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Proc. nº 461/98
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. C... foi condenado na pena única de três anos de prisão, resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares que lhe foram aplicadas pelo cometimento dos crimes de burla continuada e furto qualificado, tendo beneficiado do perdão de um ano de prisão, sob condição resolutiva de não praticar infracção dolosa nos três anos subsequentes à data da entrada em vigor da Lei nº 15/94, de 11 de Maio, nos termos dos artigos 8º, nº 1, alínea d), e 11º deste diploma legal.
No dia 8 de Março de 1996, o arguido praticou um crime doloso de condução sob a influência do álcool, previsto e punível nos termos do artigo
292º do Código Penal, pelo qual foi condenado na pena de 120 dias de multa, o que determinou a resolução do perdão de que havia beneficiado, nos termos do artigo 11º da Lei nº 15/94, de 11 de Maio (decisão de fls. 8).
2. C... interpôs recurso da decisão de fls. 8 para o Tribunal da Relação de Lisboa, sustentando que o artigo 11º da Lei nº 15/94, de 11 de Maio, interpretado no sentido de permitir que o arguido seja privado da liberdade em consequência de sentença condenatória que não condena em pena de prisão, é inconstitucional por violação do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 27º da Constituição.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 24 de Março de 1998, negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
3. C... interpôs recurso de constitucio-nalidade do acórdão de 24 de Março de
1998, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 11º da Lei nº 15/94, de 11 de Maio, interpretada no sentido de permitir que o arguido seja privado da liberdade em virtude de sentença que não condena em pena de prisão mas sim em pena de multa.
Junto do Tribunal Constitucional o arguido apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
5.1. O douto despacho recorrido, que revogou o perdão concedido, invocando o disposto no artigo 11º da Lei nº 15/94, de 11 de Maio, deve ser revogado; porque
5.2. Ou aquele preceito legal não é aplicável à hipótese, ou
5.3. Sendo-o, o preceito em causa está ferido de inconstitucionalidade material, por violador do disposto no artigo 27º, nºs 1, 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que permite que, fora dos casos excepcionais, enumerados, taxativamente, no nº 3 daquele preceito da Lei Fundamental.
5.4. Um cidadão seja privado da liberdade, sem que o seja, em consequência de uma decisão judicial que decrete uma pena privativa de liberdade.
5.5. Deve, pois, e com esse fundamento, ser declarado materialmente inconstitucional o preceito do artigo 11º da Lei nº 15/94, de 11 de Maio,
5.6. E, em qualquer caso, revogado o, aliás, douto despacho recorrido.
O Ministério Público contra-alegou, propugnando o não conhecimento do objecto do recurso, em virtude de o preceito impugnado não ter sido interpretado pelo tribunal a quo na dimensão normativa considerada inconstitucional pelo recorrente. Concluiu do seguinte modo:
1º A decisão recorrida não aplicou a norma que constitui objecto do presente recurso – a constante do artigo 11º da Lei nº 15/94, de 11 de Maio – com o sentido, alegadamente inconstitucional, alegado pelo recorrente.
2º Na verdade, para o recorrente tal norma padeceria de inconstitucionalidade na medida em que permitiria na privação da liberdade não fundada em decisão judicial que houvesse decretado uma pena privativa de liberdade.
3º Sendo certo que a decisão recorrida interpretou naturalmente tal norma em termos de a privação de liberdade do arguido radicar ainda na sentença que decretou a sua condenação, funcionando a decisão que o condenou em multa, por autoria de um crime doloso, como simples facto resolutivo daquela medida de clemência.
4º Termos em que não deverá sequer conhecer-se do recurso interposto.
Em resposta à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, o recorrente propugnou o conhecimento do objecto do recurso, sustentando que o Tribunal Constitucional só pode não conhecer o objecto do recurso de constitucionalidade nos termos do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional.
4. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
5. O recorrente sustenta que o artigo 11º da Lei nº 15/94, de 11 de Maio, interpretado no sentido de permitir que o arguido seja privado da liberdade em virtude de sentença que condene na pena de multa é inconstitucional por violação do disposto no artigo 27º, nºs 1, 2 e 3, da Constituição.
