da experiência comum.
2- As Relações podem anular as decisões do tribunal colectivo, mesmo oficiosamente, quando reputem insuficientes, obscuras ou contraditórias as respostas aos quesitos formulados ou quando considerem indispensável a formulação de outras questões, ou quando haja nova matéria de apreciação da prova.
3- As Relações podem determinar oficiosamente a renovação da prova para evitar a anulação da decisão do tribunal colectivo.
4- A decisão que determinar a renovação da prova é definitiva e fixa os termos e a extensão com que a prova produzida em primeira instância pode ser renovada.
5- Havendo lugar à renovação da prova, intervêm na audiência os juízes do processo, sobre a presidência do relator, observando-se na parte aplicável o disposto nos artºs. 423º e 430º do C.P.P. de 1987'.
6. Dessa decisão, na parte em que recusou a aplicação da norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929 (na redacção do Decreto com força de lei nº 20147, de 1 de Agosto de 1931), foi interposto recurso
(obrigatório) por parte do Ministério Público para o Tribunal Constitucional, que, no seu Acórdão nº 430/94, lhe negou provimento, seguindo a jurispru- dência estabelecida pelo Acórdão nº 190/94 (publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Dezembro de 1995), mas com quatro votos de vencido.
7. Tendo feito vencimento a tese de que, mesmo sem a sobreposição interpretativa do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, o artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929 era inconstitucional, como decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, foi o processo remetido por este ao Tribunal da Relação de Coimbra, para a aplicação a ter lugar aí da norma criada pelo Supremo Tribunal de Justiça (transcrita no ponto 5), legislando 'dentro do espírito do sistema', como previsto no nº 3 do artigo 10º do Código Civil.
8. Por Acórdão de 27 de Novembro de 1994, o Tribunal da Relação de Coimbra procedeu à reforma da decisão condenatória, com base na citada norma.
Aquele aresto, 'considerando os documentos, as respostas aos quesitos, que não enfermam de obscuridade, suficiência ou contradição, e os demais elementos constantes do processo, que não implicam erro notório na apreciação da prova, nem preconizam a renovação da mesma', considerou provada a seguinte matéria de facto:
'No dia 3.4.985, entre as 9.00 horas e as 14h.30m., nos lugares de Seixede e Broeivos, da freguesia de Alhadas, o réu entrou pelas janelas, nas casas de habitação de L. e J., com o intuito de se apoderar de bens e valores, tendo subtraído, na primeira, uma quantidade indeterminada de moedas de colecção, já retiradas da circulação.
O segundo, J., ao regressar a casa e vendo-a remexida, com a janela aberta, comunicou o facto ao seu sobrinho, de nome J.J.dos S.C., o qual, de motorizada, foi no encalce do réu e, encontrando-o, interpelou-o para devolver o que tinha tirado, tendo aquele negado que tivesse tirado alguma coisa.
Entretanto, o M. foi avisar o sobrinho, depois da vistoria à casa, de que não tinha dado por falta de nada, mas, quando chegou junto do sobrinho e do réu disse que as sapatilhas usadas por este tinham um formato semelhante às pegadas que vira junto à residência.
Então, o M. dirigiu-se ao réu e disse-lhe:
'Mas, foste tu, ladrão, foste tu que lá entraste', após o que o réu recusou e o S.C. avançou para este; quando ambos estavam muito próximos um do outro, o réu puxou da pistola de que andava munido e tinha escondida na roupa, e disparou contra o torax do S.C., voluntariamente, admitindo e aceitando a morte dele como resultado do disparo, tendo a bala causado ao atingido lesões que directa e necessariamente lhe causaram a morte.
O réu agiu de surpresa, com o objectivo de não ser surpreendido com as moedas que subtraíra, atrás referidas, e que leva num saco que trazia consigo, tendo fugido após o disparo'.
Com base nesta matéria de facto fixada pelo Tribunal da Relação, considerou este ser de 'negar provimento ao recurso, mas reduzindo-se a pena unitária aplicada para 15 anos de prisão'.
