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Proc.Nº 830/96 Sec. 1ª Rel. Cons. Vitor Nunes de Almeida Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional: I - RELATÓRIO:
1. - V... e mulher M... requereram na comarca do Barreiro a declaração de falência da firma 'F... LDA'. Por sentença de 31 de Outubro de 1985, foi declarada a falência da referida firma. Notificada a decisão, a empresa interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa. Julgado deserto o recurso, por falta de pagamento das custas, interpôs recurso de agravo deste despacho. Entretanto, o senhor juiz do Tribunal da Comarca do Barreiro declarou este Tribunal incompetente para prosseguir com o processo e julgou competente o Tribunal de Círculo do Barreiro que, por sua vez, por decisão de 14 de Fevereiro de 1991, julgou verificada a incompetência do Tribunal de Círculo, ordenando a devolução dos autos ao Tribunal da Comarca. Aqui, continuaram os autos a correr os seus termos até que, ainda na pendência dos recursos interpostos, veio a ser lavrado, em 21 de Dezembro de 1994, um termo de desistência do pedido, segundo o qual os requerentes, V... e sua mulher, M..., devidamente identificados, declaram para todos os efeitos legais desistir do pedido feito no processo de falência que moveram contra a firma F..., LDA. Esta sociedade, por requerimento de 3 de Janeiro de 1995, veio aos autos dizer que aceitava a desistência do pedido, requerendo que os autos fossem à conta. Por decisão de 11 de Maio de 1995 foi a desistência do pedido indeferida, sendo tal decisão do seguinte teor:
'A falida, F..., Lda, veio aos autos lavrar termo de desistência do pedido. Dispõe o nº2 do artº 1180º do C.P.C.que 'Antes de proferida a sentença, pode o requerente ou o apresentante desistir do pedido_'. Porém, no caso dos presentes autos já foi proferida sentença declaratória da falência - cfr. fls. 28 a 31. Em nosso entender, atento o disposto no citado preceito legal, após o proferimento da sentença declaratória da falência já não há lugar a desistência, mesmo que tenha sido interposto recurso. Na verdade, declarada a falência mesmo sem trânsito em julgado da respectiva sentença, mesmo o requerente não pode desistir do pedido, pois deixou de ser o exclusivo 'interessado' da instância falimentar, que então se alargou aos credores. E no caso dos autos a falência nem sequer foi requerido por quem agora pretende desistir. Nesta fase, torna-se, pois, perfeitamente ineficaz a desistência do pedido. Termos em que indefiro a desistência do pedido.' A sociedade 'F..., Lda' notificada desta decisão, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 15 de Novembro de 1995, decidiu negar provimento ao recurso do despacho que julgou ineficaz a desistência do pedido e julgar deserto, por falta de alegações o recurso do despacho que tinha julgado deserta a apelação pelo não pagamento das custas.