Ora, o recorrente foi condenado na pena de três anos de prisão, tendo-lhe sido perdoado um ano de prisão, sob a condição resolutiva de, no prazo de três anos, não ser condenado pela prática de outro crime doloso. Nesse prazo, o recorrente foi condenado pela prática de um crime de condução sob a influência do álcool na forma dolosa numa pena de multa. Verificou-se, portanto, a condição resolutiva da concessão do perdão, pelo que foi-lhe retirado tal perdão, passando o arguido a ter de cumprir o ano de prisão que lhe havia sido perdoado. A decisão judicial que subjaz ao cumprimento da pena remanescente de um ano de prisão é o acórdão que condenou o arguido na pena de três anos de prisão, não tendo sido o arguido privado da liberdade em virtude de sentença que não o tivesse condenado em pena de prisão.
O artigo 11º da Lei nº 15/94, de 11 de Maio, não foi aplicado pelo tribunal a quo com a interpretação de permitir que alguém seja condenado a pena de prisão sem ser por força da aplicação de uma pena privativa da liberdade. Com efeito, a norma em causa apenas fundamenta a perda de eficácia do perdão, permitindo a aplicação da pena de prisão a que o arguido havia sido previamente condenado. A norma que fundamenta a aplicação da pena de prisão não é o artigo 11º da Lei nº 15/94, mas a norma incriminadora que determinou a primeira condenação, em conjugação com o próprio artigo 11º da Lei nº 15/94, que prevê o perdão e as respectivas condições de aplicação. A norma penal violada de cuja incriminação decorre a aplicação da pena de multa não foi fundamento da aplicação de pena de prisão, mas requisito negativo da norma que previa o perdão (artigo 11º da referida Lei). Neste sentido, nunca se aplicou qualquer dimensão normativa na qual se fundamentasse a aplicação de pena de prisão decorrente de uma sentença que meramente condena em multa.
Mas mesmo que se admitisse que aquilo que o recorrente afinal questiona é a legitimidade constitucional de a condenação em pena de multa poder ser condição resolutiva do perdão concedido a uma pena de prisão - questão que, todavia, nunca foi colocada nestes termos ao Tribunal pelo recorrente - sempre haveria que reconhecer que na norma sub judicio não é a pura condenação em qualquer pena (incluindo a de multa) que opera a resolução do perdão, mas a persistência da perigosidade do agente e o seu menosprezo pelo Direito, que estão associados ao não cumprimento das condições a que o perdão está sujeito.
Também por esta via se poderia concluir que a dimensão normativa representada pelo agente não apreende o significado essencial das normas aplicadas pela sentença recorrida. Nessa medida, o Tribunal Constitucional não tomará conhecimento do objecto do presente recurso de constitucionalidade, em virtude de a decisão recorrida não ter aplicado a dimensão normativa que o recorrente considera inconstitucional [cf. artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional].
6. O recorrente sustenta que o Tribunal Constitucional só pode não conhecer o objecto do recurso nos termos do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional.
Porém, tal entendimento não tem verdadeiramente fundamento legal. O artigo 76º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, ao admitir expressamente a impugnação da decisão de admissão do recurso nas alegações, não pressupõe qualquer preclusão da análise dos pressupostos processuais na fase da decisão sobre admissibilidade do recurso decorrente do exame preliminar do processo no Tribunal Constitucional. Aliás, pode dar-se o caso de o relator do processo entender que o recurso deve ser conhecido e de a sua tese, posteriormente, não obter vencimento. Nessa hipótese, claro está, o recurso não será conhecido, apesar de o Tribunal Constitucional se não ter prevalecido da faculdade prevista no artigo 78º-A. Mas, para além disto, há que reconhecer o importante papel que as alegações das partes desempenham no desenvolvimento dialéctico do processo. Uma decisão de não conhecimento do recurso pode resultar de uma questão complexa, que as próprias alegações contribuam para dilucidar. Assim, é forçoso concluir que o artigo
78º-A da Lei do Tribunal Constitucional não representa uma limitação dos poderes cognitivos do Tribunal, nem obsta a que a questão da ausência de pressupostos processuais seja decidida no acórdão final. E isso é, sobretudo, justificável nos casos em que resultou das alegações com mais clareza uma incompatibilidade entre a dimensão normativa questionada no recurso e a que fundamentou a decisão recorrida.
III Decisão
7. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objecto do presente recurso de constitucionalidade.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 UCs. Lisboa, 13 de Janeiro de 1999- Maria Fernanda Palma Guilherme da Fonseca Bravo Serra Paulo Mota Pinto Luis Nunes de Almeida