9. De novo inconformado, levou o arguido recurso ao Supremo Tribunal de Justiça, concluindo assim as suas alegações:
a) A norma do artº 665º do C.P.P. de 1929, na redacção criada pelo S.T.J. pelo Acórdão de 22 de Janeiro de 1992, é inconstitucional, por não conferir todas as garantias de defesa ao réu criminal, nomeadamente questionando o princípio de duplo grau de jurisdição em matéria de facto;
b) A referida norma, em especial os nºs 2 e 3, limitam o direito ao duplo grau de jurisdição em matéria de facto na medida em que só permite anular a decisão do colectivo ou ordenar a renovação da prova, quando se reputem de deficientes, obscuras
ou contraditórias as respostas aos quesitos, ou quando se considere indispensável a formulação de outros quesitos, ou quando haja erro notório na apreciação da prova;
c) A referida norma continua a negar ao réu criminal o direito de ver repetida perante a 2ª Instância, sem quaisquer limitações, a prova oralmente produzida perante o tribunal colectivo;
d) A inconstitucionalidade da referida norma constitui fundamento do presente recurso, e por forma a que venha a ser ordenada perante a Relação, contrariamente ao que entendeu a decisão recorrida, a repetição da prova oralmente produzida em 1ª Instância;
e) Trata-se de inconstitucionalidade material por violação do disposto no artº
32º, nº 1 da Constituição da República, e do princípio constitucional de duplo grau de jurisdição em matéria de facto no processo penal condenatório'.
Por Acórdão de 18 de Maio de 1995, o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.
10. Deste aresto, trouxe o arguido recurso para o Tribunal Constitucional, invocando a inconstitucionalidade 'do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, na redacção criada pelo Supremo Tribunal de Justiça, pelo acórdão de 22 de Janeiro de 1992, proferido nos presentes autos, nomeadamente por violação do disposto no artigo 32º, nº 1 da Constituição da República e por violação do princípio constitucional do duplo grau de jurisdição em matéria de facto no processo penal condenatório', concluindo assim as suas alegações:
'a) A norma do artº 665º do C.P.P. de 1929, na redacção criada pelo S.T.J. pelo Acórdão de 22 de Janeiro de 1992, de fls. 839/843, é inconstitucional, por não conferir todas as garantias de defesa ao réu criminal, nomeadamente questionando o princípio de duplo grau de jurisdição em matéria de facto;
b) A referida norma, em especial os nºs 2 e 3, limitam o direito ao duplo grau de jurisdição em matéria de facto na medida em que só permite anular a decisão do colectivo ou ordenar a renovação da prova, quando se reputem de deficientes, obscuras ou contraditórias as respostas aos quesitos, ou quando se considere indispensável a formulação de outros quesitos, ou quando haja erro notório na apreciação da prova;
c) A referida norma continua a negar ao réu criminal o direito de ver repetida perante a 2ª Instância, sem quaisquer limitações, a prova oralmente produzida perante o tribunal colectivo;
d) Está-se perante uma inconstitucionalidade material por violação do disposto no artº 32º, nº 1 da Constituição da República e do princípio constitucional de duplo grau de jurisdição em matéria de facto no processo penal condenatório.
e) A inconstitucionalidade da referida norma constitui fundamento do presente recurso, e por forma a que, declarada a sua inconstitucionalidade, seja ordenado que o Supremo Tribunal de Justiça reformule o acórdão recorrido em conformidade com tal decisão de inconstitucionalidade'.
Por sua vez, o Exmº Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal encerrou assim as suas alegações:
1º
A 'norma', jurisprudencialmente criada para substituir o inconstitucionalizado artigo 665º do Código de Processo Penal, aplicada nos presentes autos admite, com a amplitude suficiente para garantir o direito de defesa do arguido, a possibilidade de renovação, perante as relações, na extensão que venha a ser fixada, de determinados meios probatórios, quando ocorram deficiências, ou contradições nas respostas aos quesitos, seja necessário ampliar a matéria de facto ou 'quando haja nova matéria de apreciação da prova'.
2º
A referida 'norma' assegura, deste modo, ao arguido que haja curado de impugnar fundadamente a decisão proferida pelo colectivo sobre pontos determinados da matéria de facto a possibilidade de obter a correcção dos apontados erros na apreciação das provas, facultando, quando tal se revele concretamente necessário e adequado, a renovação das provas incorrectamente avaliadas pelo colectivo perante a Relação.
11. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos.