2. - Desta decisão da Relação agravou a falida para o Supremo Tribunal de Justiça (adiante, STJ), tendo nessas alegações suscitado a questão da inconstitucionalidade material da norma do artigo 1180º, nº2, do Código de Processo Civil, por violar os princípios da certeza e da segurança do direito. O STJ, por acórdão de 26 de Setembro de 1996, decidiu negar provimento ao recurso, fundamentando assim a decisão:
'O D.L. 132/93, de 23-4 aprovou o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência. Prescreveu o artº8º-3 que o código se não aplica às acções pendentes à data da sua entrada em vigor. Por isso mesmo foi chamado à colação o artº 1180º-2. do C. P. Civil, hoje revogado, mas aqui aplicável. Segundo esse artigo, os requerentes só podiam desistir do pedido até ser proferida a sentença. Pedro Macedo explica as razões da norma - Manual de Direito das Falências I,
396. Aí se escreve:
'Após a declaração de falência não se admite a desistência por razões que se compreendem. Em 1º.lugar, a partir de então a instância falimentar universaliza-se e não há apenas -o requerimento do credor. Só todos os credores, de momento indeterminados, poderiam desistir... Depois,... a falência não é um instituto de conveniência meramente particular, que interesse apenas ao falido o aos seus credores, ela é também ditada no interesse público ...' As instâncias respeitaram portanto a lei. Prevendo que este Tribunal assim o entendesse, a recorrente vem agora na alegação para este Tribunal aduzir um argumento adicional (pensando já porventura no médio prazo processual...): o artigo 1180º- 2 violaria os princípios constitucionais da certeza e da segurança. Assim seria porque 'se atribui a sentença não transitada um valor e uma relevância que nada .aconselha' (sic). E daí a afirmação de que o artº ll80º-2 padeceria de inconstitucionalidade material. Explicou-se já a sentido do art.ll80º-2. O absurdo da afirmação da recorrente fica patente. O princípio da certeza e da segurança é um dos princípios jurídicos de legislação inerentes ao Estado de Direito (G. Canotilho, in 'Direito Constitucional,II.II,55 (1981). As leis devem ter um conteúdo inequívoco, para que os cidadãos possam obedecer-lhes. Invoca-se também esse princípio quando se discute a retroactividade - ver ainda o mesmo autor, ob cit., pág. 57, RLJ, 125,85 e acórdão do TC publicado no BMJ
415º l9O. A norma do artº 1180º-2 tem um sentido claro e preciso, não se vendo como pode ferir os referidos princípios da certeza e da segurança.'
É desta decisão que vem interposto, pela firma 'F..., Lda', o presente recurso de constitucionalidade, para apreciação da conformidade à Lei Fundamental da norma do artigo 1180º, nº2, do Código de Processo Civil (adiante, CPC), a qual, segundo a recorrente e conforme esclarece no requerimento que completa o de interposição de recurso, viola os princípios da segurança e certeza que integram o princípio do Estado de direito democrático constante do artigo 2º da Constituição.
3. - Neste Tribunal, a recorrente produziu as suas alegações que terminou formulando as seguintes conclusões:
'I - Foi proferida sentença a decretar a falência da Recorrente. II - Tal sentença não transitou em julgado. III - O requerente da falência veio desistir do pedido. IV - Tal direito é livremente disponível. V - Impedindo a eficácia da desistência do pedido, por força dos disposto pelo Artº 1180º/2 do C.P.C. de então fez-se uso de um preceito ferido de inconstitucionalidade material. VI - Ao atribuir eficácia relevante à sentença não transitada em julgado, o preceito posterga valores essenciais à realização do direito: os valores da certeza e da segurança. VII - Basta pensar que a sentença pode vir a ser revogada ou declarada nula na sequência do recurso. VIII - A inconstitucionalidade do normativo importa e acarreta graves malefícios sociais (mais desemprego, mais crise) e contraria o sentido do direito positivo actual (cfr. artºs 231 e segs. Do Dec.-Lei nº 132/93, de 23 de Abril)'. Também o Ministério Público recorrido apresentou as suas alegações, que concluiu pela forma seguinte:
'1º - A norma constante do artigo 1180º, nº2, do Código de Processo Civil, ao limitar, em processo falimentar, a irrestrita vigência do princípio do dispositivo, no que respeita ao termo da causa, após a declaração de falência, embora não transitada em julgado - como decorrência de lhe estarem subjacentes interesses públicos e de tal processo não respeitar, após a declaração de falência, apenas ao credor requerente, já que envolve a liquidação universal do património do falido - não contende com qualquer norma ou princípio constitucional.
2º - Termos em que deverá ser julgado improcedente o presente recurso.'