12. Antes de analisar a questão de constitucionalidade que este Tribunal tem agora entre mãos, importa resolver algumas preliminares.
12.1. A primeira tem a ver com a forma como o requerimento de interposição do recurso deu cumprimento ao disposto no artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, alterada pela Lei nº
85/89, de 7 de Setembro), o qual determina quais os elementos ou requisitos que devem constar do requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, requisitos esses que são requisitos formais do recurso e não simples deveres de cooperação com o Tribunal, como se escreveu, entre outros, nos Acórdãos nºs. 402/93 e 462/94 (publicados no Diário da República, II Série, de 18 de Janeiro de 1994 e 21 de Novembro de 1994, respectivamente).
No requerimento de interposição do recurso, vem indicado que a alínea do nº 1 do artigo 70º ao abrigo da qual o recurso é interposto é a alínea d). Todavia, tendo em conta o teor desta alínea (que prevê o recurso de decisões que recusem a aplicação de uma norma constante de diploma regional, com fundamento na sua ilegalidade por violação do estatuto da região autónoma ou de lei geral da república) , é manifesto que se trata de um lapsus calami, pelo que, tal como promove o Exmº Procurador-Geral Adjunto, considera o Tribunal suprido tal lapso, entendendo-se a referência à alínea d) como feita à alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
12.2. A segunda diz respeito ao problema de saber se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Janeiro de 1992 se encontra uma norma jurídica, para efeitos de recurso de constitucionalidade, ou se nele não se descortina mais do que uma simples decisão judicial. A colocação deste problema
é pertinente, dado que, como é sobejamente conhecido e tem sido afirmado e repetido em grande número de arestos deste Tribunal, a competência do Tribunal Constitucional é uma competência de controlo da constitucionalidade de normas e não de decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Ora, não há dúvidas de que aquele aresto criou, nos termos do artigo
10º, nº 3, do Código Civil, uma norma jurídica, ainda que, como salienta J. Baptista Machado, uma simples norma 'ad hoc', apenas para o caso sub judicio, sem que de modo algum adquira carácter vinculante para futuros casos ou para outros julgadores '(cfr. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1993, p. 203). Mas essa norma, criada pelo intérprete, 'se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema', traduz, como sublinha J. Oliveira Ascensão, 'uma intenção generalizadora', apontando a referência feita no artigo 10º, nº 3, do Código Civil à função de legislar para a necessidade de elevar a perspectiva para além do caso a decidir.
Ainda segundo o mesmo autor, o artigo 10º, nº 3, do Código Civil
'proclama também, consagrando aqui a tendência doutrinária portuguesa, o primado da norma sobre a solução do caso concreto: é porque se determinou aquela que a solução do caso concreto se tornou possível. Fala-se efectivamente na norma que o próprio intérprete criaria, e é essa norma que resolve o caso' (cfr. A Integração das Lacunas da Lei e o Novo Código Civil, in o Direito, Ano 100, Nº
3, p. 288, 289).
Na linha deste entendimento, escreveu-se no Acórdão deste Tribunal nº 150/86, publicado no Diário da República, II Série, de 26 de Julho de 1986) que 'exercício do poder normativo existirá, na realidade, também sempre que, como no caso vertente, ao tribunal cabe criar o direito, mais que dizê-lo e aplicá-lo. É o que acontece, igualmente, quando ao juiz, para integrar uma lacuna, é deferido pela lei [cfr. o artº 10º, nº 3, do Código Civil (CC) português; o artº 1º do Código Civil suíço; o artº 22º da Lei sobre Fontes de Direito da Cidade do Vaticano] o poder de criar a norma aplicável, como se fosse o legislador (Renzo Provinciali, Norme de diritto processuale nella costituzione, pp. 189 e ss.; S. Belaid, Essai sur le pouvoir créateur et normatif du juge)'.
No caso concreto, pode também dizer-se, utilizando as palavras daquele aresto, que o Supremo Tribunal de Justiça, ao formular a norma sobre os poderes das Relações nos recursos penais, 'não estava a dizer o direito aplicável ao caso concreto, antes estava, na verdade, a criar esse direito; não estava a decidir um litígio, antes a fixar os critérios [...] que lhe permitiriam vir a resolvê-lo num momento ulterior. Isto é, não estava a exercer uma função materialmente jurisdicional' [devendo acrescentar-se que, na hipótese vertente, a situação ainda é mais nítida do que a do Acórdão nº 150/86, porquanto ocorreu mesmo uma separação entre a instância criadora da norma (o Supremo Tribunal de Justiça) e a instância que a aplicou, pelo menos num primeiro momento (o Tribunal da Relação de Coimbra)].
12.3. A terceira relaciona-se com a determinação do objecto do presente recurso de constitucionalidade. Ele não é constituído por todas as normas do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929 recriado pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão de 22 de Janeiro de 1992, mas apenas pelas normas constantes nºs. 1,2 e 3 daquele preceito, enquanto, como refere o recorrente, negam 'ao réu criminal o direito de ver repetida perante a 2ª Instância, sem quaisquer limitações, a prova oralmente produzida perante o tribunal colectivo'.
13. Ultrapassadas estas questões preliminares, poderá, agora, perguntar-se: as normas do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929 recriado por aquele Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto barram 'ao réu criminal o direito de ver repetida perante a 2ª Instância, sem quaisquer limitações, a prova oralmente produzida perante o tribunal colectivo' (como escreveu o recorrente nas conclusões das suas alegações), violam o artigo 32º, nº 1, da Constituição?
O Tribunal entende que não, pelas razões que sucintamente se indicam.
13.1. O artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, na formulação que lhe deu o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Janeiro de 1992, tem um conteúdo substancialmente idêntico ao das normas dos artigos
410º, nº 2, e 433º do actual Código de Processo Penal, com a evidente diferença de no domínio destes, o recurso ('revista alargada') das decisões condenatórias do tribunal colectivo ser interposto para o Supremo Tribunal de Justiça e não para o Tribunal da Relação.
Tal facto é realçado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que reconstruiu aquele preceito, nos seguintes termos:
'Pela redacção do nº 1 da norma transcrita, a competência das Relações em matéria de facto fica efectivamente alargada em relação à redacção constante do correspondente preceito do Código.
Quanto ao nº 2, chamou-se directamente ao artigo 665º os poderes de anulação já contemplados no nº 2 do artigo 712º do Código de Processo Civil, aplicáveis subsidiariamente, mas adiantando-se o caso de erro notório na apreciação da prova, por inspiração do novo Código de Processo Penal (cfr. artº 410º, nº 2, al. c) e 428º, nº 2).
Relativamente ao nº 3, introduz-se na norma em causa a inovação da renovação da prova, que caracteriza os poderes das Relações na estrutura da nova lei de processo, e que possibilita ao tribunal de recurso fazer reproduzir perante si próprio determinada prova, em vez de ordenar a anulação da decisão recorrida, nos termos previstos no nº 2 .
O nº 5 limita-se a regular os trâmites da audiência de julgamento do recurso com renovação da prova em termos análogos aos do novo Código de Processo Penal.
Crê-se que, globalmente, a norma enunciada vai ao encontro das mais prementes garantias de defesa constitucionalmente garantidas.
A elas acresce ainda a existência de um grau de recurso das decisões das Relações para o Supremo Tribunal de Justiça, que, embora circunscrito à matéria de direito, pode levar este Tribunal a ordenar a baixa do processo à Relação quando entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito (artº. 729º, nº 3 do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente), o que não deixa de constituir certamente uma garantia suplementar quanto ao apuramento da matéria de facto'.
13.2. Ora, as normas do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal de 1987, bem como do artigo 433º do mesmo Código não foram julgadas inconstitucionais, em vários acórdãos deste Tribunal, ainda que os mesmos não tenham logrado alcançar a unanimidade dos juízes que compõem cada uma das suas Secções (cfr., entre outros, os Acórdãos nºs. 234/93, 322/93, 356/93, 141/94,
170/94 e 171/94, o terceiro publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol. 25º, p. 505 ss., e os restantes no Diário da República, II Série, de 2 de Junho de 1993, de 29 de Outubro de 1993, de 7 de Janeiro de 1995, de 16 de Julho de 1994 e de 19 de Julho de 1994, respectivamente).