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II - FUNDAMENTOS:
4. - O presente recurso vem interposto ao abrigo da alínea b), do nº1, do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional e visa apreciar a conformidade constitucional da norma do nº2 do artigo 1180º, do CPC, designadamente se tal norma contende com os princípios da segurança jurídica e da confiança ínsitos no princípio do Estado de direito democrático (artigo 2º da Constituição). A norma questionada inseria-se, enquanto vigorou, no domínio da liquidação de patrimónios em benefício de credores (artigos 1135º a 1325º, do CPC), tendo estas normas sido revogadas pelo artigo 9º do Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de Abril (diploma que aprovou o Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e de Falência). De acordo com o preceituado no artigo 8º, nº 3, deste último diploma,('Sem prejuízo do disposto no artigo 5º para a extinção das câmaras de falências, o novo Código não se aplica às acções pendentes à data da sua entrada em vigor'), a norma do artigo 1180º, nº 2, do CPC era ainda aplicável nos autos, uma vez que a presente acção de falência se iniciou em 1985. A norma questionada tem o seguinte teor:
'Artigo 1180º
(Audiência de discussão e julgamento)
1.(...)
2. Antes de proferida a sentença, pode o requerente ou o apresentante desistir do pedido, salvo quando se tenham alegado factos que constituam indício de culpa ou fraude.'
Segundo o recorrente, a interpretação desta norma feita no acórdão do STJ, isto
é, no sentido de, no processo de falência tal como era configurado no CPC, só ser possível desistir do pedido antes de ser proferida a sentença, viola os princípios da certeza e segurança jurídicas ínsitos no princípio do Estado de direito democrático. A resposta a esta questão, tal como o recorrente a formula não pode deixar de ser negativa. Vejamos porquê.
5. - A recorrente assenta o essencial da sua argumentação no princípio da livre e total disponibilidade quer do início do processo quer do seu objecto quer ainda do seu termo. Ora, admitindo-se que possa ser esse o regime em regra praticado na generalidade das acções cíveis, o certo é que, no que diz respeito ao processo falimentar as coisas não se passam de modo inteiramente coincidente com esse regime. Com efeito, no processo de falência podem, desde o início, estar presentes elementos indiciadores do interesse público subjacente a tal processo: basta que se articulem factos indiciadores de culpa ou fraude, isto é, factos que permitam indiciar criminalmente o falido e classificar a falência como fraudulenta
(artigo 1279º e seguintes do Código de Processo Civil, na versão aprovada pelo Decreto-Lei nº 44 129, de 28 de Dezembro de 1961 e alterações posteriores).
É por isso que a própria desistência do pedido nestes processos deixa de ser possível, mesmo antes de ser proferida a sentença, bastando que se tenham alegado factos indiciadores de culpa ou fraude. Por outro lado, destinando-se o processo de falência à liquidação do património do falido por forma a satisfazer os credores cujos créditos vierem a ser reclamados e graduados, é manifesto que, após a sentença que decreta a falência, não está já em causa apenas o interesse do requerente mas também o interesse de todos aqueles credores. Daí que a lei estabeleça que, depois da sentença que decreta a falência, o requerente ou apresentante não possa desistir do pedido: destinando-se o procedimento falimentar a realizar a liquidação de um património em favor dos credores, após a sentença falimentar tal procedimento assenta em dois princípios fulcrais - o da universalidade (abrange, em princípio, todas as causas em que se debatam interesses relativos à massa falida) e o princípio da igualdade de tratamento dos credores. Assim sendo, não é possível admitir um só de entre eles, mesmo sendo o apresentante, a poder desistir do pedido, uma vez que a questão passa a ser do interesse de todos e isto independentemente de não ter transitado a decisão. A não se entender que é este o fundamento da lei, então estaria a conferir-se ao requerente da falência um privilégio em relação aos outros credores, o que destruiria o princípio da 'par conditio creditorum'.