Dada a identidade substancial entre o recriado artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929 e as mencionadas normas do Código de Processo Penal de
1987, também aquele não enferma de inconstitucionalidade, pelos fundamentos daqueles arestos deste Tribunal, para os quais se remete.
De resto, como abundantemente se expôs na jurisprudência citada, o segundo grau de jurisdição em matéria de facto em parte alguma reveste a natureza de um direito potestativo do arguido a ver repetida 'sem quaisquer limitações' a prova produzida - que corresponderia, na prática, a inutilizar todas as primeiras decisões probatórias que culminassem em condenação e, no dizer de Cunha Rodrigues, a proporcionar 'segundos julgamentos necessariamente montados sobre cenários já utilizados e com prévio ensaio geral'(cfr. Recursos, in Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal, Coimbra, Almedina, 1992, p. 393].
III - Decisão.
14. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma respeitante aos poderes das Relações em matéria de facto nos recursos das decisões penais condenatórias dos tribunais colectivos, criada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Janeiro de 1992, no uso do poder previsto no artigo 10º, nº 3, do Código Civil;
b) Em consequência, negar provimento ao recurso e confirmar o acórdão recorrido, no que respeita à questão de constitucionalidade.
Lisboa, o5 de Março de 1998 Fernando Alves Correia Messias Bento Bravo Serra José de Sousa e Brito (vencido, nos termos da declaração de voto junta, quanto à fundamentação)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido quanto á fundamentação, por entender que a norma especialmente criada pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 22 de Janeiro de 1992, e aplicada na sentença recorrida, tem um conteúdo que não é
'substancialmente idêntico', mas antes substancialmente diverso do dos artigos
410º nº 2 e 433º do Código de Processo Penal de 1987, precisamente do ponto de vista das razões aduzidas pelos juízes que votaram no sentido da sua inconstitucionalidade, entre os quais me incluo. Com efeito, enquanto que estes
últimos artigos limitam a cognição do tribunal de recurso em matéria de facto a
'vício que resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum', a norma especialmente criada pelo Supremo admite a consideração para o mesmo efeito não apenas do texto da decisão, mas de
'documentos, respostas aos quesitos e ou quaisquer outros elementos constantes dos autos'. Além disso, tal norma permite anular as decisões do colectivo quando se considere 'indispensável a formulação de outras questões', faculdade que não está prevista no nº 2 do artigo 410º.
Note-se que o Supremo Tribunal de Justiça como tribunal de recurso tem presentes os autos e não apenas a decisão recorrida (artigo 406º do Código de Processo Penal). Para julgamento de nulidades que tenham sido invocadas como fundamento do recurso, nos termos do nº 3 do mesmo artigo 410º, terá o Supremo, em muitos casos, que examinar os autos.
De qualquer modo, sempre o exame dos autos será indispensável para saber se houve condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia (alínea b) do artigo 379º).
Não se vê porque razão qualquer erro detectável na apreciação da prova através do exame dos autos não haja de poder ser fundamento de recurso, como aliás, o era no regime do Código de Processo Penal de 1929 (artigo 665º). Não é apenas a garantia dos direitos de defesa do arguido que o exige. No mesmo sentido vão aqui o princípio da verdade material e o interesse da prossecução penal. A maior simplicidade ou celeridade da decisão do recurso não são decerto interesses comparáveis.
As restrições ao conhecimento do facto adoptadas pelo artigo 410º, nº 2 são ainda menos necessárias, do ponto de vista do artigo 18º da Constituição, se se atentar, como faz o Conselheiro Mário de Brito na sua declaração de voto no Acórdão 356/93 (Acórdãos do Tribunal Constitucional,
25,p.523 ss), que elas limitam a cognição do tribunal de recurso mesmo se e quando toda a prova produzida em audiência estiver registada, bem como nos casos da declaração prevista no artigo 364º (cfr. o artigo 428º, nº 2), do Código de Processo Penal, em que todas as declarações ficam a constar da acta, pelo que o tribunal de recurso tem perante si documentada toda a prova produzida em audiência.
Ora a norma especialmente criada pelo Supremo Tribunal de Justiça, através da pena do Conselheiro Manso Preto, e aplicada no caso, não era tocada por estas críticas. Luis Nunes de Almeida (vencido quanto à fundamentação, nos mesmos termos que o Exmº Cons. Sousa Brito)