6. - Mas, a norma questionada, no entendimento de que o requerente ou apresentante só pode desistir do pedido antes da sentença, mesmo que esta não tenha transitado ainda por interposição de recurso, será inconstitucional por violação do princípio da certeza e da segurança jurídica? O princípio do Estado de direito democrático que decorre do artigo 2º da Constituição integra, entre outros, o princípio da segurança jurídica que, por um lado abrange a estabilidade das decisões, que só podem ser modificadas nos termos da lei, e, por outro, se concretiza na necessidade de certeza e previsibilidade, por parte dos cidadãos, quanto aos efeitos jurídicos dos actos normativos aplicáveis às diversas relações da vida em comunidade. Todavia, o princípio da segurança jurídica assim materializado não poderia nunca ser afectado pelo facto de a parte num processo não poder desistir do pedido formulado depois de ver a pretensão que deduzira em juízo apreciada e decidida, mas sem ter ainda transitado em julgado. De facto, tal possível limitação processual, em vez de confrontar ou contender com aquele princípio, mais não faz do que desenvolvê-lo e reafirmá-lo: tal situação processual torna estável a decisão proferida e confere certeza e previsibilidade aos efeitos jurídicos da lei. Além de que também protege a confiança dos cidadãos, uma vez que enquanto se mantiver não é possível a frustração das legítimas expectativas dos restantes credores, através de qualquer acordo celebrado à sua revelia por requerente da falência e falido, com sentença não transitada. O que em boa verdade a recorrente questiona é a limitação do princípio vigente no direito processual geral e também, em certa medida, no processo falimentar, o chamado princípio do dispositivo, como bem nota nas suas contra-alegações o Exmo. Procurador-Geral adjunto. Com efeito, a norma questionada retira da plena disposição do requerente da falência, após ser proferida a sentença, o direito de prosseguir ou não com o procedimento falimentar. Não estando expressamente consignado na Constituição o princípio do dispositivo como princípio estruturante do processo civil, é concebível que o direito fundamental de acesso aos tribunais, enquanto garantia da via judiciária conferida pela Constituição para defesa dos direitos e interesses legítimos, envolva uma atribuição genérica de um direito de acção judicial dentro do qual é susceptível de se enquadrar o princípio do dispositivo. Todavia, nesta perspectiva, o princípio do dispositivo não pode conceber-se irrestritamente, isto é, como estando na exclusiva e plena disposição da vontade do peticionante o prosseguimento ou não do procedimento falimentar. Desde logo, podem existir interesses públicos relevantes que imponham limitações
à actuação irrestrita de tal princípio (v.g., a possibilidade de existirem factos que imponham a intervenção do direito penal) e, por outro lado, a partir da sentença que decreta a falência, torna-se absolutamente indispensável respeitar os direitos dos outros credores do falido, que ficam numa posição de plena igualdade com o requerente da falência (o procedimento após a sentença passa a ser colectivo e universal), não podendo conceder-se a este qualquer privilégio em detrimento dos outros credores, por respeito integral do princípio da igualdade ou da 'par conditio creditorum', como seria o reconhecimento ao requerente da falência do direito de desistir unilateralmente do pedido até porventura mancomunado com o falido e para frustrar a liquidação do seu património. Aliás, a limitação em causa nem sequer pode dizer-se que seja excessiva ou desproporcionada: de facto, se a sentença vier a ser revogada, por decisão definitiva, a questão fica prejudicada, uma vez que deixa de haver declaração de falência e o falido recupera os direitos que vira restringidos; se a sentença vier a ser anulada e ordenada a repetição do julgamento, então o procedimento falimentar regressa à fase pré-decisão renascendo assim o direito do requerente de desistir do pedido, salva a limitação da parte final do nº2 do artigo 1182º do CPC. Por outro lado, se a oposição derivar de embargos, então os embargos só suspendem os termos do processo de falência ulteriores à sentença de verificação de créditos, podendo, em caso de urgência, realizar-se a venda de bens, uma vez que a mera convocação de credores não interfere com os legítimos interesses do falido. Tem, assim, de concluir-se que a norma do artigo 1180º, nº2, do Código de Processo Civil, enquanto estabelece que o requerente da falência pode desistir do pedido até ser proferida a sentença não viola nem o princípio de certeza e segurança jurídica nem o princípio do acesso ao direito na vertente do princípio dispositivo que confirma o direito de acção judicial, pelo que o recurso não merece provimento. III - DECISÃO: Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida na parte impugnada.
Lisboa, 2 de Julho de 1998 Vitor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Artur Mauricio Maria Helena Brito Paulo Mota Pinto Luis Nunes de Almeida